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Escândalo | Orçamento secreto

Bilhões secretos no Orçamento para a base, é disso que se trata

Além de repasse do dinheiro público sem a devida publicidade, com suspeitas de superfaturamento, governo pode ter beneficiado alguns parlamentares em detrimento de outros, dando a eles a possibilidade de indicar onde desejariam alocar recursos.

Da Redação

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atualizado às 18:57

Favorecimento de parlamentares pelo Poder Executivo para aumentar a base de apoio. Este toma lá da cá lhe parece familiar, caro migalheiro? Alguns leitores devem dizer taxativamente que sim ao lembrar fatos idos e vividos na história recente do país.

No entanto, o que trazemos nesta reportagem é algo que pode se tornar um grande escândalo: o governo é acusado de permitir o repasse de cifras bilionárias a congressistas por meio de curiosas e obscuras emendas parlamentares na lei orçamentária.

Neste caso, tem-se de tudo: compra de trator superfaturado, emenda com apelido, ações no STF... só faltou uma coisinha: a transparência. 

Transparência ou publicidade que, ao contrário do que se imagina, não é mera perfumaria e, sim, princípio constitucional. Aquele mesmo princípio que deve pautar toda a Administração Pública.

Entenda. 

 (Imagem: Isac Nóbrega | PR)

(Imagem: Isac Nóbrega | PR)

O caminho até o orçamento secreto

A LOA - Lei Orçamentária Anual é um planejamento elaborado pelo Poder Executivo que estabelece as despesas e as receitas que serão realizadas no próximo ano. Esse planejamento é enviado ao Congresso para ser discutido na Comissão Mista de Orçamento. É nesta etapa que o planejamento pode ser discutido e alterado pelos parlamentares por meio de emendas.

As emendas feitas pelos parlamentares podem acrescentar, suprimir ou modificar itens tendo em vista compromissos (como obras e investimentos) assumidos pelos congressistas junto aos seus eleitores. Existem quatro tipos de emendas ao orçamento: (i) individuais; (ii) de bancada; (iii) de comissão; (iv) de relator.

As emendas de relator apareceram na LDO de 2020 (lei 13.898/20), que as batizou de RP 9. Estas emendas são feitas pelo deputado ou senador que, naquele determinado ano, foi escolhido para produzir o parecer final sobre o orçamento. A emenda de relator tem (ou deveria ter) caráter puramente técnico, que permite ao relator-geral do parecer fazer ajustes finais e adequar o orçamento à legislação de regência. No entanto, não parece ser isso o que vem ocorrendo.

*RP vem da sigla de Resultado Primário, um indicador de resultado fiscal. Nove refere-se ao nono tipo de despesa no projeto de lei orçamentária. Ex: RP 1 - despesa primária obrigatória; RP 2 - despesa primária discricionária etc.

Enquanto as emendas individuais e de bancada são regidas e limitadas por normas constitucionais (EC 86/15 e EC 100/19), direcionando a alocação dos recursos; as emendas do relator-geral são regidas apenas pela resolução 1/06, do Congresso Nacional. Ou seja, sem uma previsão constitucional específica para as RP 9, o relator pode remanejar a previsão de gastos do governo Federal para outras áreas, distribuindo ao seu talante os valores.

Importante ressaltar que, inicialmente, Bolsonaro vetou a previsão do RP 9. Mas, pouco tempo depois, a emenda foi reinserida, em termos quase idênticos, a partir das alterações na LDO feitas pela lei 13.957/19.

A seção Siga Brasil, do Senado, mostra que de 2015 a 2019 não existiam valores autorizados para a RP 9. Em 2020, por outro lado, foram autorizados mais de R$ 20 bilhões e em 2021, quase R$ 17 bilhões.

Surge, então, a pergunta: por que a imprensa chama de "orçamento secreto" se os valores estão disponíveis em site público? O que ocorre é que, diferentemente das emendas individuais e de bancada, as RP 9 - inexplicavelmente, e ao arrepio da Constituição - não têm tido suas informações individualizadas e publicizadas.

Tratorando a base

Se não há transparência com dinheiro público, muita coisa pode ser feita nos bastidores. Ah... e como pode.

E é disso que o governo está sendo acusado. Segundo reportagem d'O Estado de S. Paulo, bilhões de reais foram destinados às emendas de relator em 2020 como forma de aumentar a base de apoio do governo Bolsonaro no Congresso. 

Como isso foi feito? Em alguns casos, com tratores. Sim, leitor. Acompanhe-nos.

