dr. Pintassilgo

Guaratinguetá

Poder voar tem vantagens inimagináveis. O vôo é, em última instância, o desapego à sisudez da terra. O terreno é por vezes segregador, não sendo à toa o planar dos pássaros o símbolo da liberdade.

O pensamento do homem também pode ser comparado a um vôo. Livre, pode atingir os rincões inalcançáveis pelos céticos ; preso, limita-se o mundo e o caminhar do homem a um lugarejo solitário e de terras estéreis.

Digo isso por ainda não haver conformidade da parte deste mero doutorzinho, de que existam impedimentos, em sua maioria injustificáveis, para que se mostre a Verdade. A Verdade. Simplesmente a Verdade.

Ainda que o país esteja atolado em crise ética, não há nada que justifique o temor em relação às atitudes de todos os cidadãos. “Para que?”, “qual sua intenção?”, “quem autorizou?”, são as indagações mais freqüentes.

Como se nossas instituições fossem templos, um forte protegido do olhar do povo. Como se povo e instituições fossem entes totalmente sem relacionamento algum, estando estas livres, autônomas, decidindo seu próprio destino à revelia daquele.

O Direito é a uma das mais nobres formas de pensar do homem : a busca pelo justo, pela eqüidade, pelo amparo, a forma mais civilizada de equiparar os homens, sem que haja necessidade de uma funda de Davi. É, afinal, a “disciplina da convivência humana”.

Sobrevoando Guaratinguetá, onde fui buscar colóquio com as formosas e esbeltas garças brancas (e também flerte, sem que nosso amado Diretor saiba), de beleza ímpar por suas penas que cegam de tão alvas, tive os mesmos sabores e dissabores da aprazível Itapetininga. Sendo comarca das mais antigas, a terra de Rodrigues Alves, vim para cá de forma entusiasmada.

Porém, as desventuras nublaram minhas idéias.

Não consigo conceber, que no Estado democrático haja este tipo de “censura” e posicionamento. Não consigo realizar, nem nos mais forçosos exercícios de entendimento, que as instituições crêem que cumprem de forma competente seu dever estando distantes da população.

Enfim, constato com olhos marejados que o povo não tem acesso à Justiça ! Não do acesso à invocação jurisdicional, mas do acesso ao corpo do Judiciário.

Qual o receio ?

Por que estas figuras públicas e políticas não concebem o relacionamento com o povo ? O mesmo povo que depende de suas decisões, de seus despachos, de seu profícuo labor.

Por que aprisionar pensamentos ? Por que cercear a busca pelo bem comum ? Qual, então, a finalidade do Direito ? Alguém responda, por gentileza, a esta pergunta... cale esta dúvida em forma de espinho, que fere agora este pobre passarinho !

Lembro-me do Professor Vicente Ráo, no monumental “O Direito e a Vida dos Direitos”. Em vôo seguro pelo Direito, o saudoso mestre observava :

“Por uma suposta felicidade coletiva, política, social, ou econômica, não se deve pagar o preço do aviltamento do homem, da supressão total, ou totalitária, de sua liberdade espiritual, intelectual, cívica e econômica, o preço, isto é, da destruição de sua personalidade.”

“Suposta” ? Sim o termo “suposta” cabe aqui como nunca. Por uma suposta “ordem”, ou seja, uma ordem que não nos convém, por uma suposta harmonia que sabemos não existir, por uma suposta “regra”, somos aviltados em nosso Direito.

É o cenário do cenário : ou seja, caros migalheiros, é a camada de objetos, decorações, todos postos em cena sem função alguma. Num teatro que já perdeu sua inspiração e sua vontade de fazer ir além, pensar.

Emaranhados que estamos em regras, leis inócuas, sem saber onde está a almejada zona de escape que nos dará um fôlego e nos levará rumo a um caminho melhor, mais digno.

Os pensamentos são presos. As instituições distantes. O povo andando, muitas vezes em círculos. Preferimos a segregação arenosa ao ar libertador do vôo.

E nosso futuro, como brasileiros, e por que não, como seres humanos, posto em xeque justamente pelo nosso descaso com o fim maior do Estado Democrático de Direito : o bem comum.

O argumento de zelar pela instituição, e pela segurança dos servidores, é sempre onde escuda a força que impede. Mas, para estes, a interpretação das regras jurídicas deve ser o principal. Buscar o elemento teleológico das regras, adequando-as cada uma ao caso concreto.

O vôo deste humilde pássaro, que se apresenta ao magistrado denotando seu amor ao Direito, é ceifado pelo argumento duro, sem interpretação.

Assim não há Justiça. E, conseqüentemente, não há amor.

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