Insegurança jurídica na responsabilização de empresas aéreas por atrasos e cancelamentos de voos em virtude de eventos meteorológicos
Cobrança por atrasos e cancelamentos em voos segue incerta, com normas conflitantes e decisões divergentes que aumentam a insegurança para passageiros e companhias.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Atualizado em 3 de dezembro de 2025 14:21
As dificuldades operacionais do transporte aéreo estão refletidas nos entendimentos desarmônicos dos tribunais brasileiros acerca da responsabilização das empresas aéreas por atrasos e cancelamentos de voos em virtude de eventos meteorológicos imprevisíveis, uma questão controversa.
No Brasil, a coexistência de diferentes regimes normativos - incluindo o CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica e o CDC - gera frequentes conflitos na interpretação das obrigações das transportadoras aéreas. No âmbito internacional, a Convenção de Varsóvia, complementada pela Convenção de Montreal, introduz parâmetros adicionais que moldam a responsabilidade das transportadoras em casos de atrasos.
O CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica (lei 7.565/1986) oferece um arcabouço especializado para regulamentar o transporte aéreo, com disposições que levam em consideração as particularidades técnicas e operacionais do setor. O art. 256 do CBA estabelece que a transportadora não será responsável por atrasos ou interrupções de viagens em virtude de força maior ou caso fortuito, o que inclui as restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas, refletindo uma perspectiva técnica que reconhece os limites operacionais das empresas aéreas e a necessidade de priorizar a segurança dos passageiros.
O CDC (lei 8.078/1990), por sua vez, adota uma abordagem focada na proteção ao consumidor, tratando a relação entre passageiros e empresas aéreas como uma típica relação de consumo. O art. 14 do CDC impõe responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços, exigindo a reparação de danos causados aos consumidores, salvo nos casos de inexistência de defeito na prestação do serviço ou culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Esse dispositivo pode ser interpretado de forma a responsabilizar as empresas aéreas, independentemente de culpa, por atrasos ou cancelamentos, mesmo quando decorrentes de eventos meteorológicos.
Neste ponto, destaca-se que, de modo geral, a jurisprudência trata as disputas sobre atrasos e cancelamento de voos como decorrentes de contratos de consumo, mesmo nos casos em que se decide pela aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica para afastar a responsabilidade civil das companhias aéreas.
Essa interação entre o CBA e o CDC constitui aparente antinomia normativa, uma vez que a responsabilidade objetiva prevista no CDC não considera os limites técnicos e operacionais que o CBA reconhece como fundamentais para a segurança do transporte aéreo. Essa tensão tem sido amplificada por interpretações judiciais divergentes nos tribunais pátrios, que alternam entre a aplicação do CDC para garantir maior proteção aos consumidores e a aplicação do CBA como norma especial e técnica.
Em qualquer dos casos, a empresa aérea continua obrigada a fornecer assistência material completa e adequada aos passageiros, conforme estabelecido pela ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, mediante a resolução 400/2016.
Além disso, importante ressaltar a distinção entre fortuito interno e externo, que parte da jurisprudência adota, com base nas lições de Agostinho Alvim1. Seguindo essa linha, os fortuitos internos são aqueles que fazem parte do próprio risco do empreendimento e, por isso, não afastam a responsabilidade do agente, enquanto os fortuitos externos estão fora do risco do negócio, se enquadrando como força maior ou "act of god" e se relacionando com causas ligadas à natureza.
No âmbito internacional, o STF já enfrentou diversas matérias relacionadas à Convenção de Varsóvia - complementada pela Convenção de Montreal -, que introduz parâmetros que moldam a responsabilidade das transportadoras em casos de atrasos em voos internacionais, e possui certo alinhamento ao entendimento manifestado pelo CBA, uma vez que determina que "o transportador não será responsável pelo dano ocasionado por atraso se prova que ele e seus prepostos adotaram todas as medidas que eram razoavelmente necessárias para evitar o dano ou que lhes foi impossível, a um e a outros, adotar tais medidas".
Em julgamento conjunto do RE 636.331 e do agravo em RE 766.618, o STF determinou a prevalência das Convenções de Varsóvia e Montreal sobre o CDC, como limitadores da responsabilidade das empresas aéreas nos casos de intercorrências em transporte internacional, fixando o Tema 2102.
Ao julgar os embargos de declaração no ARE 766.618/SP, em 30/11/2023, o Plenário do STF limitou a aplicação das aludidas convenções a prejuízos de ordem material, excluindo a sua incidência no que tange à pretensão de indenização por danos morais, perdurando a indefinição quanto ao ponto.
