Reflexões sobre a nota técnica do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais e a inclusão da pessoa com deficiência nos concursos das polícias e corpos de bombeiros militares
A inclusão em carreiras militares é um dever constitucional ainda limitado por barreiras administrativas e culturais, exigindo ações afirmativas eficazes.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Atualizado em 28 de novembro de 2025 14:01
1. Introdução
A Constituição da República de 1988 inaugurou no Brasil uma nova ordem jurídica fundada na dignidade da pessoa humana, na igualdade substancial e na promoção de políticas inclusivas. Nesse contexto, o acesso das PcD - pessoas com deficiência aos cargos públicos passou a constituir não apenas um ideal ético, mas um dever jurídico-constitucional. O art. 37, VIII, da Constituição determina a reserva de vagas em concursos, enquanto outros dispositivos - como o art. 1º, III, e o art. 3º, III e IV - reforçam o compromisso estatal de reduzir desigualdades e combater discriminações1; no plano teórico, a centralidade desses princípios é desenvolvida por Sarlet2 e por José Afonso da Silva3.
Desde 2008, o autor deste trabalho tem se dedicado ao estudo e à prática jurídica voltados à inclusão da PcD em carreiras policiais e militares. Naquele ano, apresentou denúncia ao Tribunal de Contas da Paraíba diante da ausência de reserva de vagas no concurso para Delegado da Polícia Civil (PCPB), fato que marcou o início de uma trajetória de pesquisa e militância acadêmico-jurídica em defesa da igualdade material4. Em 2009, defendeu a monografia A Pessoa com Deficiência e o Direito Fundamental à Reserva de Vagas no Cargo de Delegado de Polícia, no UNIPÊ - Centro Universitário de João Pessoa, obra pioneira ao tratar do tema em perspectiva constitucional5. Em 2012, o STF, ao julgar o RE 676.335/DF, consolidou entendimento de que a reserva de vagas se estende aos concursos da Polícia Federal, inclusive para o cargo de Delegado, reforçando a constitucionalidade das ações afirmativas6.
No campo da igualdade de gênero, em abril de 2018 foi ajuizada pelo autor a ação 0823356-81.2018.8.15.2001, perante a 4ª Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, contestando a limitação de vagas femininas na Polícia Militar da Paraíba7. O tema alcançou o STF, que em 2024 declarou a inconstitucionalidade da restrição, reafirmando a isonomia entre homens e mulheres no acesso a carreiras militares8. Em dezembro de 2023, o autor publicou, em coautoria, o artigo Admissão da pessoa com deficiência na carreira policial militar na Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana (Curitiba, v.22, n.1, p. 1010-1032, 2024; DOI: 10.55905/oelv22n1-055; ISSN 1696-8352), aprofundando a compatibilização entre inclusão e peculiaridades funcionais das atividades militares9.
Já no ano de 2024, o Autor promoveu a ação popular que tramita na 2ª Vara da Fazenda de João Pessoa, sob 0876860-89.2024.8.15.2002, onde se discute o direito a reservas de vagas para PCD no Concurso CFO 2025. Neste processo, a morosidade judicial, certamente, levará a perda do objeto.
Apesar dos avanços, a realidade dos concursos militares revela um paradoxo: em praticamente todos os estados, a PcD é considerada equivocada e genericamente inapta ao exercício da atividade castrense e, em quase todos os certames, sequer é permitido que o candidato se inscreva, instituindo uma presunção de incapacidade absoluta e burlando o comando constitucional. Trata-se de um prejuízo - um juízo antecipado - que substitui a avaliação individual por uma exclusão apriorística e transfere ao indivíduo a responsabilidade por uma limitação que, na verdade, pertence ao próprio Estado, que não assume o dever de promover as adaptações razoáveis e de garantir avaliação biopsicossocial conforme a legislação vigente10 11.
Esse quadro ecoa resquícios de uma lógica eugênica, segundo a qual apenas os "melhores" e fisicamente perfeitos comporiam as corporações militares - um ideal de "guerreiro medieval" que supervaloriza o vigor físico e desconsidera atributos hoje decisivos, como inteligência, técnica e estratégia. O imaginário cultural ilustra o risco dessa mentalidade: no filme 300, inspirado na Batalha das Termópilas, a rejeição de um candidato com deficiência por não se enquadrar no padrão físico termina por desperdiçar seu conhecimento - que, mal orientado, torna-se decisivo para a derrota dos espartanos12. A metáfora é transparente: excluir por razões físicas pode ser não apenas inconstitucional, mas estrategicamente contraproducente, afinal de contas: quantas PcD comandam o crime?
