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A anonimização como possível evidência de encerramento do tratamento de dados pessoais: Uma análise jurídica, técnica e estratégica

Anonimização irreversível pode encerrar tratamento de dados na LGPD, se bem documentada, proporcional e alinhada à boa-fé e segurança jurídica.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Atualizado em 8 de agosto de 2025 13:38

A lei 13.709/18 - LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - estabelece princípios e regras para o tratamento de dados pessoais no Brasil, incluindo diretrizes claras sobre o encerramento do tratamento. Dentre as hipóteses previstas no art. 15 da lei, a eliminação dos dados após o término da finalidade é a medida mais frequentemente adotada.

No entanto, surge uma indagação relevante: poderia a anonimização eficaz, irreversível e bem documentada, ser juridicamente reconhecida como evidência de encerramento do tratamento de dados pessoais?

O presente artigo busca analisar essa possibilidade sob as perspectivas jurídica, técnica e estratégica, especialmente para fins de auditoria da ANPD ou em eventuais litígios envolvendo o ciclo de vida dos dados. A proposta não é substituir a exclusão onde ela for obrigatória, mas explorar cenários legítimos em que a anonimização possa funcionar como solução alternativa e proporcional, alinhada à boa-fé, à responsabilidade e à finalidade do tratamento.

1. O que diz a LGPD sobre anonimização?

O conceito de anonimização é introduzido nos incisos III e XI do art. 5º da LGPD, que a definem como a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento que eliminem a possibilidade de associação, direta ou indireta, entre um dado e uma pessoa natural.

O art. 12 reforça que dados anonimizados não são considerados dados pessoais, salvo se o processo for reversível com meios próprios ou razoáveis. Ou seja, a eficácia da anonimização deve ser contextual e mensurável.

A leitura integrada com o art. 15, que trata do término do tratamento, e com os arts. 16 (retenção) e 18 (direitos do titular), permite interpretar que, em determinadas situações, a anonimização bem conduzida pode descaracterizar a relação entre o dado e o titular, rompendo o vínculo jurídico e técnico que caracteriza o tratamento.

2. Anonimização sob a ótica da ANPD: Processo, risco e responsabilidade

O estudo técnico 1/23 da ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados trouxe relevantes esclarecimentos sobre o processo de anonimização. A Autoridade o caracteriza como um processo contínuo de gestão de risco, cuja efetividade depende da relação entre:

  • RRM - Risco de Reidentificação Mensurado, e
  • RRA - Risco de Reidentificação Aceitável.

A anonimização será considerada válida somente se o RRM for inferior ao RRA, levando em conta fatores como:

  • Volume e sensibilidade dos dados;
  • Técnicas aplicadas (ex.: supressão, generalização, permutação, adição de ruído);
  • A finalidade do uso residual;
  • A disponibilidade tecnológica no tempo do tratamento.

Além disso, o processo requer:

  • Testes técnicos de reidentificação;
  • Registro documental do método adotado;
  • Avaliação de contexto e proporcionalidade;
  • Preservação de valor estatístico (quando aplicável) e segurança informacional.

Diagrama simplificado do processo de anonimização:

Essa abordagem evidencia que a anonimização não é um evento isolado, mas um procedimento com requisitos técnicos, jurídicos e operacionais que precisam ser demonstrados em auditorias ou litígios.

3. Fundamentos jurídicos para sustentar a anonimização como encerramento

O art. 15 da LGPD prevê que o tratamento de dados pessoais será encerrado nas seguintes hipóteses:

"I - verificação de que a finalidade foi alcançada ou de que os dados deixaram de ser necessários ou pertinentes ao alcance da finalidade específica almejada;

II - fim do período de tratamento;

III - comunicação do titular, inclusive no exercício de seu direito de revogação do consentimento; ou

IV - determinação da autoridade nacional."

O art. 16, por sua vez, permite a conservação dos dados anonimizados para uso exclusivo do controlador, desde que vedado o acesso por terceiros. Já o art. 18, VI, garante ao titular o direito à eliminação dos dados tratados com consentimento, salvo nas exceções legais.

