CBS e IBS não integram bases de cálculo de outros tributos
A inclusão de CBS e IBS na base de outros tributos é inconstitucional, pois não representam riqueza própria, violam a não cumulatividade e desorganizam o modelo fiscal da EC 132/23.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado às 07:36
A natureza jurídica do IBS e da CBS, cuja significativa alteração promovida pela EC 132/23 - e regulamentada pela LC 214/25 - vem sendo amplamente debatida, foi instituída pelos adicionados arts. 156-A (IBS) e 195, inciso V (CBS)1, ambos da CF/88, delineando-se que ambos incidem sobre operações com bens e serviços, não se tratando, assim, de tributos sobre a renda, lucro ou faturamento.
Em acréscimo, o art. 149-A da CF/882, especialmente o inciso IV, ressalta que os tributos são orientados pela não cumulatividade plena. Assim, utilizá-los como base de cálculo de outros tributos, como IRPJ, CSLL ou contribuições previdenciárias, contraria a técnica do novo IVA-dual brasileiro e rompe a coerência constitucional que inspirou sua criação.
Do ponto de vista jurídico-contábil, isso é decisivo. A inclusão de CBS e IBS na base de cálculo de outros tributos pressupõe que tais valores constituem riqueza do contribuinte. Entretanto, assim como ocorre com ICMS, ISS, PIS e Cofins, a CBS e o IBS não representam qualquer acréscimo patrimonial, sendo ingressos meramente transitórios, destinados integralmente ao Estado e, por isso, não há qualquer autorização constitucional para que sejam interpretados como receitas próprias da empresa.
Recentemente, o cenário jurídico-tributário se deparou duas soluções de consulta, sobre o tema, de órgãos estaduais diferentes, e cujas conclusões são igualmente diversas.
A Secretaria da Fazenda do Estado do São Paulo, por meio da consulta 00032303/2025, definiu que "durante o período de convivência entre o ICMS, o IBS e a CBS, os valores correspondentes ao IBS e à CBS integram o valor da operação, compondo, portanto, a base de cálculo do ICMS, enquanto este permanecer em vigor".
Por outro lado, a Secretaria da Fazenda do Distrito Federal e Territórios, em solução de consulta 23/25 (processo SEI 04044-00038195/2025-45), entendeu de forma diametralmente oposta. Na ocasião, afirmou que "em relação ao ano base de 2026, salvo disposição literal da legislação tributária, a CBS e o IBS não devem fazer parte da base de cálculo do ICMS, com fundamento lógico jurídico nos parágrafos 1º, 2º e 4º do artigo 125 do ADCT, combinado com artigo 348 da LC nº 214/2025".
A existência de posicionamentos diferentes apenas reforça a necessidade de análise crítica.
Sobre o tema, a doutrina de ATALIBA3 sustenta que receita somente se caracteriza quando o ingresso patrimonial se dá com definitividade, incorporando-se ao patrimônio do contribuinte, visão que igualmente é compartilhada por MINATEL4, quando elucida brilhantemente que ingressos acompanhados de obrigações correlatas de mesma grandeza jamais configuram receita, pois não há disponibilidade econômica nem jurídica em favor da entidade que os recebe, o que não ocorre no caso do IBS e da CBS, pois os valores são destinados de forma exclusiva ao Estado.
Por outro lado, sob a ótica contábil, o CPC 47 (Receitas) e a NBC TG 26 - R5 (Demonstrações Contábeis) determinam que tributos sobre consumo, como CBS e IBS, sejam registrados como passivos, e não como receitas, por serem valores destinados ao Estado. Assim, ao emitir a nota fiscal, o montante de CBS/IBS configura obrigação que se extingue com o pagamento, sem afetar o patrimônio líquido. Por isso, a própria estrutura contábil impede que esses valores integrem a base de tributos que exigem riqueza própria.
Em outros termos, própria materialidade desses tributos, restrita às operações com bens e serviços, impede que sejam tratados como receitas aptas a integrar a base de cálculo de outros gravames. Da mesma forma, qualquer tentativa de converter ingressos transitórios em riqueza tributável viola o desenho constitucional que sustenta o novo modelo fiscal.
A ilegalidade da inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo de outros tributos se sobressai, assim, em três vertentes.
Primeiro, a ausência de proibição expressa não autoriza incluir a CBS e o IBS na base de outros tributos, pois só a lei estrita pode ampliar bases econômicas, e o silêncio não transforma valores de repasse obrigatório em riqueza tributável. Também não se sustenta o argumento de neutralidade arrecadatória, já que neutralidade não cria riqueza nem converte obrigações em receita, e o ressarcimento/restituição futuro não dá legitimidade à base inconstitucional.