A comparação com outras políticas afirmativas é igualmente elucidativa. A reserva de vagas para negros, fixada atualmente em 30% pela lei 15.142/25, representa avanço significativo e vem sendo aplicada de modo consistente no âmbito federal13. Em contrapartida, as PcD - embora amparadas por uma das legislações mais avançadas do mundo (Convenção da ONU com status constitucional e Lei Brasileira de Inclusão) - seguem, em regra, restritas a 5% das vagas e sujeitas a barreiras administrativas que esvaziam a efetividade da norma. À luz da teoria dos direitos fundamentais (Alexy)14 e da igualdade material (Barroso15; Bobbio)16, ações afirmativas não constituem privilégios, mas instrumentos de correção de desigualdades históricas; o STF, inclusive, já assentou essa compreensão em sede de controle concentrado.
Diante desse cenário, o presente estudo tem como objetivo realizar uma análise crítica da Nota Técnica nº 001/2025, emitida pelo Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, à luz dos fundamentos constitucionais e legais que regem a inclusão da pessoa com deficiência nas carreiras militares. Busca-se demonstrar a inconstitucionalidade das exclusões genéricas - inclusive da vedação de inscrição em concursos - e propor caminhos para a efetivação da igualdade substancial nesse campo específico, considerando o dever estatal de promover ações afirmativas e adaptações razoáveis em todas as etapas do acesso ao serviço público.
Metodologicamente, a pesquisa adota uma abordagem qualitativa, teórico-normativa e crítica, com base em análise documental, jurisprudencial e doutrinária. Examina-se, de modo sistemático, o texto da nota técnica, os dispositivos constitucionais pertinentes (especialmente os arts. 1º, III; 3º, III e IV; 37, VIII; e 142 da Constituição Federal), a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (decreto 6.949/09), a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (lei 13.146/15), a lei orgânica das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares (lei 14.751/23) e a lei 15.142/25, que amplia as cotas raciais e reforça a política de ações afirmativas no serviço público. Além disso, são analisadas decisões paradigmáticas do STF e a contribuição de autores como Sarlet, Barroso, Alexy, Bobbio, Bejan e Tsao, cuja produção teórica sustenta o debate sobre igualdade material e inclusão institucional.
Por fim, esta investigação pretende constituir uma base teórico-normativa e crítica para o aprofundamento do tema em pesquisas futuras - não apenas em um segundo trabalho, mas em uma série de artigos científicos voltados à análise comparativa da realidade normativa, jurisprudencial e editalícia de cada estado brasileiro, com atenção especial às corporações de Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar. O propósito é mapear avanços, resistências e lacunas na efetivação da inclusão das pessoas com deficiência, contribuindo para a consolidação de um panorama nacional crítico e propositivo, apto a fundamentar mudanças de paradigma e assegurar o deferimento pleno do direito da PcD no âmbito das carreiras militares.
Leia o artigo na íntegra.
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1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
3 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
4 FERNANDES, Ricardo Nascimento. Denúncia apresentada ao Tribunal de Contas da Paraíba sobre ausência de reserva de vagas em concurso da Polícia Civil (2008). João Pessoa: TCE/PB, 2008.
5 FERNANDES, Ricardo Nascimento. A Pessoa com Deficiência e o Direito Fundamental à Reserva de Vagas no Cargo de Delegado de Polícia. 2009. Monografia (Graduação em Direito) - Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), João Pessoa, 2009. 87 p.
6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 676.335/DF. Rel. Min. Cármen Lúcia. Brasília, DF, j. 2012. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/
7 PARAÍBA. Tribunal de Justiça. Processo nº 0823356-81.2018.8.15.2001. 4ª Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, 2018.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão que declarou a inconstitucionalidade da limitação de vagas femininas em concursos da Polícia Militar. Brasília, DF, j. 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/
9 FERNANDES, Ricardo Nascimento; FERNANDES, Ana Paula Gouveia Leite. Admissão da pessoa com deficiência na carreira policial militar. Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, Curitiba, v. 22, n. 1, p. 1010-1032, 2024. DOI: 10.55905/oelv22n1-055. ISSN 1696-8352.
10 BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015
11 BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 (Promulga a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 ago. 2009.
12 300. Direção: Zack Snyder. EUA: Warner Bros. Pictures, 2007. Filme (longa-metragem).
13 BRASIL. Lei nº 15.142, de 5 de junho de 2025. Reserva aos negros 30% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jun. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2025-2028/2025/lei/L15142.htm.
14 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
15 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
16 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo
Thomaz Gouveia Leite Fernandes
Sócio - Aluno do Valencia College - EUA Instagram: https://www.instagram.com/fernandesadvogados/
Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.




