Migalhas Infância e Juventude

Videoconferência em processos infracionais: quando a produtividade vale mais do que a proteção integral

Videoconferência em processos infracionais: quando a produtividade vale mais do que a proteção integral.

5/1/2021

Em 28 de dezembro de 2010 eu tomava posse como defensora pública no Rio de Janeiro e até 2014 eu trabalhei em diferentes órgãos de atuação no Estado do Rio de Janeiro, de cidades de juízo único a municípios da Baixada Fluminense, de Angra dos Reis a São Francisco do Itabapoana, passando por Resende e pela Serra fluminense.

Entre 2015 e 2016 eu assumi a subcoordenação da CDEDICA, órgão da DPRJ especializado em infância. Mais especificamente, coordenei ações institucionais na área cível/protetiva da Infância. Depois de dois anos, deixei a CDEDICA para assumir uma das funções de assessoria do Defensor Público Geral, onde estive até outubro de 2020 quando retornei a minha titularidade.

Já não seria fácil retornar à atuação de defensora em área cível em Angra dos Reis depois de tantos anos dedicada à atividade administrativa, mas o recomeço foi particularmente interessante porque em dezembro me vi diante da exigência de acumular um órgão de atuação de Família, Infância e Juventude logo em dezembro, por necessidade do serviço. Após três anos e nove meses, era meu retorno à Infância e isso me causava ansiedade.

O primeiro processo que abri para ler justificava a minha ansiedade: era uma medida de acolhimento de um bebê cuja mãe tinha nove anos de idade, ou seja, estupro de vulnerável. Para piorar, havia notícia de que a mãe havia sido morta em conflito de tráfico, mas a família ainda não conseguira localizar o corpo. Triste. O processo tinha sido encaminhado para a DPRJ porque o tio do bebê estava visitando na unidade de acolhimento e íamos ajuizar ação de guarda.

Salvo esse caso, mais nenhum outro de infância e juventude foi encaminhado para mim em dezembro, e pude me dedicar aos processos cíveis e de família. Mas, ainda teria dois dias de audiência sobre atos infracionais, todas por meio da plataforma cisco-webex.

A CDEDICA havia impetrado HC coletivo objetivando impedir a realização de audiências virtuais por atos infracionais. O principal argumento é a impossibilidade de realização de audiência de apresentação a distância pela inaplicabilidade da videoconferência regulada pelo CPP e a falta de participação do representante legal junto ao adolescente internado. Distribuído ao STJ com o n. 588.902-RJ, a 6ª Turma denegou o writ considerando analogicamente aplicável o sistema do processo penal. Essa decisão já era esperada, uma vez que o CNJ já havia autorizado a virtualização do ato com a resolução 330, de 26/08/2020.

Havia duas audiências marcadas para o primeiro dia. Nenhum dos adolescentes acessou o ambiente virtual, nem seus representantes legais. Ambos os casos eram de adolescentes sem medida cautelar. Ao buscarmos contato, os celulares sequer completavam a ligação. No segundo dia, mais duas audiências: a primeira de um adolescente sem medida cautelar. A família composta pelo adolescente, irmão e esposa e a mãe deles. O irmão conseguiu acessar o link da audiência, mas nos conta que estava na maternidade porque seu filho havia nascido; assim, o adolescente que respondia pelo ato infracional estava sem acesso à internet. Instaura-se uma discussão sobre adiar ou não a audiência de apresentação que acaba durando cerca de uma hora, quando o adolescente consegue um segundo celular e uma conexão instável de internet que só permite a realização do ato sem o vídeo. Consigo fazer a entrevista prévia com dificuldade, porque a cada mudança de "sala virtual" as conexões se perdiam e era necessário recomeçar. Resumo: quase duas horas depois conseguimos finalizar o ato.