O STF reafirmou esse entendimento segundo o qual a pretensão indenizatória por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga e mercadoria está sujeita aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil, em especial as Convenções de Varsóvia e de Montreal, em julgamento com repercussão geral ocorrido em 27/2/20253.
Da mesma forma, a Suprema Corte ratificou sua jurisprudência de que as Convenções de Varsóvia e Montreal não se aplicam às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional, no julgamento do RE 1.394.401, fixando a seguinte tese de repercussão geral: "Não se aplicam as Convenções de Varsóvia e Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional".
Apesar desse entendimento firmado pelo STF, a aplicação dos dispositivos do CBA e das convenções internacionais segue sem uniformidade, especialmente com relação aos danos extrapatrimoniais. Os tribunais brasileiros ainda não conseguiram alinhar as disposições dessas normas específicas com os direitos garantidos pelo CDC, o que se demonstra necessário para evitar decisões contraditórias e assegurar um modelo operacional mais apropriado e previsível às empresas aéreas.
Não à toa, a lei 14.034/20, que dispôs sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19 e alterou o CBA, buscou evitar um colapso no setor, diante da quantidade excessiva de ações ajuizadas contra essas empresas em função de atraso de voos, regulamentando o excludente de responsabilidade referente aos fatores climáticos - previsto no art. 256, §3º - e invertendo a lógica do CDC com a inclusão do artigo 251-A, que atribuiu ao consumidor provar que houve "efetivo prejuízo" e sua extensão para o recebimento de indenização.
Essas alterações vão ao encontro de entendimento manifestado pelo STJ, como no julgamento do REsp 1.796.7164, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em que o tribunal decidiu que, com base nas circunstâncias particulares de cada evento concreto, se deve aferir "a comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros.".
Apesar disso, os entendimentos expostos pelos tribunais pátrios ainda são os mais diversos. De modo geral, essa ausência de uniformidade tem gerado significativa insegurança para todos os agentes envolvidos. Enquanto os consumidores enfrentam dificuldades em entender seus direitos, as empresas aéreas operam sob o risco de decisões judiciais conflitantes, que aumentam significativamente seus custos.
À vista disso, o STF deu o primeiro passo e reconheceu, em 23/8/2025, a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada no ARE 1.560.244, originando o Tema 1417, distribuído ao ministro Dias Toffoli, em que se discute, "à luz do art. 178, da Constituição Federal, se as normas sobre o transporte aéreo prevalecem em relação às normas de proteção ao consumidor para disciplinar a responsabilidade civil por cancelamento, alteração ou atraso de voo, por motivo de caso fortuito ou força maior, considerando o princípio da livre iniciativa e as garantias de segurança jurídica, de proteção ao consumidor e de reparação por dano material, moral ou à imagem.". Nos mesmos autos, o ministro relator Dias Toffoli determinou recentemente, em 26/11/2025, a suspensão de todos os processos que tratam da responsabilização de empresas aéreas por danos decorrentes de cancelamento, alteração ou atraso de voo.
A consolidação de entendimentos claros e objetivos pelos tribunais superiores sobre a aplicação do CBA, do CDC e das Convenções internacionais deverá representar um avanço relevante na solução dessas controvérsias que envolvem o transporte aéreo. Nesse contexto, a consideração da prevalência do CBA em voos domésticos e da Convenção de Varsóvia em voos internacionais, com base no princípio da especialidade, tem sido apontada como uma abordagem técnica e coerente para lidar com essas questões, buscando conciliar a proteção ao consumidor com as especificidades operacionais do setor aéreo.
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1 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1980.
2 Tema 210/STF: "Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. O presente entendimento não se aplica às hipóteses de danos extrapatrimoniais."
3 Tema 1366 - Responsabilidade por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga; Leading Case: RE 1520841; Tese: "1. A pretensão indenizatória por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga e mercadoria está sujeita aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil, em especial as Convenções de Varsóvia e de Montreal; 2. É infraconstitucional e fática a controvérsia sobre o afastamento da limitação à pretensão indenizatória quando a transportadora tem conhecimento do valor da carga ou age com dolo ou culpa grave."
4 STJ, REsp nº 1.796.716/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 29/8/2019.
André Macedo de Oliveira
Sócio das áreas de Solução de Conflitos e Tribunais Superiores do BMA Advogados.
Sarah Roriz de Freitas
Advogada das áreas de Solução de Conflitos e Tribunais Superiores do BMA Advogados.
João Pedro Ramos Soares Souza
Advogado das áreas de Solução de Conflitos e Tribunais Superiores do BMA Advogados.




