Direito Privado no Common Law

O acordo no caso Fox News v. Dominion e a supressão da adjudicação estatal para a defesa dos valores democráticos

A opção pelo acordo, apesar de ter respondido à pretensão reparatória da Dominion, obscureceu a oportunidade de um adequado e necessário escrutínio jurisdicional a respeito do papel dos meios de comunicação social no apoio (e no enfraquecimento) do sistema democrático.

18/9/2023

Em nossa mais recente coluna, apresentamos o caso envolvendo o acordo pelo qual a poderosa empresa norte-americana de mídia Fox News concordou em pagar U$787 milhões à empresa Dominion Voting Systems, a fim de encerrar a demanda judicial instaurada.

A ação movida pela Dominion Voting Systems contra a rede de televisão e entretenimento Fox News tinha por base a alegação de danos causados por difamação propagada pela Fox, pela disseminação de falsas alegações no sentido de que “as urnas eletrônicas [de votação] da Dominion foram usadas para roubar a Casa Branca durante as eleições presidenciais dos EUA de 2020”.1

Nos EUA, a solução consensual do caso Dominion Voting Systems v. Fox News tem gerado diversas discussões e críticas crescentes, sobretudo em função da confidencialidade - que obscurece os termos do acordo, bem como a supressão da chance da adjudicação estatal num caso de notório interesse público.

Soma-se à não revelação da íntegra dos termos do acordo, ainda, a ausência de uma “responsabilização pública” da Fox News perante os eleitores norte-americanos, também vitimados pelas dolosas fake news que, em muitos casos, podem tê-los feito optar pelo então candidato à presidência, Donald Trump. Segundo alguns analistas, a afetação de terceiros (os eleitores americanos) constituiria óbice à confidencialidade do acordo.

Em que pese o registro histórico do impressionante acordo firmado entre os envolvidos que encerrou o litígio - sobretudo pelas cifras acertadas -, não restou decidido ao longo da demanda judicial um requerimento apresentado pelo The New York Times que buscava revelar parte do conteúdo submetido ao regime de confidencialidade pela Fox e pela Dominion.2

Dentre outras informações, o Times e um consórcio de organizações de mídia requereram ao juiz do processo judicial a divulgação de textos e trocas de e-mails – supostamente forjados -, que foram apresentados como provas pela Fox News no processo de difamação movido pela Dominion Voting Systems.

Apesar da solução consensual que encerrou o processo cível por difamação, os advogados que representam o Times insistem na deliberação judicial desse requerimento - direcionado ao juiz Eric M. Davis, do Tribunal Superior de Delaware, sustentando remanescer interesse público na pretendida divulgação, mesmo tendo sido o processo judicial arquivado. Segundo o Times, “há um forte precedente legal, o interesse do público em ter um registro preciso e completo dos documentos apresentados ao tribunal”, sendo “imperativo para a compreensão da natureza das reivindicações das partes e das bases do tribunal para as muitas decisões que tomou antes do acordo”.3

De acordo com as leis do Estado de Delaware, onde a disputa judicial estava sendo processada, as partes devem demonstrar justa causa para manter as informações processuais sob sigilo. As razões justificadoras do sigilo geralmente envolvem a proteção de dados financeiros, segredos comerciais ou outras informações sensíveis às partes. Segundo a Fox News argumentou, a revelação de dados do processo representava uma ameaça às suas finanças e à sua reputação.

Para além da demanda indenizatória proposta pela Dominion e solucionada consensualmente, a Fox News ainda enfrenta outra ação por danos decorrentes de difamação, com pedido indenizatório de US$ 2,7 bilhões, movida pela Smartmatic USA - também uma empresa de software de votação. Até que ponto as provas produzidas no processo anterior poderão ser aproveitadas pela Smartmatic para alicerçar suas próprias reivindicações contra a Fox é questão que já desperta discussões.4

A Primeira Emenda x escudo de desinformação

As demandas indenizatórias propostas contra a Fox News despertaram debates para muito além dos danos causados pela difamação empreendida contra as empresas de tecnologia que forneceram urnas eleitorais para as eleições presidenciais de 2020 nos EUA.

Acima de tudo, trata-se de analisar as múltiplas causas e consequências da “mídia no banco dos réus”.

Como se sabe, a extrema importância da imprensa no quadro constitucional norte-americano está enraizada no texto da Primeira Emenda à Constituição dos EUA, segundo a qual “o Congresso não fará nenhuma lei… restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa”.

Observa-se nítida divisão no referido texto, que alude à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, reconhecendo-se um papel crítico desempenhado pela imprensa na sociedade americana.5

A especial proteção deferida à imprensa objetiva o cumprimento de um papel essencial na democracia, na medida em que atua como um “grande intérprete entre o governo e o povo”. A imprensa atua como um agente pelo qual o público recebe o livre fluxo de informações e ideias indispensáveis ao autogoverno inteligente.6

Cumprindo com o objetivo traçado pela Primeira Emenda, a imprensa serve como um “antídoto poderoso para quaisquer abusos de poder por parte de funcionários governamentais. A opinião pública informada é a mais poderosa de todas as restrições ao desgoverno, por esta razão, a supressão ou a redução da publicidade proporcionada por uma imprensa livre só pode ser encarada com grande preocupação”.7

Muito embora seja discutível se o teor das informações sigilosas que o Times pretende venham a público no caso Fox News x Dominion  seria suficiente para estabelecer o padrão de “malícia real”8- como no histórico e famoso precedente NY Times v Sullivan julgado pela Suprema Corte dos EUA para estabelecer a difamação de figuras públicas – resta claro que tais evidências poderiam demonstrar que a rede Fox não tinha qualquer compromisso em desempenhar os princípios fundamentais da Primeira Emenda relativos à importância da imprensa para o funcionamento eficaz da democracia americana.9

As garantias de proteção da imprensa e da liberdade de expressão, consagradas pela Primeira Emenda, foram alvo de interessante estudo realizado pela Harvard University, que tomou por base a relação entre a Fox News e Donald Trump, objetivando avaliar seu impacto prejudicial na democracia americana.