Passamos então para a segunda audiência, em que o adolescente estava provisoriamente internado. A audiência começa difícil porque eu questiono a unicidade do ato (apresentação e continuação), contrário à súmula 342 do STJ. Além disso, a unidade de internação não consegue fazer áudio e vídeo funcionarem ao mesmo tempo. Mais 40 minutos esperando solução e começamos a audiência. Ouvimos o adolescente e um dos policiais. O outro policial não havia comparecido. Buscamos contato, ele estava designado para transporte de adolescentes e 20 minutos depois retorna com uma ligação de dentro do automóvel. Tempo total dessa audiência: 2 horas e 30 minutos.

Demarcar o tempo de cada audiência não é para reclamar: ele serve como parâmetro de avaliação dos serviços envolvidos. O serviço de tecnologia e rede (do Tribunal, da contratada de TI e da concessionária de telefonia) péssimo, pois não fornece estabilidade e rapidez adequadas para a virtualização do sistema de justiça. Aliás, sem segurança posterior porque ao final do mês fui intimada de sentenças de procedência em processos infracionais em que eu pretendia recorrer, mas as audiências já não estavam mais disponíveis na rede...

Mais importante do que a crítica à qualidade do serviço e ao despreparo de uma justiça que se pretende se virtualizar, as cenas que tentei descrever demonstram o abismo da desigualdade social. Enquanto eu, juiz e promotora de Justiça conseguimos realizar as audiências em lugares seguros, confortáveis e com equipamento minimamente adequados, os adolescentes são obrigados a usar serviços que nunca antes foram de fato acessíveis a eles. Ao processo de criminalização da justiça infracional se sobrepõe ainda a punição por não ter acesso a um computador (ou a ter apenas um celular para todo o núcleo familiar), a não ter acesso a uma rede de telefonia de qualidade e que possa ser paga sem comprometer a sobrevivência da família e a expor os espaços domésticos que não garantem (em regra) privacidade.

A realização de audiências infracionais revela o elitismo do sistema de justiça, que ao argumento de buscar o "melhor interesse" ou o "superior interesse" do adolescente, busca apenas e simplesmente, punir.

Fosse a preocupação cuidar do adolescente, a resolução 330 trataria de outros temas além do processo de apuração e acompanhamento de atos infracionais, assim como, haveria a previsão de participação da equipe técnica do juízo e/ou da unidade socioeducativa em uma busca de alternativas para o desenvolvimento do adolescente. Mais: a resolução não acompanha a preocupação do ECA com a interdisciplinariedade e multidisciplinariedade típica do sistema de justiça da infância, porque não há nada na regulamentação que se preocupe com o atendimento técnico ao adolescente. Ao final, a resolução viola o princípio que ela diz que busca assegurar, na medida em que não traz disposições sobre aspectos socioassistenciais da juventude.

Embora eu seja entusiasta da virtualização da Justiça, é inegável que (1) esse modelo não vai atingir todas as etapas processuais. Virtualizar o protocolo, distribuição, expedições de mandados e cartas é diferente da virtualização de sentenças/despachos/decisões e a realização de audiências; talvez, as intensidades de aplicação de novas tecnologias tenham que ser diferentes. Além disso, (2) considerando que a política de atendimento na infância pressupõe a integração operacional entre atores públicos e privados (art. 88, V e VI, ECA), a inexistência de atos presenciais associado à falta de participação das equipes técnicas (pelo menos) aproxima a instância infracional de uma punitividade-produtiva, em que os números e a movimentação do processo até a sentença são os objetivos em si que devem ser buscados, o que, claramente, não é compatível com a doutrina da proteção integral nem com o princípio do melhor interesse. Perceba-se, ainda, que (3) a resolução 330 não disciplina procedimentos cíveis da infância e juventude, apenas processos infracionais, confirmando portanto a lógica punitiva do Judiciário.

De certa forma, o que vemos agora com a pandemia é a faceta mais evidente do capitalismo aplicado aos corpos pretos e pobres dos adolescentes brasileiros: são apenas números, a carne mais barata da sociedade.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.