Observações sobre o REsp 2.147.711/SP e a extraterritorialidade automática das decisões que versam sobre a remoção de conteúdo na internet
STJ reconhece validade de remoção de conteúdo online global, mas decisão levanta debates sobre soberania e limites da jurisdição brasileira.
quinta-feira, 14 de agosto de 2025
Atualizado às 08:07
A internet não conhece fronteiras. Notícias e informações podem ser compartilhadas livremente de qualquer lugar do mundo, bastando um dispositivo conectado à internet. Hoje, qualquer um pode compartilhar conteúdo no local mais remoto, e, não raro, deliberadamente falso, com a intenção de prejudicar terceiros.
Este é o dilema que o ordenamento jurídico contemporâneo se depara: em um mundo que o real e o virtual se confundem, os direitos de terceiros ficam sobrepujados diante do avanço tecnológico para o qual não houve preparo - ou, ao menos, diretrizes claras.
Nesse contexto, marcado pela ausência de regras claras do jogo virtual, o STJ teve de se posicionar sobre a seguinte questão: a jurisdição nacional pode determinar que um conteúdo seja apagado da internet globalmente - com hospedagem em outro local?! Este tipo de abrangência implica em violação à soberania de outro país?
Spoiler: no REsp 2.147.711 - SP, por maioria de três votos, entendeu-se que não há ofensa à soberania de país estrangeiro e a retirada do conteúdo, por determinação judicial, é lícita e exigível ainda que haja efeitos extraterritoriais, conforme voto condutor da ministra Nancy Andrighi.1
A controvérsia ao entendimento foi exarada pelo ministro Villas Bôas Cueva, acompanhado pelo ministro Aurélio Bellizze.2
Os fundamentos de ambos os votos são riquíssimos e, sem sombra de dúvidas, não encerram por aqui o debate. Porém, se é que podemos contribuir modestamente, trazemos reflexões críticas ao voto vencedor.
Os limites inerentes à própria jurisdição
A ministra interpretou o conceito de jurisdição com um olhar alinhado aos desafios contemporâneos, fundamentando-se no Marco Civil da Internet, bem como incorporando em seu voto diretrizes da ONU e de normas internacionais de Direitos Humanos. A interpretação dada e aplicação de tratados internacionais são louváveis, mas comprometem regras básicas de aplicação do direito.
O primeiro ponto relevante é sobre o conceito de "jurisdição". O voto condutor apresenta raciocínio de que o MCI, em seu art. 11, destaca que a jurisdição brasileira teria "caráter transfronteiriço e sem qualquer limitação geográfica sobre os provedores de aplicações".
Embora o conceito de jurisdição possa assumir diferentes interpretações a depender do olhar do intérprete, a jurisdição, por sua própria natureza, tem como premissa a existência de um limite territorial.
A hermenêutica apoiada em disposição de conteúdo material (Marco Civil da Internet), a nosso ver, não pode se sobrepor aos limites previstos pela matéria processual, sob o risco do processo civil ser reduzido a uma matéria acessória do direito material, como era no passado.
Conforme leitura do art. 16 do CPC, a jurisdição é exercida dentro do território nacional. Tal disposição, somada ao previsto no art. 13 do mesmo diploma, que determina a aplicação das normas brasileiras, salvo disposição em contrário em tratado, reforça os seus limites práticos.
Em nossa visão, o legislador passa a seguinte mensagem: "Estado Brasileiro, o poder dos Magistrados está limitado ao território nacional, de modo que sem um tratado internacional ou solicitação de execução da ordem através de procedimento específico, as decisões não terão validade em país estrangeiro".
Esse, aliás, é o entendimento do voto-vencido do ministro Villas Bôas que apontou: "a extensão de uma ordem judicial deve estar alinhada com as regras de direito internacional privado que regulam os limites de jurisdição de cada país".
Os limites da jurisdição como um ato de respeito à soberania de outro Estado
Falta, assim, no ordenamento internacional privado, norma que regulamente qual matéria e qual decisão terá validade extraterritorial, sem necessariamente se sujeitar aos trâmites de cooperação internacional, em respeito a soberania de outro Estado.
O conceito de soberania é justamente a capacidade do Estado de não se subordinar ou sofrer interferência de nenhum outro, garantindo independência e autoridade dentro do território nacional. Assim, para que as decisões judiciais possam surtir efeitos em território estrangeiro, em respeito à soberania, é fundamental a observância de meios legais já disponíveis (i.e. cooperação internacional).
Note-se que o lícito e ilícito é relativo quando estamos diante do contexto internacional, de modo que cada país estabelece, por exemplo, seus próprios parâmetros de razoabilidade para o exercício das liberdades individuais. Estender os efeitos de uma decisão para outra jurisdição com parâmetros diferentes, seria o mesmo que um Estado impor sobre o outro a sua vontade, em violação à soberania.
Imagine, por exemplo, uma situação em que uma embaixada brasileira, situada em determinado país, publique uma informação verídica, embora considerada falsa pela autoridade do país anfitrião. A decisão, em ação judicial ajuizada na jurisdição do país anfitrião, para tornar indisponível o conteúdo em âmbito local e em domínios brasileiros não violaria a soberania brasileira e o direito de terceiros?! É questão que fica à reflexão.
A solução pode ser encontrada por meio do processo legislativo internacional. Tão simples quanto parece, não é. Há interesses próprios e maniqueismo internacional, mas cada país deve buscar reconhecer a existência dos riscos da internet, buscando soluções uniformes para problemas que são comuns3.
