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STJ: Grafite e direitos autorais

Superior Tribunal de Justiça decidiu que grafites em via pública podem aparecer como cenário incidental em vídeos sem violar a titularidade artística, equilibrando proteção e liberdade de retratação.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Atualizado em 4 de dezembro de 2025 08:59

(1) Introdução

Em maio de 2025, o STJ1 julgou interessante recurso sobre alegada violação a direitos autorais envolvendo grafites em São Paulo, em publicidade da rede social Tik Tok. Os fatos da causa não eram particularmente polêmicos: (a) sem consentimento do autor do grafite alocado no chamado "Beco do Batman", no município de São Paulo; (b) foi gravada obra audiovisual com coreografia de dança, depois exibida na rede social; e (c) na qual a obra plástica do grafite fora exibida como "pano de fundo", aos movimentos do dançarino, o protagonista do vídeo.

Depois das instâncias instrutoras (Juízo em São Paulo e TJ/SP) terem confirmado a improcedência dos pedidos compensatórios do autor do grafite, o STJ decidiu por conhecer o mérito do litígio.

(2) Contexto

A doutrina2 e a jurisprudência nacional não divergem sobre a proteção cabível às modalidades artísticas manifestadas em ágora pública. Não é o fato de uma obra pictórica ser alocada em bem público de uso comum (art. 99, I do CC/02) que a segregaria de alguma forma de tutela autoral3 (art. 5º, XXVII da CRFB, e lei 9.610/98).

Além de uma possível predileção do artista sobre a maior acessibilidade de sua obra, a exibição de uma criação estética "nas ruas", nas paredes das vias públicas, pode significar uma democratização do senso estético. Mesmo quando abertos ao público, sem a cobrança de ingressos, pode haver por uma parcela da população a sensação de que museus, galerias de arte ou outros centros de exibição não combinem com seu senso de pertencimento. Talvez não tenham tido a oportunidade de, durante sua tenra infância, frequentar tais núcleos culturais. O hábito ou a exposição4 à cultura pode formar gostos.

Ademais, a intervenção do grafite (ou dos afrescos) - em zonas de arquitetura "desalmada" dos grandes núcleos urbanos - pode embelezar a região em que a obra é exposta, transmitir alguma crítica social, engendrar sentimentos ao transeunte. Comunica-se através do simbolismo da expressão humana. Há nisso, significativa função social e urbanística.

Com a redução do tamanho das unidades imobiliárias, fenômeno contemporâneo derivado do encarecimentos dos terrenos decorrente da poouca disponibilidade de áreas livres, diminuição dos núcleos familiares, e necessidade de lazer ao ar livre, as áreas urbanas adquiriram nova dimensão, além do embelezamento, de identificação física e política da urbe.

(3) O caso julgado

Como os fatos não eram controvertidos, pode-se sumarizar a polarização argumentativa, pelo lado do autor do grafite pelos seguintes elementos: (a) a obra primígena, grafite, é suscetível de proteção; (b) a legislação pertinente elenca na autorização prévia e expressa do autor (art. 29, da lei 9.610/1998) o seu marco fundante; (c) a criação nova (audiovisual) fez uso da obra primígena (grafite); (d) tal uso consistiria em violação à titularidade do grafite.

De outro lado, pode-se perceber a lógica defendida pelo Tik Tok com base nas seguintes perspectivas5: (e) o teor audiovisual também é obra, autônoma, protegida por direitos autorais (art. 7, VI da lei 9.610/1998). O fato de uma obra anterior servir de insumo ou citação da obra ulterior, não deslegitima a última; (f) o local em que uma obra de arte esteja exibida pode importar em como ela pode ser retratada, por alguém, como retratação lateral, periférica ou acessória; e (g) se a gravação/edição da publicidade fizesse utência de alguma tecnologia para "apagar" o grafite exibido nas ruas, então, aí sim poderia haver alguma alegação mais forte quanto o vilipêndio dos direitos autorais.

O STJ acabou por confirmar o entendimento dos juízos instrutores e recursal, mantendo a improcedência dos pedidos autorais. Efetivamente, o Tribunal sediado no Distrito Federal acabou por ponderar os ônus e bônus do autor que decida alocar sua criação estética em via pública. O bônus seria a questão da visibilidade, da popularidade ampliada em virtude da facilitação cognitiva da obra. O ônus, de outro lado, cuida do menor controle que se tem na retratação coadjuvante da obra, em outras obras. O grafite em via pública é protegível, mas não em qualquer contexto ou intensidade.

