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O princípio da deferência e o STF: O confronto entre decisões de órgãos técnicos e o controle judicial

O princípio da deferência limita a revisão judicial de atos técnicos, garantindo que agências e órgãos especializados decidam com expertise.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Atualizado às 10:53

Um tema contemporâneo que tem se mostrado cada vez mais desafiador é a crescente judicialização de matérias técnico-administrativas, especialmente, aquelas relacionadas a atos praticados por agências reguladoras. Esse cenário tem gerado significativa insegurança jurídica, dado que tanto os reguladores quanto os regulados podem se tornar reféns de revisões generalistas sobre questões altamente especializadas. Diante dessa realidade, as Cortes de Justiça passaram a adotar o princípio da deferência, como forma de limitar a reavaliação judicial de procedimentos complexos. 

O princípio da deferência, decorrente da doutrina Chevron norte-americana, prevê que as interpretações de conceitos genéricos conferidas por órgãos administrativos só podem ser revisitadas pelo Poder Judiciário, nas hipóteses em que restar demonstrada a ausência de razoabilidade e/ou a flagrante ilegalidade dos conhecimentos disseminados. Nas demais situações, não caberia aos Tribunais a realização de uma revisão das conceituações propostas pela Administração Pública, principalmente, aquelas relacionadas a informações técnicas1

Existem vários exemplos de aplicação de tal entendimento pelo STF. Durante o julgamento da ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874, a Corte consignou que a interpretação judicial normativa não poderia substituir a decisão administrativa. Nesses termos, deveria ser aplicado o princípio da deferência em relação à compreensão consignada por órgão técnico em matéria sob sua competência. 

O referido processo debatia sobre a constitucionalidade da RDC - Resolução da Diretoria Colegiada 14/12 editada pela Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Tal normativo vedava importação e comercialização de produtos fumígenos oriundos do tabaco que contivessem compostos definidos como aditivos. 

De acordo com a Confederação Nacional da Indústria, autora da citada ADIn, a determinação emitida pela Anvisa usurparia o poder normativo da Agência, uma vez que estabeleceria uma proibição abstrata à fabricação de produtos submetidos à fiscalização. Com base no princípio da deferência, o STF fixou que a ação deveria ser julgada como improcedente, ante a impossibilidade de interferência do Poder Judiciário em regulação legítima realizada pela autoridade competente. 

Apenas nos casos de irrazoabilidade/ilegalidade, seria possível a interferência da Corte em interpretações técnicas conferidas dentro do âmbito de atuação e competência dos órgãos administrativos. No mesmo sentido foi o encaminhamento conferido pelo STF na ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 825/DF. 

Durante o julgamento da ação, o STF entendeu que deveria ser adotada uma postura de deferência às soluções encontradas pelos órgãos técnicos. Consolidou-se que a intervenção judicial poderia ser responsável por ocasionar a imputação de interpretações normativas impertinentes, bem como a usurpação à separação dos poderes. 

Os precedentes evidenciam a consolidação do princípio da deferência, sobretudo, no tocante à preservação de decisões empenhadas por agências reguladoras. Por outro lado, persistiam incertezas quanto à manutenção desse posicionamento quando confrontado por interpretações realizadas por outros órgãos administrativos, tais como o Tribunal de Contas da União. 

No MS 36.744/DF, o STF se debruçou sobre a aplicação do princípio da deferência em relação à decisão do TCU. O caso tratava sobre a aplicação de jurisprudência da Corte, no que se refere à negativa de registro de aposentadoria por incorporação indevida de quintos/décimos após a edição da lei 9.624/1998. O ministro relator, Luiz Fux, consignou que as questões afetas aos órgãos de controle externo seriam baseadas em critérios técnicos. 

Nesse contexto, o TCU revela-se mais apto a apreciar as matérias inseridas em sua esfera de competência do que o STF. Com base em tal decisão, houve uma consagração do entendimento de que o princípio da deferência, também, deveria ser aplicado aos processos em que se debatesse algum ato proferido pelo citado órgão. 

