Migalhas de Peso

Precisamos falar sobre a participação dos credores nos processos de insolvência!

A lei de recuperação judicial, extrajudicial e falências precisa ser reformada a fim de instigar os credores a participarem do procedimento de renegociação.

5/2/2020

Caro leitor, a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, dentre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa1 e são objetivos fundamentais de nossa República, garantir o desenvolvimento nacional, construir uma sociedade livre, justa e solidária, entre outros mais.2

Há, também, na norma fundante do ordenamento jurídico pátrio uma lista de princípios da ordem econômica e financeira, dentre os quais se destaca a propriedade privada, a redução das desigualdades sociais e a função social da propriedade.3

Referidas normas constitucionais, devidamente insculpidas nos artigos 1º, 3º e 170, da Carta Constitucional em vigor, devem iluminar as relações privadas, com relevo para o Direito Empresarial, servindo, igualmente, como norte ao legislador infraconstitucional. Mas não somente. A norma constitucional também possui caráter político-pedagógico que deve estimular e fomentar, na sociedade civil, o interesse em resolver suas demandas cotidianas com boa-fé e com a celeridade adequada a cada caso.

Por consequência, vislumbrando na atividade econômica exercida pelas empresas em geral, fundamental instrumento de consecução dos fundamentos, objetivos e princípios da República, foi necessário que se outorgasse às referidas entidades, regras jurídicas especiais quando houvesse a necessidade de se viabilizar a superação de eventual crise econômico-financeira.

Para tanto, é de conhecimento comum que o microssistema legal que disciplina os processos de insolvência no Brasil possui na lei 11.101/05 e na jurisprudência construída ao entorno dela, importantes pilares concretizadores dos mencionados objetivos.

Não é segredo, igualmente, que o alvo da mencionada legislação, a princípio, é de viabilizar, na medida do possível, a transposição da situação de crise da empresa, com a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e estimulando a atividade econômica.4

Mas, passada mais de uma década desde a edição da Lei, a contínua aplicação revela a urgente necessidade de o ordenamento jurídico despertar maior envolvimento dos credores nos processos de recuperação judicial e falência.

São notáveis, no Brasil, os casos atuais em que as dívidas das empresas que solicitam recuperação judicial superam a casa dos bilhões de reais. O que, por certo, gera um efeito imediato no mercado, uma vez que aqueles credores que estavam na expectativa de receber o crédito, na forma originalmente contratada, vislumbram-se sujeitos ao procedimento coletivo de insolvência e a incerteza decorrente dessa nova situação.

Tem se revelado comum a participação de grandes instituições financeiras ou credores com créditos sobremodo elevados em procedimentos da referida natureza. No entanto, aqueles que detém créditos de monta média ou pequena, eventualmente calculam que seria mais caro remunerar um profissional para acompanhar o processo de insolvência e, em suma, não participam do esforço coletivo.

Mister que o legislador seja sensível a esse fato e perceba a necessidade de alterar a legislação de regência, no intuito de reduzir burocracias.

O processo de insolvência nada mais é que um processo coletivo em que se concentram diversos direitos patrimoniais. Ainda que haja a novação das obrigações originalmente contratadas é relevante para o mercado confiar na legislação a ponto de ter a garantia legal de que cada credor será efetivamente notificado do andamento do processo dessa natureza, gerando mais transparência e uma efetiva renegociação de dívidas.

É necessário incentivar, com muita ênfase, por exemplo, a mediação em processos desta natureza. Nesse sentido, Letícia Marina da Silva Moura e Luiz Gustavo Pereira Franco5 alertam que a mediação garante agilidade aos processos de recuperação judicial e falências.

Nessa trilha, de relevo que se crie meios para aproximar o credor de menor capacidade financeira do procedimento judicial de insolvência, de modo que ele possa efetivamente influenciar na formação da vontade coletiva acerca da proposta de pagamento apresentada pelas devedoras, no caso do processo de recuperação judicial, por exemplo.

Esse encorajamento pode se dar através de estímulos que mudem a realidade de processos desta natureza. Os próprios credores, principais interessados na solução rápida da lide coletiva, precisam passar a se tornarem os principais atores do processo, em paralelo com os administradores(as) judiciais, Promotores(as) de Justiça, Juízes(as) de Direito.

Como fazê-lo? Para contextualizarmos, façamos uma breve incursão na literatura moderna.

