Concurso público e violência doméstica: Até onde vai a investigação social?
A eliminação de candidatos por medida protetiva em investigação social afronta a presunção de inocência e gera exclusões arbitrárias em concursos públicos.
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Atualizado em 25 de agosto de 2025 12:56
A investigação social é uma das fases mais discutidas e, por vezes, mais temidas dos concursos públicos, especialmente nas carreiras policiais e em cargos que exigem probidade elevada. Seu objetivo é verificar se a vida pregressa do candidato é compatível com a função pública, analisando antecedentes, histórico funcional, vínculos comunitários e conduta social.
Apesar de sua relevância, essa etapa tem sido marcada por decisões controversas. Um ponto sensível é a eliminação de candidatos que respondem a medidas protetivas expedidas no contexto da lei Maria da Penha. Muitas bancas, ao constatarem a existência de tal medida, concluem que o candidato não possui idoneidade moral e o excluem sumariamente do concurso público.
A medida protetiva, contudo, possui natureza cautelar. É concedida em caráter provisório, muitas vezes de forma imediata, para resguardar a vítima em situações de urgência. Não resulta de processo penal com ampla produção probatória, tampouco representa condenação definitiva. Nesse sentido, confundir medida cautelar com juízo condenatório é um equívoco grave que compromete a legitimidade da investigação social.
A exclusão automática do candidato nessa situação afronta diretamente a presunção de inocência, princípio constitucional que assegura a todos o direito de não serem tratados como culpados antes do trânsito em julgado. Quando a Administração aplica sanção antecipada, desconsidera o devido processo legal e transforma a investigação social em um julgamento sumário, marcado pela insegurança e pela arbitrariedade.
Outro aspecto a ser considerado é o impacto desproporcional dessa medida. Eliminar um candidato por conta de decisão provisória significa, muitas vezes, inviabilizar um projeto de vida. É negar a alguém a oportunidade de assumir um cargo conquistado por mérito em provas objetivas e discursivas, baseando-se apenas em uma formalidade precária. A consequência é devastadora não apenas no campo profissional, mas também emocional e social.
Do ponto de vista administrativo, a prática também é problemática. Ao adotar critérios tão rígidos, as bancas alimentam a judicialização dos concursos. Cada exclusão indevida gera um processo judicial, sobrecarregando tribunais e atrasando a nomeação de aprovados. Esse ciclo cria instabilidade e mina a confiança da sociedade no concurso como meio legítimo de seleção.
É preciso, portanto, reinterpretar a função da investigação social. Ela deve servir para garantir que o candidato tenha conduta compatível com a função, mas não pode ser usada como mecanismo de exclusão automática por meros indícios ou medidas provisórias. O correto é considerar a medida protetiva como um elemento de informação, analisado em conjunto com outros aspectos da vida pregressa do candidato. Apenas em casos de condenação definitiva é que se justifica a exclusão.
Essa postura mais equilibrada preserva tanto o direito da vítima quanto as garantias fundamentais do acusado. Ao mesmo tempo, assegura que o concurso público mantenha sua função de selecionar os mais capacitados com base no mérito e não em juízos precipitados.
Em última análise, a pergunta que precisa ser feita é: até onde vai a investigação social? A resposta não pode ultrapassar os limites constitucionais. A Administração deve se lembrar de que sua atuação está submetida à legalidade e que a exclusão de candidatos só pode ocorrer em conformidade com princípios como proporcionalidade, razoabilidade e presunção de inocência.
Portanto, eliminar candidatos apenas porque respondem a medida protetiva não é prática legítima. O concurso público deve ser espaço de oportunidades, respeito e justiça, não de exclusão arbitrária. A proteção da sociedade se dá com respeito à Constituição, e não com decisões sumárias que antecipam penas antes do tempo.
Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo
Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.