O estudo concluiu que, nos meses anteriores à eleição de 2020, o Comitê Nacional Republicano e o pessoal da campanha de reeleição de Trump enviaram mensagens repetidas nos mesmos momentos em que os tweets do então presidente Trump sugeriam "uma campanha de desinformação institucionalizada e não individual" sobre fraude eleitoral pelo correio. Esta campanha de desinformação institucionalizada foi apoiada pelos “meios de comunicação de direita, principalmente pela Fox News e pelas rádios, funcionando como uma imprensa partidária”.10

O estudo apontou, ainda, que os principais canais de comunicação para propaganda partidária envolvendo a falsa narrativa sobre fraude eleitoral vieram da Fox News. Esta propaganda foi integrada numa estratégia institucional e política de contencioso e ações administrativas destinadas a impedir ou suprimir o voto por correspondência e a limitar o acesso ao voto durante as eleições de 2020.11

Uma das conclusões mais significativas do estudo de Harvard foi que, ao contrário da maioria das análises contemporâneas dos esforços de desinformação no ecossistema de informação americano, a campanha de desinformação envolvendo fraude eleitoral por correio - que manipulou as opiniões dos eleitores americanos -, não teve origem em redes sociais, meios de comunicação social ou através da Rússia ou de algum outro adversário estrangeiro. Na verdade, o estudo de Harvard apontou que a campanha maliciosa foi liderada pelo então Presidente Trump e fomentada por membros proeminentes do Partido Republicano e da Fox News, tendo desempenhado as redes sociais um papel secundário e de apoio.

Estas descobertas são consistentes com um estudo separado realizado pelos mesmos investigadores (entre 2015 a 2018), que concluiu que a Fox News e a campanha de Trump foram muito mais influentes na propagação de falsas notícias do que os trolls russos ou os “artistas clickbait” do Facebook.

Como se percebe, o sigilo dos termos do acordo travado entre a Fox News e a Dominion na demanda indenizatória por difamação acabou privando o público de ter conhecimento sobre as operações deliberadas e tendenciosas da Fox News objetivando comprometer o processo eleitoral norte-americano.

O acordo milionário que encerrou a disputa, aliás, suscita fundadas críticas a respeito da suposta mais valia dos meios consensuais de solução de conflitos, sobretudo em casos nos quais a adjudicação estatal parece ainda ser imprescindível à tutela do interesse público.

Nesse sentido, alguns analistas acreditam que a Dominion perdeu uma grande oportunidade de levar adiante o julgamento do caso contra a Fox News, na medida em que, por ocasião do pre-trial, fora negado o requerimento de inadmissão da demanda.

O Tribunal de Delaware rejeitou os argumentos da demandada, que tentava justificar suas publicações sobre a pretensa fraude eleitoral com base na alegação de “neutralidade da reportagem” e na “liberdade de opinião”, admitindo como verossímeis as acusações imputadas à Fox sobre a ocorrência de dolo na veiculação das fake news.12

Por fim, a opção pelo acordo, apesar de ter respondido à pretensão reparatória da Dominion, obscureceu a oportunidade de um adequado e necessário escrutínio jurisdicional a respeito do papel dos meios de comunicação social no apoio (e no enfraquecimento) do sistema democrático.13

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1 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware.  Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023.

2 The New York Times. Times Asks Judge in Fox-Dominion Case to Rule on Redactions. Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023.

3 Idem.

4 REUTERS. Fox resolves Dominion case, but $2.7 billion Smartmatic lawsuit looms. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023.

5 The First Amendment guarantees freedoms concerning religion, expression, assembly, and the right to petition. It forbids Congress from both promoting one religion over others and also restricting an individual’s religious practices. It guarantees freedom of expression by prohibiting Congress from restricting the press or the rights of individuals to speak freely. It also guarantees the right of citizens to assemble peaceably and to petition their government.

6 The International Forum For Responsible Media Blog. The Relationship Between Fox News and the Republican Party Undermines the First Amendment and is Poisoning American Democracy.

Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023.

7 Idem.

8 Dentre outras informações, o Times pretende sejam divulgadas as comunicações internas entre funcionários da Fox News demonstrando que sabiam da inveracidade das notícias divulgadas pela empresa sobre as urnas da Dominion.

9 JUSTIA U.S. Supreme Court. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964). Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023.

10 Berkman Claim Center. For internet & Society at Harvard Univesity. Mail-In Voter Fraud: Anatomy of a Disinformation Campaign.  Disponível  em https://cyber.harvard.edu/publication/2020/Mail-in-Voter-Fraud-Disinformation-2020. Acesso em 08 de setembro de 2023.

11 Idem.

12 JUSTIA. IN THE SUPERIOR COURT OF THE STATE OF DELAWARE. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023.

13 JUSTIA. Verdict. What’s So Special About the Fox/Dominion Settlement? Less Than You’d Think. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.