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Intervenção judicial em contrato imobiliário e a Lei de Liberdade Econômica

Intervenção judicial em contrato imobiliário e a Lei de Liberdade Econômica.

28/7/2020

Texto de autoria de Fábio Machado Baldissera e Demétrio Beck da Silva Giannakos

Introdução

O objetivo deste breve artigo é chamarmos a atenção para o fato de que, não raras vezes, verifica-se uma inadequada intervenção do Poder Judiciário nos contratos. Por essa razão, pinçamos uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a qual, ao nosso sentir, desvirtuou o que as partes originalmente acordaram em um contrato de promessa de compra e venda de imóvel.

Desafortunadamente, tal decisão alterou o que havia sido avençado de forma cristalina pelas partes no contrato, sem que existissem elementos no processo que pudessem justificar a fundamentação adotada em tal decisão. Aliás, a decisão restou fragilmente alicerçada e em desacordo com a normativa processual civil, em especial no seu artigo 4891. Para piorar, valeu-se da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a fim de dar azo à discricionariedade dos julgadores.

Espera-se que essas decisões sejam cada vez mais isoladas. Nesse contexto, a incorporação da Lei de Liberdade Econômica no nosso sistema jurídico parece ter vindo em boa hora e poderá ser um valioso instrumento para inibir o conhecido ativismo judicial.

Análise da decisão do TJRJ que reduziu a cláusula penal da promessa de compra e venda de imóvel

Feitas as considerações iniciais, passamos a analisar a decisão do TJ/RJ que julgou a Apelação Cível nº 0232054-13.2012.8.19.0001, fundamentando a decisão por meio de princípios contratuais usados de forma inadequada. Tal decisão, em nosso entender, teve um cunho acentuadamente discricionário, na medida em que existe falta de suporte legal e, aparentemente, contratual e fático2, para a radical modificação do contrato imobiliário3 firmado entre as partes4.

O recurso de apelação versou, de forma resumida, sobre cláusula penal estabelecida entre as partes, no valor de R$ 500.000,005, caso uma delas descumprisse o contrato de promessa de compra e venda de imóvel, esse com valor estipulado em contrato no montante de R$ 360.000,00. Contudo, o TJRJ, ao julgar o recurso, reduziu a cláusula penal para o montante de R$ 30.000,00.

Em apertada síntese, o TJRJ mencionou que a decisão se pauta na "primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes", bem como que a decisão se encontrava alicerçada conforme os "princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação ao enriquecimento ilícito". Destaca-se, de outro lado, o acerto do acórdão ao invocar o artigo 412 do Código Civil6, para limitar a cláusula penal, conforme previsto no citado artigo. Contudo, excedeu-se quando reduziu abruptamente a cláusula penal com base na sua discricionariedade.

Ao analisar os autos do processo, salvo melhor juízo, não há indicativo de descumprimento do contrato de promessa de compra e venda, a fim de que pudesse ser legitimada a redução da cláusula penal em desfavor do autor e beneficiário da cláusula penal. A decisão foi contrária às disposições legitimamente acordadas pelas partes no caso concreto, como se pode depurar da Cláusula 6.2 do contrato, "O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)".

Desse modo, o Poder Judiciário poderia reduzir a multa até o montante da obrigação, ou seja, R$ 360.000,00, escorado pelo artigo 412 do Código Civil. Não obstante, reduziu a cláusula penal para R$ 30.000,00, ou seja, num patamar 16 vezes menor do que a cláusula penal originalmente pactuada e 12 vezes menor do que a obrigação avençada no contrato.

Quais os parâmetros para a redução tão abrupta da cláusula penal em desprestígio à autonomia privada?

A decisão se equivocou ao utilizar importantes princípios contratuais que servem para dar sustentação ao julgador, sobretudo em hipóteses onde se faz necessária uma interpretação do todo, reduzindo-os como argumento retórico. A redução para o valor de R$ 30.000,00 é baseada em uma concepção moral7 e subjetiva dos julgadores de que, em suas visões, tal valor seria suficiente para ressarcir o descumprimento abrupto do contrato. Uma pena.

