Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Harmonização do Direito Privado Europeu - Parte V (Visão panorâmica)

Jurista Carlos E. Elias de Oliveira prossegue expondo questões relevantes do direito europeu nas relações privadas.

28/3/2023

Nas colunas anteriores, buscamos tratar didaticamente do cenário institucional e normativa da União Europeia a fim de preparar o terreno para o foco destas séries de publicações: expor o cenário de harmonização jurídica no âmbito do direito privado europeu.

Voltamo-nos agora para essa meta.

1. Visão panorâmica da harmonização jurídica na União Europeia no direito privado

A harmonização internacional de direitos não necessariamente depende de uma de integração regional. Esta é apenas um catalisador da harmonização, a exemplo do que se testemunha com a experiência da União Europeia.

No caso da União Europeia, a harmonização jurídica no direito privado é fortemente estimulada pelos seus próprios fundamentos principiológicos, especialmente o da liberdade de circulação de pessoas, de capital e de trabalhadores1 bem como o da busca por criar um espaço de liberdade, segurança e justiça2.

Para viabilizar essa liberdade, é essencial que haja uma harmonização jurídica entre os Estados membros, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos e ao mercado. Devem-se reduzir, ao máximo, obstáculos jurídicos que inviabilizem ou dificultem demasiadamente a referida livre circulação.

Não se pretendem, com isso, eliminar as particularidades jurídicas de cada Estado membro. O TFUE é expresso em preconizar o respeito “dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros” (art. 67º, item 1).

A harmonização jurídica da União Europeia caminha não apenas em aproximar as normas de direito material e processual em direito privado, mas também em uniformizar as regras de direito internacional privado (relativamente aos conflitos potenciais entre os ordenamentos diante de situações privadas transnacionais).

A doutrina costuma reportar-se a esse fenômeno na União Europeia como "europeização do direito internacional privado"3. Na verdade, o fenômeno vai além do direito internacional privado. A europeização é de todo o direito privado. Não se trata apenas de resolver potenciais conflitos entre os ordenamentos diante de situações transnacionais ou de harmonizar situações processuais (competência jurisdicional, cooperação judiciária etc.). Busca-se, também, propiciar aos sujeitos um espaço jurídico que abrange nações com ordenamentos, ao máximo, próximos, para assegurar segurança jurídica nos processos de circulação de pessoas, capital e serviços4.

Alcança os próprios direitos privados domésticos, com aproximação da regulamentação.

No âmbito do direito privado, a harmonização jurídica da União Europeia focou mais o direito contratual do que propriamente os direitos reais5.

Em um primeiro momento, os órgãos legislativos da União Europeia concentraram-se em direito do consumidor para resolver problemas mais pontuais. Houve várias diretivas nesse âmbito, como:

a) Diretiva 85/577, de 20 de dezembro6: protege o consumidor em compras a distância;

b) Diretiva 90/314, de 13 de junho7: trata de viagens combinadas.

A livre circulação de pessoas, de capital e de serviços no âmbito da União Europeia intensificou as relações jurídico-privadas transfronteiriças. Por consequência, aumentou o esforço por alcançar uma maior definição das regras de direito internacional privado e das regras comunitárias para dar segurança jurídica aos sujeitos.

Entre as várias questões jurídicas de direito internacional privado e de direito comunitário, estão as que tocam a harmonização internacional dos direitos reais, a qual esmiuçaremos mais à frente.

A harmonização jurídica na União Europeia tem avançado de modo expressivo, especialmente pela abundância de edição de Regulamentos e Diretivas em diversas matérias de direito privado.

A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros em matéria de direito privado é essencial para viabilizar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Sem previsibilidade e clareza do direito que será aplicado para reger as relações privadas, os sujeitos ficão acuados a praticar atos jurídicos transfonteiriços.

2. Regulamento Europeu das Sucessões mortis causa

Foi nesse contexto que, por exemplo, a União Europeia editou o Regulamento Europeu das Sucessões: o Regulamento UE nº 650/2012.

A referida norma comunitária buscou dar clareza e previsibilidade jurídicas às sucessões mortis causa transfronteiriça. Sem esse ambiente normativo previsível e seguro, os sujeitos seriam inibidos a exporem-se a relações jurídicas privadas internacionais.

