Ponto a ponto: Entenda decisão do STF que derrubou o marco temporal
Supremo detalhou inconstitucionalidades da lei 14.701/23 e fixou regras de transição.
Da Redação
domingo, 21 de dezembro de 2025
Atualizado às 19:01
Na última quinta-feira, 18, o STF reafirmou a inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, afastando o entendimento segundo o qual os povos indígenas só teriam direito às áreas que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da CF - ou que estivessem em disputa judicial naquele momento.
Embora tenha prevalecido a rejeição à tese, não houve convergência imediata sobre todos os parâmetros. Os contornos finais vieram apenas no dia 19, com a proclamação do resultado do julgamento virtual.
A seguir, veja a proclamação e entenda, ponto a ponto, o que ficou definido.
1. Comissão Especial e diálogo institucional
O STF homologou o produto da Comissão Especial criada para debater o tema, reconhecendo-o como uma das interpretações possíveis no enfrentamento do conflito constitucional.
O resultado será encaminhado ao Congresso Nacional, para que o Parlamento adote as providências que entender cabíveis, reforçando a lógica de diálogo institucional entre os Poderes.
2. Marco temporal é inconstitucional
A Corte declarou inconstitucional qualquer interpretação que condicione o reconhecimento de terras indígenas à ocupação em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da CF.
Foram invalidados:
- A expressão "na data da promulgação da Constituição Federal" do art. 4º da lei;
- Dispositivos que vinculavam o direito territorial indígena à situação fática ou jurídica existente em 1988.
O STF reafirmou que os direitos indígenas são originários, anteriores ao próprio Estado, e não dependem de marco temporal.
3. Laudos antropológicos: áudio ou vídeo
A Corte afastou a exigência cumulativa de registro em "áudio e vídeo" dos estudos técnicos, fixando interpretação conforme para que a exigência seja alternativa ("áudio ou vídeo").
Além disso, a nova regra não se aplica a laudos antropológicos já concluídos e entregues à Funai antes da vigência da lei.
4. Procedimento demarcatório: interpretação conforme
Os ministros fixaram interpretação conforme à Constituição para dispositivos que tratam do início do processo demarcatório, esclarecendo que:
- A fase instrutória começa com a abertura do procedimento pela Funai;
- Essa interpretação vale até eventual alteração legislativa.
- Atos administrativos praticados antes da vigência da lei foram preservados.
5. Benfeitorias de ocupantes não indígenas
Foram declarados inconstitucionais os §§ 1º e 2º do art. 9º da lei.
O STF fixou que benfeitorias feitas por ocupantes não indígenas são consideradas de boa-fé apenas até a edição da portaria declaratória do ministério da Justiça, que define os limites da terra indígena.
6. Invalidado o art. 10 da lei
O STF declarou inconstitucional o art. 10, que restringia direitos indígenas e ampliava indevidamente condicionantes ao usufruto das terras tradicionalmente ocupadas.
7. Indenização em caso de redimensionamento
Foi invalidado o art. 13 da lei, assegurando-se que, em qualquer hipótese de redimensionamento da área, o particular afetado tem direito à indenização, conforme já fixado pelo STF no Tema 1.031 da repercussão geral.
8. Transferência de domínio e reservas indígenas
- O STF limitou a aplicação de dispositivos que tratam da transferência do domínio indígena, esclarecendo que não se aplicam quando a medida estiver relacionada:
- ao reconhecimento da tradicionalidade;
- à criação de reservas indígenas;
- a compensações ou substituições de terras tradicionais.
Nesses casos, prevalece o regime protetivo do art. 231 da CF.
9. Interferência estatal nas terras indígenas
Foram invalidados dispositivos que permitiam interferência ampla do Estado no uso e gozo das terras indígenas. O STF determinou que:
- Qualquer restrição exige motivação expressa, baseada na proporcionalidade;
- Deve ser garantido o direito de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas, conforme normas internacionais.
10. Circulação de pessoas em terras indígenas
O tribunal declarou inconstitucionais regras que subordinavam o acesso às terras indígenas ao órgão gestor ambiental.
Ficou estabelecido que o trânsito é possível apenas em hipóteses específicas, como:
- autorização da comunidade indígena;
- atuação de agentes públicos;
- prestação de serviços públicos;
- pesquisa autorizada;
- turismo organizado pela própria comunidade, com respeito à autodeterminação indígena.
11. Exploração econômica condicionada
Atividades econômicas em terras indígenas só são constitucionais se:
- os resultados beneficiarem toda a comunidade indígena;
- forem respeitados os direitos culturais, territoriais e a autodeterminação dos povos.
12. Omissão inconstitucional da União
O STF reconheceu omissão inconstitucional no cumprimento do art. 67 do ADCT, que determinou a conclusão das demarcações indígenas.
Foi fixado prazo de 180 dias para que os Poderes Públicos cumpram as determinações estabelecidas pelo Supremo, com caráter transitório, até a edição de nova lei pelo Congresso.
- Leia a íntegra do resultado.
Entenda as ações
Dois anos após o STF declarar o marco temporal inconstitucional, os ministros voltaram a analisar o tema.
Em 2023, o STF considerou que o marco temporal é inconstitucional. No mesmo ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou parte da lei 14.701/23, na qual o Congresso Nacional validou a regra, mas os parlamentares derrubaram o veto.
Após a votação do veto presidencial, PL, PP protocolaram ações no STF para manter a validade do projeto de lei que reconheceu a tese do marco temporal.
Em sentido oposto, entidades representativas de indígenas e partidos governistas também recorreram ao Supremo para contestar novamente a constitucionalidade da tese.
