Se o Estado não oferece saúde odontológica, pode exigir dentes perfeitos do candidato em concursos?
Exigências odontológicas em concursos violam Constituição quando não ligadas ao cargo e refletem omissão estatal na garantia da saúde bucal.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado em 17 de dezembro de 2025 10:33
Todo candidato que decide trilhar o caminho dos concursos públicos sabe que a trajetória é marcada por renúncias, estudo intenso e esperança. Cada página lida, cada madrugada acordada e cada simulado realizado representa um investimento no futuro. Por isso, é profundamente injusto quando, ao final dessa caminhada, o candidato é surpreendido por exigências que não dizem respeito à sua capacidade, ao seu mérito ou ao seu desempenho real: tratam-se de requisitos estéticos travestidos de critérios médicos.
Uma das situações mais dramáticas ocorre nos exames odontológicos, quando editais impõem condições como: número mínimo de dentes, antagonistas perfeitos, ausência de cáries, inexistência de mordidas alteradas, próteses impecáveis ou anatomias ideais que, em muitos casos, nada têm a ver com o exercício do cargo. A questão que surge é inevitável: pode o Estado exigir dentes perfeitos se ele mesmo não oferece saúde odontológica adequada à população?
A resposta é clara: não, não pode. E a razão é jurídica, ética e constitucional.
A Constituição Federal estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado (arts. 6º e 196). Isso inclui a saúde bucal, que é parte da integralidade do cuidado assegurado pelo SUS - Sistema Único de Saúde. No entanto, a realidade brasileira revela uma dura contradição: milhões de pessoas não têm acesso regular a atendimento odontológico de qualidade. Em muitos municípios, o tempo de espera por um dentista chega a meses; próteses dentárias são distribuídas de forma insuficiente; e restaurações definitivas, quando realizadas, dependem de uma estrutura extremamente limitada.
Diante dessa realidade, exigir perfeição odontológica é penalizar o candidato pela omissão do próprio Estado. Trata-se de evidente violação dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da isonomia material. O Estado cria a exigência, mas não oferece condições para que a população a cumpra. É cobrar aquilo que ele mesmo não entrega.
Esse tipo de exigência configura o que o Direito Administrativo chama de comportamento contraditório do Estado (venire contra factum proprium). Em outras palavras: não é permitido ao Estado exigir resultados que ele mesmo impede ou dificulta. Do mesmo modo, aplica-se o princípio clássico da impossibilidade jurídica: ninguém pode ser obrigado ao impossível. Se a reabilitação odontológica não é assegurada pelo setor público, não pode servir como critério eliminatório.
O STF e o STJ têm consolidado esse entendimento ao afirmar que requisitos físicos, médicos ou estéticos só são válidos quando forem essenciais ao cargo, previstos em lei e compatíveis com o princípio da razoabilidade. Não basta a previsão em edital; não basta a rigidez técnica; e não basta a alegação genérica de saúde. É preciso demonstrar a pertinência direta entre o requisito e as atribuições do cargo - o que, no caso de ausência dentária ou pequenas alterações bucais, praticamente nunca ocorre.
Além disso, a eliminação do candidato por condições tratáveis é expressamente rejeitada pela jurisprudência. A Justiça tem determinado que o candidato não pode ser excluído por situações reversíveis, justamente porque o problema pode ser solucionado. E é aqui que surge o ponto central: se o Estado considera a condição um problema de saúde, sua obrigação é tratar, não eliminar.
Imagine um candidato reprovado por ter duas cáries, uma prótese antiga ou ausência parcial dentária. Esses problemas são tratáveis dentro dos protocolos do SUS. Logo, não há base jurídica para a eliminação. O correto seria conceder prazo para tratamento, solicitar reavaliação posterior ou, no mínimo, permitir o prosseguimento no concurso até conclusão do processo terapêutico. A exclusão pura e simples revela não apenas ilegalidade, mas um profundo descompromisso com o princípio da dignidade da pessoa humana.
A mensagem que deixamos é simples: o Estado não pode exigir aquilo que ele mesmo não oferece. Se a saúde bucal é um direito constitucional e se as falhas são tratáveis, o candidato não pode ser punido pela insuficiência estrutural do próprio sistema público de saúde.
Se você foi eliminado por critérios odontológicos, não aceite essa injustiça sem orientação. A Constituição e os tribunais estão ao lado do candidato.
Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial MilItar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo
Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.