A jurisdição cível na ótica da aplicação de normas de direitos humanos
Já quanto ao segundo aspecto levantado no voto vencedor, embora o desdobramento de direitos fundamentais também se aplique à pessoa jurídica, as normas internacionais de direitos humanos, por sua própria essência, são voltadas à proteção da pessoa humana, intrínseca à esta enquanto ser dotado de dignidade.
Em nosso entendimento, não haveria como aplicar normas de direitos humanos em benefício da pessoa jurídica, ao menos, não no que diz respeito ao alcance da jurisdição cível para alçar validade extraterritorial automática.
No caso em questão, a aplicação da norma brasileira bastaria para obter a jurisdição almejada pela empresa, que foi suficiente para obter a indenização pelo dano à imagem e tornar indisponível o conteúdo em território brasileiro.
Usurpação de poderes: Os efeitos de decisão judicial depende de ato privativo do chefe do Poder Executivo
Em linhas finais, sob perspectiva não abordada no voto vencido, acrescentemos que, ao atribuir validade à decisão judicial para além das fronteiras do território nacional, sem passar pelo crivo da cooperação internacional, o STJ usurpou atribuição privativa do chefe do Poder Executivo de dispor sobre tratados internacionais (art. 84, VIII, CF).
Mesmo que se alterasse os limites da jurisdição nacional por meio de processo legislativo interno, muito se questionaria da (in)constitucionalidade ou da própria (in)convencionalidade da respectiva norma, haja vista ser de competência do chefe do Poder Executivo dispor a respeito do tema com outros Estados, conjuntamente - e não pelo Poder Legislativo, ainda menos pelo Poder Judiciário.
É dizer que, quando se pretende uma execução automática de decisão judicial em território estrangeiro, há uma pretensão de submissão de outra jurisdição, que exigiria norma internacional específica para sua execução.
Entendimento contrário pode levar a casos de crises diplomáticas, que iniciam no louvável controle judicial, mas que podem transbordar em impactos econômicos e sociais. Basta lembrar do recente episódio no qual os Estados Unidos da América - enquanto país soberano - emitiu carta alertando que decisões brasileiras não teriam executoriedade naquele país, sinalizando que a eficácia ficaria condicionada à submissão ao devido processo legal americano4.
Justamente por essa razão, entende-se que para que a decisão tenha efeitos em país estrangeiro, demandaria, no mínimo, de tratado internacional e debate legislativo sobre a internacionalização da respectiva norma internacional, preservando a soberania alheia, mas também os poderes daquele que é eleito e é o seu titular, por força da CF.
Sintoma deste entendimento, a nosso ver, pode ser extraído das palavras do ministro Luiz Fux, quando ponderou, no julgamento da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, que certas atribuições ainda dependem da legítima expressão da vontade popular, reservada àqueles que são escolhidos por mandatos eletivos5.
É claro - e se reconhece - o papel importantíssimo desempenhado pelo Poder Judiciário frente a temas sensíveis à toda sociedade, verdadeiro pioneiro em declarar e institucionalizar direitos diante da omissão dos demais poderes.
No entanto, assim como lhe falta a devida estrutura normativa para atribuir efeitos extraterritoriais às suas decisões, o Poder Judiciário acabou usurpando poder conferido ao representante máximo do povo, indicado pela própria CF.
Efeitos práticos e consequência com a (in)segurança jurídica
Outro ponto que deve ser observado é o risco de decisões conflitantes entre cada Estado. Isto porque, havendo uma decisão que determine a remoção de determinado conteúdo de "toda a internet" sem respeito aos limites territoriais, e outra que determine a manutenção daquele mesmo conteúdo - ainda que dentro dos limites territoriais - o resultado seria uma encruzilhada aos provedores de conteúdo que, em qualquer medida, descumpririam ordem judicial.
Conforme mencionado acima, cada país possui parâmetros próprios sobre o conteúdo que é ou não aceitável, de modo que não se pode esperar uma uniformidade nesse tipo de decisão.
Certamente, diante deste julgado, não vai demorar para verificarmos novos pedidos e aplicação da alegada "transnacionalidade" da jurisdição. O problema, entretanto, é até onde isso pode chegar, inclusive em perspectiva territorial, e quais os riscos isso pode gerar sob o aspecto da insegurança jurídica e violação à soberania.
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1 https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=269289779®istro_numero=202400654047&peticao_numero=&publicacao_data=20241126&formato=PDF
2 https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=66&documento_sequencial=281761771®istro_numero=202400654047&peticao_numero=&publicacao_data=20241126&formato=PDF
3 Comentários à Constituição do Brasil / J. J. Gomes Canotilho...[et al.]; outros autores e coordenadores Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck, Gilmar Ferreira Mendes. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2018. (Série IDP)
4 https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/caio-junqueira/politica/carta-dos-eua-a-moraes-ordens-brasileiras-nao-valem-leia-integra/
5 https://www.estadao.com.br/politica/luiz-fux-diz-que-brasil-nao-tem-governo-juizes-durante-julamento-descrminalizacao-porte-maconha-uso-pessoal-stf-nprp/?srsltid=AfmBOooddoeGF2m77hjxqjMPjUiJTGTscJNjJXvlhMUGS-pWUmIqDS1m
Caio Vilela Costa
Sócio da Queiroz Cavalcanti Advocacia. Mestrando em direito. Especialista em direito penal. Professor de direito processual penal.