Em paralelo ao julgamento no STF, o Senado Federal aprovou a PEC 48/23, que insere a tese do marco temporal na Carta Magna.
Voto do relator
Relator dos processos, ministro Gilmar Mendes defendeu a adoção de uma solução estrutural e transitória para enfrentar os conflitos fundiários envolvendo terras indígenas.
Segundo o ministro, o tema deve ser examinado à luz da CF, da jurisprudência consolidada do STF - especialmente no Tema 1.031, que afastou o marco temporal - e dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse sentido, propôs o reconhecimento da omissão da União quanto às demarcações, a fixação de diretrizes constitucionais para a aplicação da lei 14.701/23 e a adoção de medidas estruturais voltadas à pacificação dos conflitos fundiários envolvendo terras indígenas.
- Leia o voto do relator.
O entendimento foi acompanhado pelos ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes.
Em voto, Moraes reforçou que o marco temporal não pode funcionar como critério definitivo para impedir demarcações e destacou que a referência a 5/10/88 deve servir apenas para definir o regime protetivo e indenizatório aplicável, conforme as teses do Tema 1.031.
- Leia o voto do ministro Alexandre de Moraes.
Ressalvas
Ministro Flávio Dino acompanhou o relator na maior parte do voto, no entanto, apresentou ressalvas pontuais, defendendo a inconstitucionalidade de dispositivos específicos da lei 14.701/23 que, para S. Exa., fragilizariam a proteção territorial indígena, como regras que subordinam o usufruto indígena à gestão de unidades de conservação por órgãos ambientais e normas que flexibilizam a exploração econômica por não indígenas.
Para o ministro, o caso envolve forte colisão entre direitos constitucionais, exigindo harmonização pela unidade da CF, porém com prioridade interpretativa aos direitos indígenas, por serem o grupo mais vulnerável e historicamente dependente da atuação estatal.
Dino concordou com o reconhecimento da omissão inconstitucional da União na demarcação, mas ressaltou que a mora prolongada agrava tanto a ameaça à existência das comunidades indígenas quanto a insegurança jurídica de não indígenas afetados.
S. Exa. também afirmou que qualquer tentativa de instituir o marco temporal, inclusive via emenda constitucional, seria materialmente inconstitucional por violar o núcleo essencial do art. 231 da CF, já que a CF reconhece direitos originários e não permite condicioná-los à ocupação em 5 de outubro de 1988, o que configuraria retrocesso e proteção insuficiente.
Além disso, tratou da autodeterminação dos povos indígenas, defendendo que cabe às próprias comunidades definir seus modos de vida, sem imposições etnocêntricas do Estado ou do Judiciário, com a CF atuando como instrumento de máxima proteção e mínima ingerência.
Por fim, acompanhou o relator no reconhecimento do descumprimento do art. 67 do ADCT, mas propôs prazo maior para cumprimento, de 180 dias, em razão da complexidade das providências necessárias para concluir as demarcações.
- Leia o voto do ministro Flávio Dino.
Na mesma linha, ministro Cristiano Zanin destacou que a análise deve se restringir ao texto da Constituição e à máxima efetividade dos direitos indígenas, reconhecidos como originários, com terras pertencentes à União, inalienáveis e imprescritíveis.
No mérito, aderiu à declaração de inconstitucionalidade de trechos que vinculavam a caracterização de terras tradicionalmente ocupadas à data de promulgação da CF e que estruturavam o marco temporal, ao mesmo tempo em que manteve a necessidade de comprovação dos requisitos constitucionais por critérios objetivos.
Por fim, registrou convergência com as ressalvas de Flávio Dino quanto ao art. 10, por entender suficientes as regras da lei 9.784/99 para o processo administrativo, e quanto ao art. 23, ao apontar inversão do regime de proteção ao subordinar o usufruto indígena ao órgão gestor ambiental.
- Leia o voto de Zanin.
Já o ministro Dias Toffoli reafirmou a originalidade dos direitos indígenas e acompanhou o relator para declarar inconstitucionais os trechos que sustentavam o marco temporal, afastando referências à data da promulgação da CF e a 5/10/88 como condicionante.
S. Exa. também aderiu a interpretações conformes para ajustar dispositivos do procedimento demarcatório, fez ressalva para considerar constitucional o art. 9º, §1º (vinculando a boa-fé das benfeitorias até a portaria declaratória), considerou inconstitucional o art. 11, parágrafo único, por ampliar indevidamente a indenização por "posses legítimas" com base em mero documento estatal, e acompanhou as ressalvas de Flávio Dino sobre o art. 10.
Por fim, Toffoli acompanhou o reconhecimento da omissão inconstitucional do art. 67 do ADCT, com ressalvas pontuais sobre itens do procedimento proposto, e aderiu à ampliação do prazo para 180 dias, dada a complexidade das providências para concluir demarcações.
- Leia o voto do ministro Dias Toffoli.
Ministro Edson Fachin seguiu o relator ao afastar o marco temporal, mas abriu divergência em pontos centrais da lei 14.701/23.
S. Exa. acompanhou as razões do ministro Flávio Dino para declarar inconstitucionais o art. 10, o art. 23, §§ 1º e 2º, e o art. 26, §2º.
Além disso, apontou inconstitucionalidade formal nos arts. 20, parágrafo único; 22; 24, § 3º; e 25, por tratarem de matéria reservada à lei complementar, e reconheceu inconstitucionalidade material do art. 4º, § 7º, dos arts. 5º e 6º, do art. 9º, caput e §§ 1º e 2º, e do art. 11, caput e parágrafo único.
- Leia o voto do ministro Edson Fachin.
Ministra Cármen Lúcia acompanhou a divergência de Fachin.