(4) Contexto mais amplo

A legislação internacional distingue grafiti de pichação, por exemplo o Código Penal francês6 e a legislação brasileira vai na mesma linha7. Contudo, a matéria não é unânime, tanto que, em outro julgado o STJ decidiu que:

"recurso especial. processual civil. direito autoral. violação. obra artística. grafitismo. manifestação cultural. proteção legal. exploração comercial. autorização do autor. inexistência. logradouro público. e publicidade. fins lucrativos. consentimento. imprescindibilidade. art. 48 da lei nº 9.610/1998 (lda). prejuízo. existência. responsabilidade civil. indenização. danos morais materiais. cabimento. crédito. identificação. indisponibilidade. arts. 24 e 79, §1º, da lda. dissídio jurisprudencial. ausência."8

Portanto, oscila o Tribunal da Cidadania quanto a interpretação acerca do art. 489 da lei de direito autoral brasileira (lei 9.610/98, doravante LDA). A lei permite a representação livre das obras, não a sua reprodução. O fato de a obra original aparecer como pano de fundo de filme retira o caráter de exclusividade, ou preponderância, característico da reprodução.

O foco da lei é impedir que obras originalmente corporificadas em objetos tridimensionais sejam reproduzidas, tanto que a LDA exclui da permissão a escultura, a representação volumétrica, para evitar réplicas de monumentos. Obviamente que maquetes de faculdades de arquitetura e a frequente representação de esculturas e prédios em 3 dimensões, em menor escala (como é o caso de museus, por exemplo a Fundação Louis Vuitton, na França10), são exceções à incidência da tutela ao titular/autor.

Mas voltando ao Judiciário, o aumento de obras contemporâneas em áreas urbanas, cada vez mais frequentadas, faz surgir naturalmente litígios decorrentes de conflitos de interesses. Em primoroso artigo "Banksy: anonimato e obras em lugares públicos", de leitura impositiva, Sérgio Branco e Júlia Veloso analisam alguns aspectos11.

Para não reproduzir os temas e julgados ali relacionados, refere-se a outra decisão judicial. Numa sentença do TJ/SP foi declarado que o autor de um grafite situado em logradouro público não poderia reclamar da reprodução da obra por revista automobilística, por força do referido art. 4812. No entanto, como a obra sofreu algum retoque visual na publicação, o magistrado concedeu compensação ao autor com base na obrigatoriedade de respeito ao direito moral integridade da obra (art. 24, IV da LDA)13. A reprodução seria permitida, mas sem alteração física da imagem original, outro enfoque da representação da obra situada permanentemente em logradouro público.

Merece atenção, também, o caso do artista búlgaro Christo. Ele "embrulhou" o Parlamento alemão em pano, em 199514, e um fotógrafo quis comercializar um postal do prédio acrescido da cobertura temporária. O artista se opôs e o fotógrafo invocou o dispositivo da lei alemã equivalente ao já referido art. 48 da LDA. O tribunal alemão proibiu a reprodução da obra no postal já que a permissão legal se destinava a prédios situados permanentemente em logradouros públicos; e a instalação transformava o prédio em obra temporária15.

(5) Conclusões

O STJ foi feliz na escolha do julgamento meritório de um caso que aprecia formas pós-modernas de manifestações artísticas. A produção de uma norma pretoriana que, sucintamente, coteja os riscos e as possibilidades da estética (nova e original) exibida em logradouro público, colabora para a segurança jurídica - tanto dos artistas "de rua", quanto para quem deseja incluir tais ruas "transformadas" em novas obras.

Uma norma oposta teria o inconveniente pragmático de tornar as ruas com "grafites" tutelados pelo Direito Autoral como munidas de menor autonomia público/privada dos terceiros16. O artista que tem sua criação exibida em uma avenida, rua ou beco não "privatiza" os olhares e novas manifestações de arte dos não-titulares.

De outra monta, nada precata que o autor de um grafite exibido em via pública possa intentar pretensão específica para que nos "créditos" da obra nova haja a citação completa e suficiente sobre a autoria da criação pictórica. Ou seja, a relativa liberdade da retratação lateral, incidental, do grafite em via pública não é azo à omissão a autoria, ou a quaisquer outros direitos existenciais que guarnecem o autor de tal manifestação plástica.

