A convenção coletiva expirada e seus reflexos na licitação para contratação pública de mão de obra: Uma perspectiva jurídico-administrativa
A ausência de nova CCT nas licitações gera insegurança jurídica. A última convenção, mesmo expirada, deve ser parâmetro válido para garantir propostas viáveis.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Atualizado em 2 de setembro de 2025 13:34
Nas contratações públicas em que há demanda por mão de obra de trabalhadores celetistas, os licitantes se apoiam nas normas coletivas de trabalho - em especial na CCT - Convenção Coletiva de Trabalho1 - para elaborar suas propostas, uma vez que constituem fonte normativa que disciplina salários, benefícios e outras condições laborais que devem ser observadas pelos empregadores/tomadores de serviços.
Entretanto, com a desclassificação de empresas em certames licitatórios, a exemplo dos pregões eletrônicos 90011/24 e mais recente o de 90001/05 - ambos realizados pelo IPHAN -, deflagrou-se problemática que preocupa tanto o setor público quanto os agentes privados consubstanciada na ausência de nova CCT em vigor no momento do processo licitatório, situação que se verifica quando o sindicato laboral deixa expirar a vigência do instrumento coletivo anterior sem que novo acordo seja firmado, especialmente sob a sistemática de que o enquadramento sindical se dá com base na atividade econômica preponderante da empresa2.
Tal lacuna tem gerado questionamentos quanto à validade das propostas baseadas em convenções já expiradas e, infelizmente, conduzindo à desclassificação de licitantes por suposta "desatualização de custos".
Esse entendimento, no entanto, merece crítica sob a ótica do direito administrativo e dos princípios que regem as licitações públicas. Isso pois a licitação, além de garantir a seleção da proposta mais vantajosa à, cumpre função regulatória, atuando como instrumento de fomento à concorrência e à eficiência na contratação. Essa vantagem, porém, não se limita a aspectos puramente econômicos. A avaliação da proposta mais vantajosa deve considerar elementos objetivos e verificáveis, como é o caso da CCT - mesmo que formalmente expirada.
É justamente aqui que reside o ponto de tensão! Quando inexiste norma coletiva vigente, qual parâmetro seria mais adequado à realidade da empresa do que a última CCT celebrada?
Ignorar completamente esse documento implica distorcer a lógica da construção da planilha de custos e exigir do licitante o impossível - prática que fere princípios fundamentais como impessoalidade, eficiência e eficácia, razoabilidade, proporcionalidade, formalismo moderado e o próprio interesse público, todos expressamente previstos na lei de licitações.
Dentro desse contexto, de fato, o STF, na ADPF 323, afastou a chamada ultratividade das normas coletivas no âmbito das relações privadas de trabalho. Entretanto, a transposição automática dessa vedação ao campo do direito público - em especial ao processo licitatório - é equivocada e ignora as especificidades do regime jurídico-administrativo.
No ambiente da licitação pública, o uso da CCT expirada não tem por finalidade a prorrogação de direitos trabalhistas, mas, sim, a utilização de um parâmetro técnico objetivo para formulação da proposta de preços. Trata-se, pois, de um uso instrumental e temporário, enquanto não firmado novo acordo, que se justifica por razões alheias ao controle da licitante, visando à segurança jurídica, à viabilidade prática e ao interesse público primário.
Ao impedir que empresas utilizem a última CCT como base para suas propostas, cria-se uma barreira artificial à participação no certame, restringindo a competitividade em prejuízo da Administração.
Além disso, promove-se tratamento discriminatório entre empresas submetidas a sindicatos diligentes (com CCTs vigentes) e aquelas vinculadas a sindicatos inertes (sem novo acordo), ferindo os princípios da isonomia e da impessoalidade, ambos pilares constitucionais do processo licitatório (art. 37, caput e inciso XXI, da CF).
Sob a ótica da economicidade - e a disposição contida no art. 18, § 1º, inciso IX, da lei 14.133/21 -, a exclusão de propostas por falta de nova CCT pode levar à rejeição da melhor proposta para o erário, em nome de um formalismo excessivo e descolado da realidade do mercado.
Diante desse cenário, é plenamente viável - e juridicamente recomendável - que o edital permita a utilização da última CCT, desde que o licitante apresente declaração de compromisso de ajuste da proposta, caso nova convenção venha a ser firmada durante a execução contratual.
Tal solução harmoniza os princípios do direito administrativo e do direito do trabalho, conferindo segurança jurídica à contratação e garantindo que a Administração não seja privada da melhor proposta por motivos alheios à conduta do licitante.
Adicionalmente, entende-se que o edital pode prever matriz de alocação de riscos, nos termos do art. 22 da lei 14.133/21, permitindo ao contratante e ao contratado partilhar responsabilidades diante da superveniência de nova norma coletiva, com eventual reequilíbrio contratual, conforme o risco alocado previamente.
Nesse contexto, a ausência de nova convenção coletiva não pode servir de justificativa para a desclassificação de propostas ou para a exclusão de licitantes legalmente capacitados a oferecer a prestação do objeto do certame.
A última CCT firmada, ainda que formalmente expirada, constitui o único parâmetro razoável e objetivo para formulação da proposta de custos na contratação de mão de obra, e deve ser aceita para esse fim.
Essa interpretação assegura tanto a razoabilidade na exigência de documentos e parâmetros reais; a isonomia entre os licitantes, afastando discriminações indevidas; a competitividade, ao ampliar o universo de participantes; a economicidade, ao permitir que a proposta mais vantajosa não seja desclassificada injustamente; bem como a segurança jurídica, ao adotar critério objetivo em contexto de incerteza normativa.
Portanto, a adequada compreensão das implicações da CCT expirada exige uma interpretação sistêmica, voltada à concretização dos princípios e objetivos da lei 14.133/21. O interesse público não pode ser sacrificado diante de uma leitura mecanicista e descontextualizada das normas coletivas.
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1 Acordo este de caráter normativo, pelo qual, conforme disciplina do art. 611 da CLT dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho
2 Acordão 1097/19, Plenário, ministro Relator Bruno Dantas, Data do Julgamento 15/5/2019.
Luciano Barros
Advogado em Direito Público e sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.
Bruna Sandim
Advogada em Direito Público do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.