Segundo, a tentativa de tratar a CBS ou o IBS como receita afronta o art. 110 do CTN, que impede a alteração de conceitos de direito privado utilizados pela Constituição para definir competência tributária, logo, ao empregar os termos "receita", "faturamento" e "renda", nenhum legislador ou intérprete pode ampliar seu conteúdo para abarcar valores sem acréscimo patrimonial. Por isso, incluir CBS ou IBS como riqueza própria do contribuinte viola diretamente essa vedação.
Esse entendimento se reforça com o alerta institucional feito pelo STJ no relatório aprovado pela 1ª seção em abril de 20255. O documento reconhece que a criação da CBS e do IBS, apesar do discurso de simplificação, pode ampliar significativamente a litigiosidade tributária devido à estrutura federativa fragmentada da arrecadação. O STJ advertiu que interpretações ampliativas de base de cálculo, como a tentativa de considerar CBS e IBS como receitas, agravariam exponencialmente o contencioso, produzindo insegurança sistêmica e comprometendo o funcionamento do novo modelo, e ao aceitar que CBS e IBS sejam incorporados como riqueza, cria-se exatamente o tipo de instabilidade que o Tribunal classificou como insustentável.6
A complexidade se agrava porque, ao admitir CBS ou IBS como base de outros tributos, abre-se espaço para múltiplas autuações simultâneas sobre um valor transitório, justamente como ocorreu acima, já que a arrecadação é tripartida (IBS é fiscalizado por Estados e municípios), violando o pacto federativo. O resultado é a desorganização do sistema e a negação do modelo instituído pela emenda 132/23.
A jurisprudência do STF apenas reforça essa arquitetura constitucional, como no RE 574.7067, em que o Tribunal afirmou que o ICMS não pode compor o faturamento, pois não constitui receita própria. Essa decisão ecoa uma linha hermenêutica estável presente no RE 606.1078 e RE 627.8159, segundo a qual apenas valores que se incorporam ao patrimônio do contribuinte podem compor bases econômicas de tributos cuja materialidade seja renda, faturamento ou receita, conforme repousa sobre os arts. 195, I, "b", e 153, III, da Carta Maior.
Essas conclusões dialogam diretamente com a doutrina MARIZ DE OLIVEIRA10, ao sustentar que receita é um plus jurídico que se agrega ao patrimônio, jamais um valor que circula com obrigação de repasse, e nada disso se verifica em relação à CBS ou ao IBS.
Terceiro, a utilização da CBS e do IBS na base de outros tributos viola o art. 154, inciso I, da CF/88, ao duplicar a mesma base econômica e transformar tributos sobre consumo em fundamento de exações sobre renda, lucro ou faturamento, criando sobreposição inconstitucional de competências.
Além disso, a inclusão de CBS e IBS na base de cálculo de outros tributos configuraria um confisco indireto, vedado pelo art. 150, IV, da Carta Magna, ou seja, o Estado aumenta a tributação não por elevar alíquotas, mas mediante a adulteração da base econômica, inflando-a artificialmente com valores que não pertencem ao contribuinte, desfigurando a transparência e a racionalidade fiscal exigidas pela reforma.
Sob a perspectiva dos princípios da neutralidade e da eficiência tributária, centrais no desenho de qualquer IVA moderno, a inclusão pretendida é incompatível com a própria lógica da reforma. A neutralidade exige que o tributo não interfira nas escolhas econômicas dos agentes, portanto, o oposto de indução tributária11: tributo neutro é o que influencia o comportamento dos agentes econômicos na menor medida possível12, de modo a assegurar um ambiente de igualdade de condições competitivas entre os agentes econômicos13. Inflar bases de tributos sobre renda ou folha com valores de CBS e IBS pune artificialmente a produção, encarece operações e reinstala a cumulatividade que o IVA busca eliminar, negando o próprio propósito do modelo.
Essa distorção contraria também experiências internacionais consolidadas. Em todos os países que operam modelos de IVA, por exemplo, Canadá, Nova Zelândia e a Índia, o imposto sobre valor agregado jamais compõe a base de cálculo de tributos sobre renda ou folha14. O Conselho da União Europeia é explícito ao afirmar que o IVA deve ser "neutro e transparente"15, e que não pode ser tratado como receita ou acréscimo patrimonial do contribuinte, e ao admitir, mesmo que indiretamente, que a CBS ou o IBS integrem a base de cálculo de outros tributos, o Brasil se afastaria do padrão internacional que inspirou a própria reforma, produzindo uma incoerência estrutural: adota o nome e o desenho de um IVA, mas subverte seus fundamentos materiais.
