Concurso público e cotas raciais: Quando a inclusão se transforma em exclusão
A política de cotas em concursos busca inclusão, mas interpretações equivocadas da heteroidentificação têm gerado exclusões injustas e insegurança jurídica.
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Atualizado em 19 de agosto de 2025 15:16
A política de cotas raciais nos concursos públicos nasceu como um marco na busca pela justiça social, concebida para corrigir desigualdades históricas e promover maior representatividade no serviço público. O objetivo central é inequívoco: criar oportunidades, ampliar horizontes e reduzir distâncias entre candidatos que, apesar de terem trajetórias desiguais, disputam as mesmas vagas.
Ocorre que, na prática, algumas bancas examinadoras têm interpretado de forma equivocada dispositivos editalícios relacionados à heteroidentificação. Situações concretas revelam distorções preocupantes. Imagine-se, por exemplo, o caso do candidato que, ao se inscrever, opta por concorrer tanto na ampla concorrência quanto na cota racial. Ele estuda, se prepara, realiza as provas e alcança nota suficiente para aprovação em ambas as listas. Porém, por algum motivo - seja um problema de saúde, seja um conflito de agenda, seja até mesmo uma desatenção pontual - não comparece à sessão de heteroidentificação.
O que deveria ocorrer é simples: sua inscrição como cotista é desconsiderada, permanecendo apenas a aprovação na ampla concorrência. Contudo, em vários certames, a consequência aplicada tem sido a eliminação total do candidato, como se o procedimento de heteroidentificação tivesse relação direta com o desempenho intelectual ou com a nota obtida. Essa prática transforma um mecanismo de inclusão em verdadeiro instrumento de exclusão.
A heteroidentificação foi criada como medida de segurança para preservar a lisura do sistema de cotas, evitando que candidatos não negros se beneficiem indevidamente do direito à reserva de vagas. Não se trata, portanto, de uma etapa relacionada à avaliação de mérito, mas sim à aferição de uma condição pessoal. Nesse sentido, a ausência ao procedimento não pode ser interpretada como fator apto a invalidar a aprovação conquistada em igualdade de condições na ampla concorrência.
O concurso público deve refletir, acima de tudo, os princípios constitucionais que regem a Administração. A razoabilidade e a proporcionalidade exigem que se analise o impacto de cada medida sobre a vida do candidato. Retirar dele um direito já conquistado pela via geral, em razão de uma formalidade vinculada apenas ao benefício da reserva, é desproporcional e viola a essência do instituto.
Não são raros os casos em que candidatos, injustamente eliminados, recorrem ao Judiciário. Os tribunais têm reiterado que a exclusão integral não encontra respaldo no ordenamento jurídico e que a consequência correta deve ser apenas a retirada do candidato da lista de cotistas. A insistência das bancas em manter práticas ilegais, além de contrariar decisões reiteradas, gera instabilidade nos concursos e aumenta o número de demandas judiciais.
É importante ressaltar que esse tipo de eliminação não atinge apenas o indivíduo diretamente prejudicado, mas afeta também a credibilidade do sistema de seleção. Cada decisão equivocada mina a confiança da sociedade nos concursos públicos e transmite a sensação de arbitrariedade. O que deveria ser um espaço de igualdade de oportunidades passa a ser um ambiente de insegurança.
A eliminação total, além de injusta, compromete o próprio ideal que originou as políticas de cotas. Em vez de se fortalecer como instrumento de reparação histórica e de promoção da diversidade, o sistema passa a ser visto como um campo de armadilhas burocráticas. Não é esse o propósito das ações afirmativas.
É fundamental que as comissões organizadoras adotem interpretação mais consentânea com a finalidade da política de cotas. A heteroidentificação deve ser encarada como etapa protetiva, voltada a assegurar que os beneficiários sejam, de fato, aqueles a quem a norma se destina. Transformá-la em motivo de eliminação total do candidato é desvirtuar o instituto, afrontando não apenas o mérito, mas também a própria lógica da inclusão.
O concurso público precisa resguardar os valores que o tornam legítimo: a meritocracia, a igualdade de condições e a confiança dos candidatos de que seu esforço será respeitado. Excluir integralmente quem já demonstrou mérito suficiente para estar na ampla concorrência significa distorcer a essência da seleção e abrir espaço para uma injustiça flagrante.
Por isso, a única interpretação juridicamente sustentável é a que restringe os efeitos da ausência à heteroidentificação: o candidato perde o direito à reserva, mas preserva sua posição na lista geral. Assim, protege-se tanto a finalidade das ações afirmativas quanto a seriedade do concurso público.
Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo
Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.



