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Prerrogativas da advocacia são protegidas por lei

São garantias que visam não um privilégio como dito e, em última análise, asseguram ao cidadão agentes públicos independentes e firmes na aplicação da lei.

30/6/2017

Outro dia estava junto com alguns amigos discutindo a questão das prerrogativas, especialmente a dificuldade que alguns juízes impõem ao atendimento do advogado, quando me lembrei de um conto popular denominado “Farroupilha”.
 
Trata-se da história de um general brasileiro, que em meio a uma das guerras ocorridas no final do século XIX, à noite jogava pôquer com seus soldados. Era a forma que tinham para se divertir.
 
Num determinado dia, o jogo estava rolando alto, muito dinheiro na mesa, quando o general pagou para ver a aposta de um soldado que tinha um "royal street flash", a mais valiosa combinação de cartas. Após mostrar seu jogo, e vendo que o general não tinha nenhum jogo em sua mão, o soldado imediatamente, e com incontida felicidade, passou a puxar as fichas que transbordavam sobre a mesa.
 
Sua alegria durou pouco. Mal começou a puxar as fichas, o soldado foi interrompido pelo general, que foi peremptório: "Êpa! Farroupilha! Quem ganhou fui eu!"

Diante da cara de incredulidade de todos, o general explicou que numa partida de pôquer, quando um jogador tem royal street flash e o outro não tem nada, configura-se farroupilha, jogo que ganha de qualquer outro.
 
O jogo então seguiu sem questionamentos e a roda da vida fez com que o mesmo soldado enfrentasse mais uma vez seu general numa aposta alta. Desta vez, tendo o general royal street flash, o soldado, ao constatar que em sua mão não formava nenhum jogo, gritou: Farroupilha!
 
Foi então que o general, com sua autoridade, respondeu: “Farroupilha só pode uma vez no jogo”.
 
Essa estória, embora seja uma criação da inteligência humana, revela um pouco a relação que alguns têm com as normas e princípios, muitas vezes criando, interpretando ou mitigando a aplicação do direito, casuisticamente.
 
De fato, as regras devam valer para todos indistintamente, razão porque a nossa sociedade deve condenar comportamentos como o do general “farroupilha”, que não apenas inventou uma regra, como também limitou sua aplicação apenas quando a mesma lhe beneficiava e, pelo contrário, impediu que a mesma se efetivasse para atender o direito de seu soldado.

E, então, haverei de ser questionado, o que a história da aposta “farroupilha” tem a ver com as prerrogativas?
 
Tem muito, conforme passaremos a demonstrar.

Prerrogativas não se confundem com direitos adquiridos em decorrência do exercício de um trabalho, como as férias, pois em verdade representam a garantia que uma classe tem para o exercício de sua profissão. Os jornalistas, por exemplo, tem a garantia do sigilo da fonte.
 
Na área jurídica, não seria possível o exercício fiel de cada uma das atividades necessárias ao funcionamento da Justiça sem as prerrogativas consectárias a cada uma das funções exercidas. Os juízes e promotores, por exemplo, têm assegurado constitucionalmente a irredutibilidade dos subsídios, a inamovibilidade e a vitaliciedade. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional estabelece ainda outras prerrogativas, a exemplo do juiz não estar sujeito a notificação ou a intimação para comparecimento, salvo se expedida por autoridade judicial.

São garantias que visam não um privilégio como dito e, em última análise, asseguram ao cidadão agentes públicos independentes e firmes na aplicação da lei.
 
A defesa das prerrogativas dos juízes e promotores, por consequência, é uma defesa da cidadania.
 
O mesmo se aplica ao advogado, que exerce um serviço público com função social (lei 8.906/94, art. 2º), sendo, por obra da CF, “indispensável à administração da justiça” e “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
 
Apesar do flagrante desconhecimento de muitos, as prerrogativas da advocacia, além da Constituição Federal, também estão albergadas na Lei Federal 8.906/94 (Estatuto do Advogado), sendo sua inobservância uma injustificada e manifesta desobediência legal.

Como se vê, assim como juízes e promotores, temos prerrogativas que são indispensáveis ao exercício do nosso munus, todas elas também justificadas como uma garantia para a cidadania, que exige advogados independentes e não submetidos aos arbítrios do poder de quem exerce função pública.
 
Em que pese a importância do advogado e de suas prerrogativas, a verdade é que cotidianamente tomamos conhecimento de agentes públicos que se recusam a receber advogados, que obstaculizam sua comunicação com o cliente, que impedem o livre acesso aos cartórios e até mesmo a vista de autos. Enfim, são muitas e reiteradas as violações, todas elas, registre-se, objeto de firme atuação da Ordem assim que as violações chegam a seu conhecimento.   
 
Por si só, o desrespeito à Lei é inaceitável. Pior ainda quando praticado por autoridades a quem cabe a sua aplicação, como é o caso do juiz.

Assim, é inaceitável que nas dependências das serventias judiciais sejam vistas regras “farroupilhas” do tipo: “O juiz desta vara não recebe advogados”, ou nas dependências de outros órgãos públicos, “advogados devem aguardar atendimento no balcão” ou coisas que o valham, porquanto a “criação destas regras” colide com o nosso ordenamento jurídico, carecendo de amparo jurídico a lhes emprestar validade enquanto normas, perfazendo, em verdade, invencionices casuísticas e violadoras do direito do outro.

Tais disposições em nada se prestam à defesa das prerrogativas de quem as invoca, materializando, em verdade, um abuso dos seus legítimos direitos, revelando tirania injustificável em tempos de máxima democracia.

A lei é para todos, de forma que temos, sim, que exigir o cumprimento de nossas prerrogativas, combatendo firmemente o agente público “farroupilha", que exige para si as garantias da sua profissão, mas vira as costas para a lei, manifestamente descumprindo-a quando em questão direito e garantia do outro.
 
A advocacia não aceita esse comportamento e combaterá com todas as forças todo e qualquer desrespeito às suas prerrogativas legítima e duramente conquistadas, a partir da atuação de grandes nomes da nossa classe, que marcaram a história com suas lutas em favor do Estado Democrático de Direito, permitindo-nos avançar enquanto sociedade.

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*Fabrício de Castro Oliveira é advogado e conselheiro federal.



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