Richard H. Thaler (ganhador do prêmio Nobel de economia em 2017) e Cass R. Sunstein (professor na Escola de Direito de Harvard) revelam através do livro “Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade”6, como utilizar a denominada “arquitetura de escolha”. Segundo os autores, “nudge” é qualquer aspecto da arquitetura de escolhas capaz de mudar o comportamento das pessoas de forma previsível sem vetar qualquer opção. Em síntese, possuem o intento de explicar como criar um ambiente que estimule boas decisões.

Nesse ínterim, sugerimos alguns “nudges” que poderiam ser criados por um novel regramento jurídico.

A Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falências precisa ser reformada a fim de instigar os credores a participarem do procedimento de renegociação.

Um dos problemas do modelo atual é o seguinte. A experiência com a publicação de editais (de convocação para Assembleias ou de notificação acerca da apresentação de listas de credores, por exemplo), ainda que seja feita em Diário Oficial e em jornais de grande circulação, revela-se demasiadamente insuficiente ao propósito de trazer a atenção dos credores para os processos judiciais de insolvência.

Em pleno ano de 2020, revela-se imperioso que a própria lei determine que a devedora, ao ajuizar o pedido de recuperação judicial, forneça o e-mail, assim como o telefone, preferencialmente o celular, de todos os credores, sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial. E não somente nome, endereço e número do CPF/MF ou CNPJ/MF de cada credor. Essa primeira medida permitiria a criação de um banco de dados, pelo administrador judicial e pela serventia judicial, tão logo haja o deferimento do processamento da recuperação judicial, por exemplo.

Toda decisão judicial proferida no âmbito do processo de recuperação judicial ou falência deveria ser obrigatoriamente encaminhada diretamente a cada um dos credores, por e-mail, pela administração judicial, que já deteria desde o início de sua atuação no processo, o banco de dados. Ao fazê-lo, deveria, igualmente, encaminhar uma mensagem por aplicativo utilizado para essa finalidade ou por SMS, comunicando acerca da novidade. As mesmas providências deveriam ser efetuadas em casos de publicação de editais no curso do processo. O que aproximaria os credores da realidade e do cotidiano processual.

Audiências de gestão democrática ou Assembleias de Credores, previamente convocadas, mediante ampla publicidade aos credores e aos sujeitos processuais, também poderiam servir para reduzir a burocracia processual e permitir uma solução coletiva mais rápida de eventuais questões pendentes.

O Juiz de Direito, Dr. Daniel Carnio Costa explica que as audiências de gestão democrática são uma importante metodologia de gestão de processos que permite imprimir mais eficiência e velocidade à prestação jurisdicional em processos dessa natureza, além de outros importantes benefícios.7

Outro ponto fundamental de mudança repousa no Comitê de Credores.

Ao nosso sentir, a formação do Comitê deveria ser obrigatória.

Além de essa figura legal deixar de ser apenas uma abstração jurídica, serviria o Comitê como importante fiscalizador e fomentador do rápido processamento do processo de insolvência e da conformação do Plano de Recuperação Judicial.

Diversos estímulos para o credor fazer parte do Comitê poderiam ser criados. A participação em Assembleia não precisaria ser presencial. A participação poderia se dar através de envio prévio, por escrito, da vontade do credor, de compor o Comitê ou não, consoante já se propõe no PL 10.220/18 em tramitação no Congresso Nacional.

Ademais, caso nenhum credor se voluntarie para compor o Comitê, a nomeação dos membros poderia ser feita judicialmente. Ante a existência de custos, o credor poderia declinar da nomeação, mediante justificativa escrita, a ser submetida ao critério do juízo do processo de insolvência.

Para tanto, a realização de Assembleia Geral de Credores para formação do Comitê deveria ocorrer de ofício, tão logo fosse apresentada a Segunda Relação de Credores pelo Administrador Judicial, mediante convocação judicial. E a notificação sobre a realização da Assembleia Geral de Credores poderia ser realizada através de intimação dos credores cadastrados nos autos, comunicação via e-mail e contato telefônico, sendo as duas últimas medidas realizadas obrigatoriamente pelo(a) Administrador(a) Judicial (por mensagem enviada por aplicativo de mensagens ou por “SMS”).

Quais os benefícios desse novo regramento ora proposto quanto ao Comitê?