A utilização de CBS e IBS na base do IRPJ, CSLL e contribuições previdenciárias amplia artificialmente essas bases econômicas, elevando preços, aumentando o custo Brasil, reduzindo competitividade, desestimulando investimentos e intensificando a litigiosidade, reinstalando indiretamente a cumulatividade que a emenda 132/23 buscou eliminar.
À luz dos fundamentos doutrinários, contábeis, jurisprudenciais e constitucionais, a inclusão da CBS e do IBS na base de qualquer outro tributo é inconstitucional e ilegal, por violar capacidade contributiva, legalidade, não cumulatividade, tipicidade e o conceito constitucional de receita, além de desorganizar o sistema com tributação em cascata e aumento de litigiosidade.
Em síntese, a inclusão de CBS e IBS como base de cálculo de outros tributos viola a coerência estrutural do sistema constitucional tributário, corrompe a tipicidade cerrada, subverte a não cumulatividade, dilui a legalidade, compromete a segurança jurídica e distorce a capacidade contributiva, promovendo exatamente a irracionalidade econômica que a reforma buscou eliminar.
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1 Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: V - sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar.
2 Art. 149-B. Os tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, observarão as mesmas regras em relação a: IV - regras de não cumulatividade e de creditamento.
3 ATALIBA. Geraldo. Estudos e Pareceres de direito tributário. In Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. I, p. 81. "o conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada. Entrada é todo o dinheiro que ingressa nos cofres de uma entidade. Nem toda entrada é receita. Receita é a entrada em que passa a pertencer à entidade. Assim, só se considera receita o ingresso de dinheiro que venha a integrar o patrimônio da entidade que a recebe (...)".
4 MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua apuração. São Paulo: MP Editora, 2005. p. 101. "... nem todo ingresso tem natureza de receita, sendo imprescindível para qualificá-lo o caráter de definitividade da quantia ingressada, o que não acontece com valores só transitados pelo patrimônio da pessoa jurídica, pois são por ela recebidos sob condição, ou seja, sob regime jurídico, o qual, ainda que lhe dê momentânea disponibilidade, não lhe outorga definitiva titularidade, pelo fato de os recursos adentrarem o patrimônio carregando simultânea obrigação de igual grandeza. O mesmo acontece com os valores recebidos na qualidade de mandatário, por conta e ordem de terceiros, ou recebidos a título de empréstimo, de depósito, de caução. Há momentânea disponibilidade, é inegável, mas não com o definitivo animus rem sibi de titular, de dono, de proprietário, e sim com animus de devedor, de responsável, de obrigado".
5 STJ. Aprovado o relatório do grupo de trabalho sobre os impactos processuais da reforma tributária pela 1ª Seção. Disponível em: https://www.stj.jus.br/.../24042025-Aprovado-o-relatorio-do-grupo-de-trabalho
6 https://www.conjur.com.br/2025-jul-05/reforma-tributaria-e-contencioso-judicial-na-analise-do-relatorio-oficial-do-stj/ -acesso em 24.11.2025
7 Plenário. Relatora Ministra Cármen Lúcia. DJE nº 52, divulgado em 16/03/2017
8 STF, Pleno, Relatora Min. Rosa Weber, DJe nº 103, divulgado em 31/05/2013
9 p. 5 do Voto. DJe nº 192, divulgado em 30/09/2013, Ministro Dias Toffoli
10 MARINS DE OLIVEIRA. Ricardo. Fundamentos do Imposto de Renda, p. 83, item n. II.2.2008, Quartien Latin
11 ZILVETI, Fernando Aurélio. Variações sobre o princípio da neutralidade no direito tributário internacional. Revista Direito Tributário Atual v. 19. São Paulo: IBDT, 2005, p. 24-40 (26).
12 DERZI, Misabel Abreu Machado; MOREIRA, André Mendes. Caminhos para a neutralidade dos IVAs no Brasil: a necessidade de revisão do crédito físico à luz dos precedentes do STF. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; ZILVETI, Fernando Aurélio; MOSQUERA, Roberto Quiroga; PURETZ, Tadeu (coord.). Direito tributário: estudos em homenagem ao Professor Luís Eduardo Schoueri. São Paulo: IBDT, 2023, p. 445-456.
13 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 14. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 27-28. No mesmo sentido, cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. Distorções do princípio da não-cumulatividade no ICMS - comparação com o IVA europeu. In: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro et al. (org.). Temas de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 118-119.
14 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. COELHO, Isaías. et al. Reforma tributária e neutralidade do IVA. / Eurico Marcos Diniz de Santi. Isaías Coelho. et al. - São Paulo: Editora Max Limonad, 2023, pg. 65/72
15 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. COELHO, Isaías, op. cit., pg. 27/63



