Fishing expedition no processo civil: Do direito à prova ao risco da devassa
O CPC/15 inovou ao flexibilizar a produção antecipada de prova, mas seu uso abusivo como "fishing expedition" gera riscos e insegurança jurídica.
quinta-feira, 28 de agosto de 2025
Atualizado às 13:41
O CPC/15 modernizou a sistemática processual brasileira, introduzindo um procedimento de produção antecipada de prova autônoma e mais flexível. Desvinculado da antiga exigência de urgência, o instituto (art. 381 e ss. do CPC) passou a servir não apenas para assegurar a viabilidade de uma prova em risco, mas também para promover a autocomposição e permitir que uma parte avalie a pertinência de ajuizar uma futura ação1.
A natureza autônoma da produção antecipada da prova foi afirmada pelo STJ, que reconheceu o "direito material à prova, autônomo em si - que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar (objeto da prova), tampouco com as consequências jurídicas daí advindas, podendo (ou não) subsidiar outra pretensão2".
Considerando que a exibição de documentos também deixou de existir como uma ação cautelar típica, parte da jurisprudência passou a autorizar que pedidos de exibição de documentos sejam formulados por meio do procedimento de produção antecipada de provas3. Contudo, essa questão ainda é controversa, pois há quem entenda que a exibição de documentos deve ser requerida por meio de ação autônoma, ou incidentalmente4.
Com o intuito de abreviar o procedimento, o legislador impôs severos limites ao contraditório e à ampla defesa. De acordo com o art. 382, §4º, do CPC, "neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário".
Apesar das boas intenções do legislador, verifica-se que a ampliação das hipóteses de cabimento e, ao mesmo tempo, a limitação ao contraditório e ampla defesa, têm gerado inúmeros problemas práticos.
Pense-se, ainda, na hipótese de o requerente, maliciosamente, querer fazer uma ampla perquirição em e-mails e documentos do requerido, à semelhança do processo de discovery norte-americano. Como poderá o demandado se defender de uma ordem tão abrangente que venha a ser deferida? E se a ordem abranger documentos protegidos por sigilo? Como se defender se a propositura de uma ação principal nem sequer se faz necessária?
Em meio aos principais desafios da produção antecipada de provas, destaca-se a prática do fishing expedition. O termo se justifica em razão de a parte autora não almejar necessariamente preservar uma prova existente, mas sim realizar busca indiscriminada e especulativa por informações, sem a delimitação de fatos concretos, na esperança de "pescar" qualquer elemento que possa, eventualmente, fundamentar uma demanda futura.
Nem é preciso dizer que tal uso subverte a finalidade original do instituto, transforma o processo em instrumento de especulação e gera insegurança jurídica. O tema ganha maior relevo quando observado sob a ótica de recentes litígios empresariais que ganharam destaque pela mídia.
A aquisição do Kabum pela Magazine Luiza, por exemplo, foi acompanhada de disputas judiciais nas quais a produção antecipada de prova surgiu como instrumento estratégico para a obtenção de informações sensíveis. O pedido de produção antecipada de provas deferido em primeira instância, determinava a exibição de um volume massivo de comunicações eletrônicas e contratos trocados não apenas entre as partes, mas também com terceiros.
Nessa esteira, em casos em que a decisão que defere a obtenção antecipada de provas possui potencial de causar dano ou prejuízo à parte requerida (ou partes que não integram a lide), a jurisprudência tem mitigado o rol do art. 1.015 do CPC, de forma a permitir a interposição de agravo de instrumento para questionar a presença dos requisitos autorizadores da ação de obtenção antecipada de prova5.
Justamente nessa linha, a relatora Lídia Conceição, integrante da 36ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, entendeu que a agravada pretendia realizar "verdadeira devassa das comunicações, dados, movimentações financeiras e correspondências, não só dos réus, como também de terceiros". Arrematando o voto, a relatora conceitua a prática de fishing expedition - visualizada no caso concreto:
Tal prática, conhecida como pescaria probatória, fishing expedition ou document hunting, é uma prática proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro o qual não admite investigações especulativas indiscriminadas, sem objetivo certo ou declarado, que lança suas redes na esperança de 'pescar' qualquer prova para subsidiar uma futura ação judicial.