Frisa-se que, no caso em tela, estamos tratando de uma relação simétrica, na qual não há descompasso entre os contratantes. Portanto, decisões que escapam geometricamente à vontade das partes são inconcebíveis8. Ademais, elas causam um efeito indesejado ao sistema, pois estimulam a judicialização9, trazendo insegurança jurídica, pois um contrato não respeitado sob a chancela do Poder Judiciário pode criar um efeito manada (ou efeito dominó). Tal efeito é maléfico à sociedade e ao próprio Judiciário.

A Lei da Liberdade Econômica: um alento à autonomia privada trazido pelo legislador

Em 20 de setembro de 2019, o legislador trouxe a resposta que vinha sendo reivindicada pela sociedade e, especialmente, pelo mundo empresarial, editando-se a chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019).

Destaca-se a inserção pelo novel texto legal do §1º ao artigo 113 e do artigo 421-A ao Código Civil, bem como a nova redação conferida ao seu artigo 421, os quais prestigiam a autonomia da vontade. A intenção trazida pela modificação legislativa, ao nosso entender, foi de reduzir a discricionariedade10 judicial e a busca da preservação do autorregramento e da liberdade das disposições contratuais pactuadas pelas partes.

Como resultado, espera-se que os novos dispositivos da Lei da Liberdade Econômica sirvam para prestigiar a segurança jurídica e a autonomia das partes, que são basilares ao desenvolvimento de qualquer nação.

Na prática, o conhecimento por uma das partes sobre a possibilidade de decisões que intervenham de forma despropositada no contrato alinhado pode motivar comportamentos oportunistas que comprometem o mecanismo de mercado, prejudicando a eficiência econômica e a virtude das trocas que visam a gerar ganhos esperados de bem-estar para as partes envolvidas11. Dessa forma, eventuais decisões dos Tribunais, que sejam proferidas sem a melhor técnica jurídica, trazem o risco de estimularem o descumprimento contratual por parte do devedor que, sabendo desse posicionamento, vê-se incentivado a descumprir a avença quando lhe for conveniente.

Com o advento da Lei da Liberdade Econômica, intenta-se reduzir a esfera de intervenção nas relações contratuais, tendo como exceção, na dicção do caput do art. 421-A do Código Civil, situações que apresentem elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção de paridade e simetria das partes. Contrariamente no que se encontra nas relações de trabalho e de consumo, a assimetria nas relações civis e empresariais não é presumida, ao invés, tem-se como requisito a sua comprovação.

As modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica não são incólumes de críticas, notadamente no que tange a uma possível mais clara redação12. Contudo, a nova normativa era necessária. Ela prestigiou de forma salutar a autonomia e a vontade das partes nas relações contratuais, nas quais se presume a simetria, sem prejuízo de que seja identificado pelo julgador a presença de elementos que alicercem o excepcional tratamento assimétrico, o qual deve ser passível de comprovação, nos termos da lei.

Conclusões

Como principais conclusões desse breve estudo destacam-se:

(i) Os princípios contratuais não devem servir como tábua de salvação para descumprimento contratual, sob pena do seu esvaziamento e do aumento do custo de transação que traz prejuízos a sociedade.

(ii) O Judiciário deve ter o cuidado de fundamentar as suas decisões com exacerbada discricionariedade, subjetividade e/ou com escassez de adequada técnica jurídica e reflexão, sob pena de enfraquecer o sistema jurídico.

(iii) A Lei de Liberdade Econômica está posta para que os julgadores distingam, com maior clareza, a aplicação da lei e dos princípios contratuais, modulando-os conforme o caso concreto e a intenção das partes.

*Fábio Machado Baldissera é advogado, sócio de Souto Correa Advogados, doutor em Direito pela Universidad de Burgos, especialista em Direito Imobiliário pela FADISP, diretor estadual do IBRADIM – RS, diretor da AGADIE, professor em cursos de pós-graduação e autor de diversos artigos e obras jurídicas. Rede social: @fabiombaldissera.

**Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, associado do IBRADIM. Rede social: @demetriogiannakos.

__________

1 Nesse sentido, vide: O impacto do Novo CPC no Direito Contratual: a exigência de Fundamentação das decisões e a Aplicação do princípio da boa-fé. In: Impactos do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro (Coord. Marcos Ehrhardt Jr., Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 37-54, em especial, p. 49-52.

2 Nesse sentido, buscamos acesso integral aos autos, a fim de não cometer justamente a falha do sistema que indicamos nesse breve artigo.

3 André Abelha ao analisar os dispositivos trazidos pela Lei dos "Distratos" (Lei 13.786, de 28.12.2018), pondera que a redução da cláusula penal pelo juiz somente será legítima para coibir excessos: "(...) não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada nos contratos imobiliários, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/18. Isto não significa, contudo, um cheque em branco para o juiz. O dispositivo em questão traz uma condição claríssima para a redução: excesso manifesto. Reparem: não basta um excesso qualquer; ele deve ser manifesto, ululante, exagerado". ABELHA. André. Lei 13.786/18: Pode o juiz reduzir a cláusula penal? Acesso 24 de julho de 2020.

4 (...) Negócio jurídico entabulado sob condições específicas, visando a autorização judicial da venda, momento em que seria concretizado o pagamento do preço avençado, mediante depósito em juízo. 3. Sentença de improcedência do pleito autoral fundamentada, em síntese, no princípio da exceção de contrato não cumprido. 4. Autor que, todavia, logrou comprovar documentalmente ter adotado as providências pactuadas que lhe cabiam para obtenção da autorização judicial de venda. 5. Caso concreto que denota ulterior desequilíbrio financeiro do contrato ocorrido por motivos alheios à vontade das partes contratantes. 6. Prejuízos do autor advindos da quebra do contrato que deve ser abrandado pela existência de circunstâncias fáticas que ensejaram tal descumprimento pelos réus, com primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes. 7. Aplicação da cláusula penal que se impõe, reduzida a patamar que se amolde as circunstâncias fáticas em tela, em adequação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 8. Provimento parcial do recurso do autor e desprovimento do recurso dos réus. (Des(a). Elton Martinez Carvalho Leme - Julgamento: 01/06/2016 - Décima Sétima Câmara Cível - 0232054-13.2012.8.19.0001 – Apelação).

5 6.2. O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

6 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.

7 Lenio Luiz Streck, sobre a temática dispõe: "Quero dizer, simplesmente, que na Democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais. Simples assim". STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1 ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 11. O que se pretende demonstrar aqui é que o Direito não pode ser corrigido pela moral.

8 Conforme: KLOH, Gustavo. Teoria econômica da propriedade e dos contratos. In: Direito e economia: diálogos (coord. Armando Castelar Pinheiro, Antônio J. Maristello Porto, Patrícia Regina Pinheiro Sampaio, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, p. 304, "O grande desafio é o equilíbrio entre um possível excesso de intervencionismo e as dificuldades dessa intervenção, encontrar um meio-termo onde não haja uma restrição ao funcionamento do mercado e altos custos fiscais impostos para atingir a eficiência esperada".

9 Este ponto também é importante ao debate. O indivíduo que ajuíza uma ação no Brasil contribui em média com apenas 10% do custo do novo processo gerado. Há, assim, um evidente incentivo para que muitas ações sejam ajuizadas, levando ao esgotamento da atividade jurisdicional como bem comum. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 87.

10 É preciso compreender a discricionariedade como sendo o poder arbitrário (antidemocrático) em favor do juiz para "preencher" os espaços "vazios" do modelo de regras (leis). Discricionariedade, no modo como ela tem sido praticada, acaba, no plano da linguagem, sendo sinônimo de arbitrariedade. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 75-84.

11 COULON, Fabiano Koff; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Lei da Liberdade Econômica e o comportamento oportunista dos contratantes. Jota. Acessado em 09 de julho de 2020.

12 Ver: TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória n. 881/2019 (Liberdade Econômica) e as alterações do Código Civil. RJLB, ano 5 (2019), n. 4, 871-904.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.