Por exemplo, aos credores componentes do Comitê seria vedada, a imposição de deságio do crédito pela Devedora no plano de recuperação judicial, sem prejuízo da imposição de carência e parcelamento tal como feita aos demais credores componentes da classe em que cada um figure, respectivamente.

Caso o Plano não imponha carência a nenhum credor de determinada classe e seja aprovado pela Assembleia Geral de Credores, deve o Juiz fixar remuneração ao Comitê de Credores. Remuneração total que não deve desbordar do limite máximo de 0,5% do valor total da dívida submetida à recuperação judicial, a ser rateada entre os membros.

Ou, ainda, caso a Devedora alegue não ter condições de arcar com o referido montante, o pagamento dos credores componentes do Comitê que se enquadraram na hipótese anterior deveria ser realizado, ainda que com o deságio previsto à sua respectiva classe, sem qualquer prazo de parcelamento. Ou seja, a quitação do crédito submetido à recuperação judicial do credor componente do Comitê deveria ocorrer à vista, tão logo houvesse a publicação da decisão de homologação do Plano de Recuperação Judicial ou de concessão do benefício da recuperação judicial, a depender do caso concreto.

A opção por uma das três alternativas excluiria a outra.

A adoção de qualquer dessas três medidas evita qualquer alegação de trabalho sem contrapartida, bem como qualquer enriquecimento sem causa ou alegação de privilégio de credor. Os componentes do Comitê velariam, em suma, pelos interesses dos credores de sua respectiva classe, mediante responsabilidade cível, caso houvesse prova em contrário.

Medidas como as sugeridas na presente oportunidade poderiam servir para reduzir a compreensão de que os créditos sujeitos a processos de insolvência seriam créditos perdidos, percepção eventualmente decorrente de experiências negativas do passado com processos dessa natureza.

Ainda que os créditos sejam novados por meio de aprovação de planos de recuperação judicial ou extrajudicial (que contaram com a efetiva participação e ciência dos credores acerca dos atos praticados). Desse modo, a Lei de insolvência (Recuperação Judicial e Falências) velaria, de maneira mais precisa, pela proteção da propriedade privada e criaria instrumentos de otimização, a fim de agilizar o recebimento de créditos em processos dessa natureza, oxigenando a economia no País.

Os credores ganhariam com o legítimo acompanhamento do processo de recuperação judicial e de falência, com o recebimento mais célere de seus créditos e com a maior democratização do processo judicial de insolvência.

É momento, portanto, de refletirmos através de medidas propositivas de mecanismos que permitam a verdadeira participação de todos os credores submetidos aos efeitos de processos de recuperação judicial e falências.

Contamos com você, legislador infraconstitucional, para promover as necessárias reformas ao sistema de insolvência pátrio!

_______________

1 Constituição Federal de 1988, Art. 1º.

2 Constituição Federal de 1988, Art. 3º.

3 Constituição Federal de 1988, Art. 170.

4 Lei 11.101/05, Art. 47.

5 A mediação garante agilidade aos processos de recuperação judicial e falências. Disponível em: https://ieadireito.jusbrasil.com.br/artigos/801161405/a-mediacao-garante-agilidade-aos-processos-de-recuperacao-judicial-e-falencias?ref=feed. Acesso em 02 fev. 2020.

6 Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade / Richard H. Thaler, Cass R. Sunstein: tradução Ângelo Lessa. 1ª ed. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. Título original: Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth, and Hapiness.

7 Audiências de Gestão Democrática de Processos de Insolvência (Falências e Recuperações Judiciais de Empresas). Disponível aqui. Acesso em 02 fev. 2020.

___________________________________________________________________________

*Paulo Henrique Faria é advogado empresarialista. Pós-graduando em Advocacia Empresarial pela EBRADI/OAB-SP. Pós-graduado em Direito Público. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO. Membro do Núcleo de Direito Empresarial do IEAD - Instituto de Estudos Avançados em Direito. Ex-assessor de juiz de Direito. 


Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Burnout e INSS: Como conseguir aposentadoria ou auxílio-doença?

29/4/2024

A importância do combate à alienação parental e o papel dos advogados de Direito de Família

29/4/2024

Facilitando o divórcio: O papel do procedimento extrajudicial na dissolução do casamento

29/4/2024

A validade da cláusula de não concorrência nos contratos de franquia

29/4/2024

O futuro das concessões e PPPs no Brasil: Lições do passado, realidades do presente e visão para o amanhã

29/4/2024