Processo e Procedimento

O novo CPC e a velha última flor do lácio

O novo CPC e a velha última flor do lácio.

4/8/2016

Jorge Amaury Maia Nunes

Este não é um texto escrito por gramático, professor de língua portuguesa, ou coisa semelhante, mas, sim, por quem procura não cometer agressões à última flor do Lácio, cada vez mais inculta e menos bela, embora sejam inevitáveis, aqui e ali, alguns escorregões próprios à natureza humana.
Assim que veio a lume o texto do novo Código de Processo Civil (ainda quando em segundo exame pelo Senado), a primeira leitura que dele fiz indicava a existência de atentados à língua. Alguns eram muito graves, fato que impôs a realização de glosas, parágrafos (do grego paragraphos, escrito ao lado), quando por outro motivo não fosse, em acatamento à advertência de Ruy sobre a linguagem das leis e seu caráter monumental. Disse o genial baiano:

Quando a phrase é simples e pura, atravez dela penetra direitamente a inteligência ao encontro do pensamento escripto. Mas, se ele se desvia da expressão natural e correcta, forçosamente se ha-de transformar a leitura em tedioso esforço de critica e decifração, a que a redação das leis não deve expôl-as, se as quer entendidas e obedecidas.

Aos meus primeiros reparos, suppuz não passasse de leves e raras jaças na superfície de imensa gemma despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assignalal-as para orientação minha, e, afinal, não sei se houve página da brochura, onde não tivesse que notar. Comprehendi então que ao trabalho jurídico, vasto e notável, bem que defeituoso e incompleto, da cammara trienal, estava por dar ainda, quasi inteiramente, a mão d’obra literaria. A revisão pelo Senado não poderia evitar esse acréscimo de tarefa, se quisesse produzir obra, que servisse ao paiz, e honrasse o congresso.” (Excerto do Parecer do Senador Ruy Barbosa sobre a redação do Projeto de Código Civil da Câmara dos Deputados – mantida a grafia da época.)

Muito se falou e escreveu sobre o Parecer de RUY, lavrado em escassos três dias, indicando os percalços vernaculares que sofria o projeto de Código Civil baseado no trabalho de Clóvis Bevilacqua, discutido e aprovado pela Câmara dos Deputados. Inegável, porém, o apuro que pretendeu emprestar ao monumento legislativo o baiano ilustre, nem sempre bem aceito em seu intento pelo parlamento da época.

Fico a imaginar qual seria o comportamento de Ruy, como parlamentar na atual legislatura, com o encargo de examinar o novo Código de Processo Civil. Não sei o que teria pensado e escrito o parlamentar, mas, certamente, palavras de desconsolo jorrariam. O esforço de crítica e decifração seriam intensos. Sem o intuito de emular o erudito parlamentar e jurista, anotei alguns dos principais equívocos perpetrados pelo legislador processual. Reproduzo o texto legal e, em seguida, aponto a cincada.

Art. 56. Dá-se a continência entre 2 (duas) ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o das demais. (o equívoco está em negrito)

Com as licenças de estilo, ou bem o legislador cuida de tudo no tempo presente, ou vai para o futuro: “Dá-se a continência.... sempre que há”, ou: “dar-se-á a continência... quando houver.

Ao inaugurar o Livro IV, que cuida dos atos processuais, o legislador saiu-se com esta pérola:

Art. 188. Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial. (o equívoco está em destaque)

O correto é: quando a lei expressamente o exigir. Deveras, não importa que a referência do “o” seja à forma determinada (no feminino). Observe-se, a respeito do tema, a lição do mestre Napoleão Mendes de Almeida: “O artigo o funciona também como demonstrativo neutro e, em tal caso, pode substituir tanto um nome quanto um verbo, tanto um adjetivo quanto, ainda, uma oração inteira.”

... (omissis)

“Sois espiã? – Não o sou” (não sou isso, isto é, espiã). O itálico já estava no original.1

Elucidativo é, também, este trecho de Evanildo Bechara: “devemos recorrer à forma flexionada somente quando o exigir a clareza.”

Também o § 4º do art. 95 contém impropriedade. Veja-se:

Art. 95.....
§ 4º Na hipótese do § 3º, o juiz, após o trânsito em julgado da decisão final, oficiará a Fazenda Pública para que promova, contra quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, a execução dos valores gastos com a perícia particular ou com a utilização de servidor público ou da estrutura de órgão público. Se o responsável pelo pagamento das despesas for beneficiário de gratuidade da justiça, observar-se-á o disposto no art. 98, § 2º.

Lançou-se o verbo oficiar como se fora transitivo direto. Ocorre que, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), da Academia das Ciências de Lisboa, um dos sentidos do verbo oficiar é «dirigir ou mandar um ofício», «dirigir uma comunicação ou carta oficial», do que se infere que «se constrói com sujeito agente e com complemento, destinatário, da forma a + nome humano» (Francisco da Silva Borba, Dicionário Gramatical de Verbos do Português Contemporâneo, 1991, p. 954) como se pode ver em: «Vamos oficiar ao vice-presidente da Comissão de Preços», «O promotor intervém e afirma que vai oficiar à Procuradoria-Geral da Justiça, pedindo instauração do inquérito criminal».

Por ser transitivo direto, esse verbo implica a construção «oficiar a ou oficiar-lhe» (Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, São Paulo, Ática, 2003, p. 383), uma vez que significa «dirigir ofício ou comunicar por ofício (a alguém): O secretário oficiou ao governador que a escola agradecia a sua ajuda através de subvenções» (idem).

O interessante é que, na parte final do § 6º do art. 77, o legislador processual acertou a regência, como se percebe da redação que lhe emprestou: “Aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2º a 5º, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará.”

No art. 122, há outro equívoco, um pouco mais sutil:

Art. 122. A assistência simples não obsta a que a parte principal reconheça a procedência do pedido, desista da ação, renuncie ao direito sobre o que se funda a ação ou transija sobre direitos controvertidos.

Há, aí, um a espécie de pleonasmo. Transação já supõe direitos controvertidos. Talvez pudesse ser dito: “transija sobre direitos patrimoniais”.

No art. 143, comparece outro equívoco, da mesma natureza do que acaba de ser apontado. Disse o legislador:

Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:

I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

Pergunta: existe alguma fraude sem dolo? De fato, parece-me que dolo é inerente à fraude perpetrada pelo juiz. Bastaria dizer: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo.

É certo que outros problemas há (ênclises duvidosas, ausências de paralelismo e coisas do gênero), mas esses são os mais gritantes.

______________

1 Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 34. Ed. – São Paulo: saraiva, 1986, p. 189.

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Colunistas

Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado. Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação lato sensu do IDP. Coordenador do Grupo de Estudos "Instituições de Processo Civil" do IDP. Coordenador da disciplina de Processo da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.

Jorge Amaury Maia Nunes é advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou a disciplina Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação stricto sensu. Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.