A conjugação desses dispositivos permite argumentar que, uma vez que os dados tenham sido efetivamente anonimizados, eliminando a possibilidade de identificação do titular, não há mais "tratamento de dado pessoal" a ser encerrado, pois o vínculo jurídico com a LGPD deixa de existir.

Desde que acompanhado de documentação que comprove:

  • A irreversibilidade prática do processo;
  • A inexistência de riscos de reidentificação razoáveis;
  • A finalidade legítima e o uso interno, conforme art. 16;

Assim a anonimização pode ser invocada como evidência de encerramento de tratamento, cumprindo a função de garantir conformidade e segurança jurídica ao controlador.

4. Aplicação prática e estratégica em ambientes jurídicos

Nos escritórios de advocacia, especialmente os que atuam com contencioso de massa, é comum a retenção de grandes volumes de dados pessoais processuais por longos períodos. Muitos desses dados são sensíveis ou com algum grau de sensibilidade (ex.: nome, CPF, informações bancárias ou de saúde).

Após o término dos prazos legais de retenção, surge a necessidade de encerrar o tratamento desses dados, mas sem perder a riqueza histórica e estratégica das informações.

A anonimização, quando bem aplicada, pode oferecer vantagens como:

  • Manutenção de estatísticas sobre padrões de litígios;
  • Preservação de histórico de teses jurídicas e jurisprudência aplicada;
  • Redução de riscos regulatórios (por não manter dados pessoais desnecessários);
  • Demonstração de diligência e responsabilidade (accountability), conforme art. 6º, X da LGPD.

Essa prática, embora ainda pouco consolidada, antecipa exigências regulatórias, prepara o controlador para auditorias e reforça a cultura de governança de dados com responsabilidade.

5. Limites, cuidados e riscos associados

Importante destacar que anonimização não deve ser usada de forma genérica ou superficial para substituir a eliminação de dados. O próprio art. 52 da LGPD prevê sanções administrativas nos casos de falha na segurança ou no tratamento inadequado de dados pessoais - inclusive quando mascarado sob o rótulo de "anonimização".

Alguns cuidados essenciais:

  • Evitar anonimizações fracas ou reversíveis, como meras remoções de campos identificadores;
  • Definir claramente a finalidade do uso residual dos dados;
  • Controlar rigorosamente o acesso aos dados anonimizados;
  • Registrar tecnicamente os métodos e testes aplicados, criando trilhas de auditoria;
  • Reavaliar periodicamente a efetividade da anonimização, dado o avanço tecnológico.

Em suma, o uso da anonimização como estratégia de encerramento exige responsabilidade técnica, cautela jurídica e maturidade organizacional.

Conclusão

A LGPD não equipara explicitamente anonimização a exclusão, mas sua estrutura normativa e os posicionamentos da ANPD permitem afirmar que, em determinadas circunstâncias, a anonimização irreversível, tecnicamente robusta e bem documentada pode sim ser apresentada como evidência de encerramento do tratamento de dados pessoais.

Essa interpretação, encontra respaldo na leitura sistemática da lei e nas práticas recomendadas pela ANPD.

A adoção dessa estratégia deve ser sempre proporcional, contextualizada e nunca utilizada como subterfúgio para evitar obrigações legais, mas como uma forma legítima de compatibilizar o interesse do controlador com a preservação da privacidade dos titulares e o respeito aos princípios da boa-fé, finalidade, necessidade e responsabilização.

Anderson Kenet de Oliveira

Anderson Kenet de Oliveira

Advogado do escritório Mascarenhas Barbosa Advogados.

Valter da Conceição Faria Junior

Valter da Conceição Faria Junior

Advogado no escritório Mascarenhas Barbosa Advogados.

Vander Martins Cristaldo

Vander Martins Cristaldo

Advogado pós-graduado em Advocacia Cível e Encarregado de Proteção de Dados (DPO). Membro do Comitê de Proteção de Dados e da Comissão de LGPD da OAB/MS. Atua no escritório MBA com foco em governança de dados, privacidade e direito digital, promovendo a conformidade, a eficiência operacional e a valorização da cultura de proteção de dados no ambiente corporativo.

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