_______

STJ, 3ª Turma, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, REsp 2.174.943/SP, J. 26/5/2025.

2 VIANNA, Tauanna Gonçalves. Direito de Propriedade e as Obras de Grafite. Rio de Janeiro: Revista da EMARF, n. 34, mai/out de 2021, p. 353 e seguintes; BARBOSA, Pedro Marcos Nunes & CASTRO, Raul Murad Ribeiro de. Graffiti Art Copyright Protection in Brazil: a short analysis. Rio de Janeiro: Revista de Direito da Cidade, UERJ, Fevereiro de 2019, Volume 11, numero 1.

3 "Ha' certos bens que, por sua natureza, fogem a` apropriac¸a~o individualizada: o ar, as a'guas do oceano, as ruas e prac¸as pu'blicas, o conhecimento cienti'fico, sa~o exemplos cla'ssicos dessa categoria. Na~o e' o fato de que tais bens estejam naturalmente livres de propriedade que os caracterizam como tais" BARBOSA, Dênis Borges. Questões Fundamentais de Direito de Autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 395.

4 "Por acaso constatou-se que a irresistível ascensão do Musée imaginaire cantado por Malraux, quer dizer, a multiplicação dos catálogos, dos livros e dos filmes de arte, tenha feito diminuir o público dos museus? Pelo contrário. Quanto mais difundidos os elementos recombináveis do museu imaginário, mais foram fundados prédios abertos ao público - cuja função era abrigar e expor a presença física das obras" LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34. 1996, p. 156.

Algumas delas não foram objeto de defesa formal, mas poderiam tê-lo sido.

6 Article 322-1 I. - « La destruction, la dégradation ou la détérioration d'un bien appartenant à autrui est punie de deux ans d'emprisonnement et de 30 000 euros d'amende, sauf s'il n'en est résulté qu'un dommage léger. II. - Le fait de tracer des inscriptions, des signes ou des dessins, sans autorisation préalable, sur les façades, les véhicules, les voies publiques ou le mobilier urbain est puni de 3 750 euros d'amende et d'une peine de travail d'intérêt général lorsqu'il n'en est résulté qu'un dommage léger ». Disponível em   https://www.legifrance.gouv.fr/codes/article_lc/LEGIARTI000047053456

7 LEI Nº 12.408, DE 25 DE MAIO DE 2011. Altera o art. 65 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para DESCRIMINALIZAR O ATO DE GRAFITAR, e dispõe sobre a proibição de comercialização de tintas em embalagens do tipo aerossol a menores de 18 (dezoito) anos. Art. 65.  PICHAR OU POR OUTRO MEIO CONSPURCAR EDIFICAÇÃO OU MONUMENTO URBANO:  Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.  § 1o  Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.  VALORIZAR O PATRIMÔNIO PÚBLICO OU PRIVADO MEDIANTE MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional."

8 RECURSO ESPECIAL Nº 1.746.739 - SP (2018/0136581-2) RELATOR MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

9 LDA: "As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais."

10 https://tactilestudio.co/achievements/fondation-louis-vuitton-sensory-decive-tactile-architectural-model/

11 BRANCO, Sérgio & VELOSO, Júlia. Banksy: anonimato e obras em lugares Públicos.Rio de Janeiro:  ITS, 29.10.2025, disponível em: https://itsriodejaneiro.medium.com/banksy-anonimato-e-obras-em-lugares-p%C3%BAblicos-33179a8c9fa1

12 TJSP apelação cível n° 0139084-90.2012.8.26.0100, Rel. Des. VITO GUGLIELMI https://www.tjsp.jus.br/Noticias/noticia?codigoNoticia=30772

13 Art. 24. São direitos morais do autor: IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

14 https://christojeanneclaude.net/artworks/wrapped-reichstag/

15 http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/1782186.stm

16 Caso interessante havido em Nova Iorque sobre a integridade de "murais" de rua e o desenvolvimento imobiliário é retratado em LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 282.

Pedro Marcos Nunes Barbosa

Pedro Marcos Nunes Barbosa

Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

Gustavo Almeida

Gustavo Almeida

Estágio Pós-Doutoral pela USP, Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Sócio Fundador de GMALAW. Vice-Presidente da CDADIE da OAB-RJ.

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