Se o sujeito não tem clareza sobre como será a sucessão mortis causa caso ele tenha bens em outros países ou caso ele se mude do seu país de origem, a tendência é que esse fato seja um entrave à circulação transnacional. É nesse sentido que o Regulamento Europeu das Sucessões nasceu, pois, conforme seu Considerando nº 7:

(7) É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves a` livre circulac¸a~o de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no a^mbito de uma sucessa~o com incide^ncia transfronteiric¸a. No espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessa~o. E' necessa'rio garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legata'rios, das outras pessoas pro'ximas do falecido, bem como dos credores da sucessa~o. 

Essa preocupação já estava presente desde quando o Regulamento Europeu das Sucessões era apenas um projeto. Em 2009, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão, foi realçada a elevada importância em haver uma harmonização das regras sucessórias no espaço europeu8. Segundo o referido documento, em 2009, o volume patrimonial envolvido em sucessões mortis causa na União Europeia chegava a 646 bilhões de euros por ano. Estima-se que cerca de 10% desse volume dizem respeito a sucessões transnacionais. Sem uma regra sucessória de harmonização, o volume de bens que poderiam ficar fora do mercado por transtornos jurídicos em matéria sucessória seria expressivo. Os indivíduos seriam desencorajados a realizar relações privadas transnacionais pela insegurança jurídica da partilha de seus bens situados em outros países. Ter regras sucessórias claras e harmonizadas para sucessões transnacionais é um fundamental para alcançar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços.

O Regulamento Europeu das Sucessões centra-se em definir apenas questões transnacionais estritamente de direito sucessório, como a definição de quem são os sucessores e o modo de repartição do acervo hereditário. Foca essas questões sob o aspecto de conciliar os diversos ordenamentos jurídicos da União Europeia. Em suma, ele trata de três questões básicas diante de situações jurídicas transfronteiriças: (1) competência jurisdicional internacional; (2) conflitos de leis no espaço; e (3) forma de reconhecimento e de execução de decisões estrangeiras9.

Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema.

__________

1 Reportamo-nos especialmente ao Título II do TFUE, que trata da livre circulação de mercadorias (arts. 28º e 29º) e ao Título IV, que lida com a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 45º a 66º) do TFUE.

2 Remetemo-nos ao Título V do TFUE, que trata do fato de a União Europeia ser um espaço de liberdade, segurança e justiça.

3 Nesse sentido: (1) JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do Direito Internacional Privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012; (2) RIBEIRO, Geraldo Rocha. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: algumas notas sobre o problema da interpretação do âmbito objetivo dos regulamentos comunitários. In: Revista Julgar, nº 23, maio/agosto 2014, pp. 265-292 (Disponível aqui).

4 Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Rui Manuel Moura Ramos coordenaram uma obra destacando diversos aspectos da unificação europeia do direito internacional privado: “Aspectos da Unificação do direito internacional privado” (MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016).

5 MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23.

6 JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985.

7 JO nº L23, número 158, de 23 de junho de 1990.

8 Eur-lex, Documento De Trabalho Dos Servic¸os da Comissa~o que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a` compete^ncia, a` lei aplica'vel, ao reconhecimento e execuc¸a~o das deciso~es e dos actos aute^nticos em mate'ria de sucesso~es e a` criac¸a~o de um certificado sucesso'rio europeu. Data: 14 de outubro de 2009 (Disponível aqui).

9 Essas três questões básicas de direito internacional privado em matéria de sucessão foram disciplinadas em um único regulamento: o Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). Não se deu o mesmo em matéria obrigacional. O legislador comunitário fragmentou a disciplina em três regulamentos. Um foi para disciplinar forma de reconhecimento e execução de atos estrangeiros: Regulamento UE nº 1.215/2012. Outros dois para disciplinar as questões de competência jurisdicional internacional e de conflitos de lei no espaço em matéria de obrigações contratuais (Regulamento Roma I, ou seja, Regulamento nº 593/2008) e de obrigações extracontratuais (Regulamento Roma II, ou seja, Regulamento UE nº 864/2007).

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.