De acordo com a reportagem do centenário matutino, parte da verba da RP 9 serviu para comprar mais de 100 tratores para os parlamentares enviarem aos seus redutos eleitorais. As compras teriam sido feitas com preços até 259% acima dos valores de referência. 

Além da compra de tratores, o jornal obteve acesso ao conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados para indicar como eles preferiam usar os recursos (pavimentação, compra de maquinário, produtos agrícolas etc).

Afora o uso indevido do dinheiro público, a reportagem mostra que o Executivo pode ter beneficiado alguns parlamentares, dando a eles a possibilidade de indicar onde desejariam alocar recursos.

O governo respondeu à reportagem e disse repudiar as acusações afirmando que as tais RP9 são de responsabilidade do Congresso e que "a reportagem teve acesso, por exemplo, aos ofícios de parlamentares da oposição que tiveram indicações contempladas dentro do RP9, mas preferiu omiti-los".

Ora, ora. Não é um argumento sério esse do governo. Não é possível crer que, pelo fato de ter eventuamente parlamentar de oposição recebido dinheiro nesse orçamento esconso, que ele possa ficar à sorrelva. 

Como se não bastasse, o governo Bolsonaro se esquece que há em suas mãos o instrumento do veto.

E o que aconteceu nestes últimos dias? Bolsonaro sancionou a LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias, e não vetou as famigeradas emendas RP 9, que compõem o chamado orçamento secreto.

STF

O escândalo chegou ao STF. Três partidos ajuizaram ADPFs para contestar o orçamento secreto/paralelo: Cidadania (ADPF 850); Partido Socialista Brasileiro (ADPF 851) e o PSOL (ADPF 854).

As agremiações dizem que foi criado um tipo de emenda sob a nomenclatura de "emenda do relator" como verdadeira moeda de troca para angariar apoio político para o governo Federal e influenciar a apreciação de proposições legislativas no Congresso Nacional.

"Vê-se que o Poder Público, informalmente e às margens de da legalidade, instituiu um novo regime de emendas, que se prestam aos mesmos fins das emendas individuais e de bancada - incluir novas programações orçamentárias -, mas não se submetem aos limites quantitativos e materiais do art. 166 da CF, em nítida violação ao regime constitucional das emendas."

No Supremo, os partidos pedem:

  • Suspensão imediata da execução das emendas do relator-geral (RP 9) previstas no orçamento de 2021 e a publicização das informações referentes à autoria das indicações e à destinação dos recursos das emendas do relator em 2020 e 2021, uma vez que presentes os requisitos da probabilidade do direito e do perigo na demora;
  • Inconstitucionalidade do desvirtuamento das emendas do relator, consubstanciado na captura de relevantes quantias do orçamento Federal sem o atendimento às regras do regime constitucional de emendas e à transparência orçamentária.

O que diz a PGR

Augusto Aras já se manifestou nas ações no sentido de julgá-las improcedentes. O PGR defende que ADPF não serve para a impugnação de matéria interna do Congresso Nacional. "É exatamente o caso do alegado desvirtuamento das emendas do relator-geral do projeto de lei orçamentária", afirmou.

Sobre a RP 9, o PGR diz que não há inconstitucionalidade na própria existência das emendas do relator-geral: "se nos anos de 2020 e 2021 cifras bilionárias passaram a integrar o orçamento da União pela via das emendas do relator-geral (RP 9), isso ocorreu porque seus próprios pares - membros da CMO - o autorizaram".

Em resumo, Aras diz que é o TCU o órgão constitucionalmente incumbido de fiscalizar a demanda e o tema já está lá. "Nesse cenário, qualquer decisão sobre o assunto, tomada nestas ADPFs, seria precipitada, pois ausentes elementos probatórios indispensáveis", disse.

Leia a íntegra da manifestação do PGR.

Com a palavra, a ministra Rosa Weber

As ações estão nas mãos da vice-presidente da Corte, a ministra Rosa Weber.

Espera-se que a primeira decisão da relatora seja no sentido de determinar a publicidade das informações referentes à autoria das indicações e à destinação dos recursos das emendas do relator em 2020 e 2021.

E não por mero capricho, mas porque é esse o mandamento constitucional. Aliás, onde já se viu dinheiro da burra pública ser distribuído sem que o povo saiba de onde saiu e para onde foi?

A saber, estranhamente o PSB e o Cidadania pediram desistência das ações. A ministra Rosa Weber, no entanto, considerou o pedido inadmissível: "proposta ação de controle abstrato de constitucionalidade 'não se admitirá desistência'", lembrou a ministra.

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