O STF, a partir dos casos listados, consagrou o entendimento de que as decisões das cortes de contas e das agências reguladoras seriam dotadas de expertise. Dessa forma, apenas em situações de irrazoabilidade/ilegalidade seria devida a substituição judicial da interpretação conferida por esses entes. 

Acontece que não é incomum a atuação do TCU na análise de ações praticadas por agências reguladoras. Com efeito, o art. 14 da lei 13.848/19 dispõe que o Tribunal exercerá, em auxílio ao Congresso, o controle externo dos atos emanados pelas autoridades reguladoras. Nesses casos, diante da judicialização da matéria, surge a indagação acerca de como o princípio da deferência deve ser aplicado pelo STF.

Na situação narrada acima, identificam-se dois entendimentos especializados acerca do tema: aquele decorrente do ato da agência reguladora e aquele resultante da análise promovida pelo TCU. Em decisão recente, a Corte analisou esse conflito em específico, diante da judicialização de acórdão da Corte de Contas da União que determinava a anulação dos dispositivos da resolução 72/22 da ANTAQ relativos à cobrança pelo serviço de segregação e entrega de contêineres. 

Trata-se de tema controverso, já apreciado por diferentes instâncias jurisdicionais e técnicas. Assim, o presente artigo restringe-se à análise da aplicação do princípio da deferência, sem adentrar o mérito da discussão. Em exercício do controle externo, o TCU, por meio do acórdão 1.825/24, compreendeu que a resolução 72/22 da ANTAQ violaria previsões operacionais e concorrenciais. Irresignada, a ABRATEC impetrou o MS 40.087/DF em face do ato. 

O processo foi distribuído ao ministro Dias Toffoli que, inicialmente, proferiu decisão não conhecendo o writ, ante a ausência de legitimidade da associação. Posteriormente, em sede de juízo de retratação, o relator concedeu a segurança pleiteada para anular o acórdão 1.825/24 do TCU e, por extensão, reestabelecer a plena eficácia da resolução. 

De acordo com a decisão do relator, a ANTAQ teria maior capacidade institucional/epistêmica do que o TCU para definição de escolha regulatória para o setor. Ademais, a Agência teria observado os preceitos legais e a razoabilidade mínima para edição da resolução. A Corte de Contas da União teria extrapolado sua competência legal, invadindo a da autoridade reguladora e a do CADE. 

Ainda que ambas as entidades sejam compreendidas como órgãos técnicos, o princípio da deferência apontaria pela necessidade de manutenção do ato da ANTAQ, dado à especificidade da atuação desta última. Assim como o Poder Judiciário não poderia atuar como um revisor absoluto da atividade exercida pelos órgãos especializados, o mesmo entendimento deveria ser observado pelo TCU. 

A Corte de Contas da União não poderia usurpar a competência das agências reguladoras em matérias específicas, quando não demonstrada a irrazoabilidade/ilegalidade do ato sob controle. Isto posto, o princípio da deferência consagraria a necessidade de manutenção da decisão exercida pela entidade mais especializada. 

Ainda que seja possível a revisão do entendimento, a decisão parece consagrar uma posição do STF acerca da aplicação do princípio da deferência em situações de conflito interpretativo entre órgãos com expertise. A consolidação desse ecossistema dependerá das futuras manifestações da Corte e da recepção de tal assertiva pelas demais entidades. 

De todo modo, a posição adotada parece refletir um movimento de consolidação do princípio da deferência nas Cortes brasileiras, conferindo maior reconhecimento às interpretações técnico-jurídicas e à competência institucional de cada órgão especializado. Com isso, avança-se na redução da insegurança jurídica decorrente da revisão de atos emanados por agências reguladoras.

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1 DE ARAGÃO, A. S. Curso de Direito Administrativo. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013

Luciano Barros

Luciano Barros

Advogado em Direito Público e sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.

Anna Guimarães

Anna Guimarães

Advogada especialista em direito regulatório e administrativo do escritório Figueiredo e Velloso.

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