Migalhas Notariais e Registrais

O burrinho do cartório - Seção "Tudo é verdade e dou fé"

Registrador Sérgio Jacomino escreve crônica cartorial na Seção "Tudo é Verdade e Dou Fé" da coluna.

29/1/2024

Os burros são animais de boa memória e grande capacidade de aprendizado. A sua má fama sempre me intrigou. Dizem que veem anjos e demônios e se afeiçoam a seus donos, protegendo-os. Relendo a impressionante passagem em que um burro fala a Balaão, lembrei-me da história do burrinho que devorou o livro-protocolo de notificações do RTD de uma pequena serventia do interior.

Este episódio tiraria o sono de Antônio Generoso, escrevente autorizado, um homem que era a expressão perfeita do seu nome próprio – generoso e gentil. Nomen est omen, diziam os antigos.

Deixe-me contar esta história direito. O caso revela o lado humano dos pequenos cartórios espalhados nos mais distantes rincões deste país. 

O cartório se achava sob intervenção. O Oficial titular havia sido afastado e o interventor buscava colocar as coisas no eixo. Superado o trauma inicial, verificou-se que os filhos do oficial afastado eram funcionários da serventia e que, além do mais, eram excelentes profissionais. Sempre colaboravam quando requisitados para as mais diversas tarefas e funções.

E calhou que Toni Generoso, o mais velho deles, era um exímio motociclista, além de figura simpática, muito conhecida na comarca. Foi-lhe, então, atribuída a função de notificador do RTD e uma Honda CG-125, novinha em folha, lhe foi confiada. Com ela podia ir e vir ao trabalho e dedicar-se às tarefas ordinárias da especialidade agora sob seu mister.

Àquela época, os interventores tinham grande autonomia. Podiam reorganizar o quadro de funcionários, atribuir novas funções, atuavam como longa manus da administração, revestiam-se, por empréstimo, da dignidade e da autoridade do poder censório. Na pequena comuna, era chamado de “Sr. Dr. Interventor”, infundindo certo temor nos demais cartorários da comarca. Encarar o interventor era como estar diante do próprio Corregedor-Geral de Justiça em pessoa.

Uma certa tarde, já no final do expediente, o Oficial-Maior adentrou os átrios do gabinete do interventor com o cenho franzido e o passo hesitante. Olhando fixamente para ele, disse secamente: “Doutor, o burro do Toni comeu o livro-protocolo”.

Fez-se um breve silêncio até que o interventor pudesse compreender exatamente o que tinha dito o seu oficial maior. “O burro do Antônio Generoso?”, redarguiu finalmente, desatando uma sonora gargalhada, acompanhado pelo oficial maior ainda aflito.

Parece ter sido assim: depois de entregar todas as notificações do dia, Toni foi até sua casa “para um café da tarde”, como relatou na sindicância. Gazeteava, não avisara ninguém, a tarde deitava seus fachos alaranjados sobre a colina, o fim do dia modorrento convidava a uma breve soneca. Ele estacionou a moto à porta do sítio com o livro posto na “aranha” do bagageiro e descansou na varanda, deixando o tempo passar preguiçosamente.

Entretanto, havia nas redondezas um burrinho que costumeiramente pastava nos baldios da vizinhança. Para azar do funcionário, o animal vira no livro-protocolo um saboroso acepipe. Diz Toni, ao relatar o episódio, que, ao sair de casa, viu o burrinho com o protocolo entre os dentes. Estremeceu. Bateu-lhe o desespero. Diz que se atracou com o animal, arrancando-lhe, a muito custo, o que sobrara do repasto.

O escrevente autorizado, o oficial maior e o livro esgarçado se apresentaram diante do severo interventor. Foi determinada a abertura de um processo administrativo disciplinar para apurar o "caso do burrinho do cartório". Depois da oitiva do sindicado, da restauração dos comprovantes sobreviventes, o pobre Toni Generoso, além de sofrer uma dura carraspana, receberia a pena de advertência, visto que felizmente nenhum prejuízo sobreviera.

A remansosa rotina do cartório retomaria seu curso ordinário.

Dizem que o “burrinho do cartório” – como a ele nos referíamos desde então – era um presente que o escrevente recebera de um amigo. Sem saber o que fazer com o animal, deixou-o pelas redondezas. O burrinho era curioso, já tinha entrado no sítio e devorara as listas telefônicas que encontrara, além do lauto repasto representado por diários oficiais encadernados que o escrevente classificava e indexava para uso do cartório.

Toni Generoso se foi. A última vez que o vi vestia um terno rosado, gravata bege e colete que realçava a barriga proeminente. Tinha o olhar triste, a barba por fazer, andava cabisbaixo e resignado. Com o tempo, ficara muito parecido com o finado pai, homem digno e honrado que experimentara um grave tropeço na vida e um duro golpe do destino. O cartório foi afinal provido pelo concurso e os filhos do velho oficial se perderam mundo afora.

Antônio Generoso, escrevente autorizado, notificador de RTD partiu. Foi-se pelos caminhos das três colinas ao cair de uma tarde fresca e radiosa. Arrastava atrás de si as inúmeras histórias de cartorários ouvidas desde pequenino. Seguia-lhe de perto o burrinho curioso e faminto, o burrinho do cartório. O referido é verdade e dou fé.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral em diversas instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado, parecerista e árbitro. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.