Daí a necessidade de se coibir o abuso no emprego desse procedimento direcionado a realização de ampla perquirição em relação à parte contrária, na esperança de, por meio dela, descobrir informações que a prejudiquem6.
Nada obstante, importante trazer à discussão a recente crise enfrentada pelas Lojas Americanas, que resultou na responsabilização de gestores e na propositura de inúmeras ações judiciais, alimentando debates sobre até que ponto a produção antecipada pode ser utilizada para vasculhar documentos internos da companhia em busca de elementos incriminadores.
Neste caso, foi ajuizada produção antecipada de prova para, segundo a petição inicial, justificar futuras ações de responsabilização contra administradores e acionistas. A decisão de primeiro grau foi ainda mais drástica quanto ao caso anterior: determinou a busca e apreensão de caixas de e-mails institucionais de dezenas de diretores e conselheiros, atuais e antigos, abrangendo um período de dez anos. A decisão foi contestada diretamente no STF através da reclamação constitucional 57.996.
O ministro Alexandre de Moraes, ao analisar o caso, suspendeu a decisão por considerá-la um "ato desproporcional". Segundo o ministro, a medida concedia um "acesso excessivamente amplo às comunicações empresariais e administrativas", violando o sigilo de comunicações e dados, inclusive entre advogados e clientes7. A despeito de não ter havido expressa menção à prática de fishing expedition, percebe-se facilmente que se trata de outro exemplo nítido da utilização de forma abusiva do instituto da produção antecipada de prova.
Esses casos revelam uma tensão fundamental. De um lado, o direito à prova como instrumento de acesso à justiça. Do outro, a proteção contra a devassa, a especulação e o constrangimento ilegal. A jurisprudência, felizmente, tem caminhado para o equilíbrio.
Um avanço notável foi a já mencionada mitigação da regra que veda a apresentação de defesa ou recurso no procedimento (art. 382, § 4º, do CPC). O STJ, no Tema repetitivo 988 e em julgados posteriores, consolidou o entendimento de que essa vedação não é absoluta. Quando a decisão que defere a produção da prova tem o potencial de causar dano grave ou violar direitos, a parte atingida deve, sim, ter o direito de se insurgir. Essa flexibilização é vital para coibir, de antemão, as "pescarias probatórias".
O recado dos tribunais pátrios é claro: a produção antecipada de prova é um direito, mas não um direito absoluto. Para ser admitida, a parte deve demonstrar a necessidade da medida, justificar sua relevância e, acima de tudo, delimitar com precisão os fatos que pretende provar8. Pedidos genéricos, exploratórios e desproporcionais, que configuram a "fishing expedition", devem ser prontamente rechaçados pelo Judiciário, sob pena de se desvirtuar um importante mecanismo de justiça e transformá-lo em uma arma de assédio processual.
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1 MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil, volume 2: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 3ª edição, 2017. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. Fl. 209.
2 STJ; 3ª Turma; REsp nº 2.023.615-SP; Relator: Ministro Marco Aurélio Belizze; Data de julgamento: 14.03.2023.
3 STJ; 3ª Turma; AgInt nos EDcl no AREsp 2110436 / SP; Relator: Ministro Humberto Martins; Data de julgamento: 24/06/2024. TJSP; 19ª Câmara de Direito Privado; Agravo de Instrumento 2025748-63.2024.8.26.0000; Relator: Daniela Menegatti Milano; Data de julgamento: 12/03/2024.
4 TJSP; 15ª Câmara de Direito Privado; Apelação Cível 1001521-81.2024.8.26.0596; Relator: Vicentini Barroso; Data de julgamento: 28/02/2025.
5 STJ, REsp n. 2.043.440/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 29/11/2023, DJe de 23/1/2024.
6 TJSP; Agravo de Instrumento 2151921-69.2023.8.26.0000; Relator (a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 24ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/10/2024; Data de Registro: 31/10/2024.
7 STF; RC 57.996/SP; Relator: Ministro Alexandre de Moraes; Data de julgamento: 03.04.2023.
8 YARSHELL, Flávio Luiz. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 1.031.
Laura Lima
Advogada das áreas de Direito Civil e Direito do Consumidor do Silveiro Advogados, é graduada em Direito e pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.
Gabriel Schuster
Advogados nas áreas de Direito Civil e Direito do Consumidor do Silveiro Advogados, é graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.




