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O direito de emergência instala crise de legalidade no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus

Decretos, positivados pelo Poder Executivo, tem despertado preocupação, com concentração de atos normativos que ferem o princípio da legalidade

13/5/2020

Surgiu um direito de emergência, misturando Leis formais, medidas provisórias e decretos. No afã de atender às demandas sociais no contexto de crise provocada pela doença covid-19, disseminada a partir da proliferação do vírus SARS-CoV-2, o Estado – aqui compreendido em sentido amplo – buscou meios ágeis para inovar no ordenamento jurídico.

Daí, no entanto, emerge à superfície da democracia uma verdadeira crise de legalidade, a ser sanada pelos intérpretes autênticos do direito, tendo a Constituição como alternativa à uma cegueira deliberada. Isto é, fechar os olhos para as regras atinentes à produção e edição de normas não é medida saudável na preservação da higidez institucional.

O que se apresenta, portanto, é um estado de coisa que afronta o rule of law (Estado de Direito), fundado sob o primado da hierarquia das normas, onde Decretos e Medidas Provisórias desempenham papéis inferiores às Leis e, sobretudo, à Constituição, cuja posição é o ápice da pirâmide. Inverte-se, outrossim, a tradicional pirâmide de Kelsen.

Na hipótese de reconhecer a competência de Estados e municípios na regulação do enfrentamento à pandemia, ainda assim não seria competência das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais a edição de normas, em vez dos Poderes Executivos?!

Com efeito, um conjunto de fatores contribuem com a crise de legalidade instalada no país. A título de inspiração, extrai-se trecho do decreto 29.583/20, editado pelo Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Norte e objeto de diversas alterações por outros decretos, consolidando o artigo 22 com a seguinte redação:

Art. 22. O descumprimento das medidas de saúde para o enfrentamento do novo coronavírus (covid-19) decretadas no âmbito do Estado do Rio Grande do Norte enseja ao infrator a aplicação de multa diária de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), sem prejuízo da adoção de medidas administrativas como a apreensão, interdição e o emprego de força policial, bem como da responsabilização penal, pela caracterização de crime contra a saúde pública, tipificado no art. 268 do Código Penal, e civil.

§ 1º A multa de que trata o caput observará os valores mínimos:

I - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para pessoas naturais;

II - de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) para pessoas jurídicas de direito privado.

§ 2º O descumprimento ao artigo 20, §§ 1º e 1º-A, submeterá a pessoa natural, unicamente, ao processamento pela infração cometida ao artigo 268, do Código Penal, sem prejuízo de eventual sanção pecuniária prevista em norma municipal editada até a publicação deste decreto.

§ 3º As pessoas jurídicas autorizadas a funcionar deverão exigir dos clientes, funcionários e colaboradores o cumprimento do art. 20, § 1º, sob pena de multa de 20% (vinte por cento) do valor mínimo previsto no art. 22, § 1º, II.".

É de estranhar, considerada a ordem jurídica brasileira, que um decreto institua medidas de restrição de direitos, com aplicação de multa, sem a participação do Poder Legislativo Estadual. A Constituição, no inciso II do artigo 5º, em uma de suas vozes mais populares, afirma: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Em outro exemplo, cita-se o decreto 64.959, de 4 de maio de 2020, emanado do Governo do Estado de São Paulo, fica instituída a obrigatoriedade do uso de máscaras, fixando multa relevante por seu descumprimento. Diferente do Decreto do Rio Grande do Norte, contudo, a norma paulista faz referência ao Código Sanitário do Estado (lei 10.083, de 23 de setembro de 1998), que fora debatida e aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo, cujo teor prevê as sanções pecuniárias.

Não obstante a correta indicação de multa prevista em lei, o decreto não escapa ao erro técnico, infringindo a Constituição, porquanto cria conduta enquadrada como infração administrativa à revelia da legalidade. Nesta feita, há inovação na ordem jurídica por meio de decreto, sem condução do Poder Legislativo.

Compreensível – bom que se registre – a necessidade de regular a atuação dos particulares e implementar medidas enérgicas no combate à disseminação do vírus; há, por outro lado, a imprescindibilidade de obediência às leis e à Constituição.

De mais a mais, nem mesmo a lei 13.979, de 06 de janeiro de 2020, aprovada pela Congresso Nacional e sancionada pela presidência da República, cujo teor disciplina as ações de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, autoriza a imposição de multas a pessoas naturais ou jurídicas.

Depreende-se do cenário que, embora haja legitimidade e autoridade para exercício do poder político, não se pode escamotear a distribuição de prerrogativas definida pela Constituição da República, usurpando a instância máxima de deliberação das vontades sociais: o parlamento. Some-se a isso a limitação imposta pelo ordenamento jurídico brasileiro no que se refere ao exercício do poder de polícia.

Nesse contexto, a solução repousa na participação ativa dos órgãos legislativos, fórum ideal para a regulação da vida em sociedade, mormente em circunstâncias de estresse, como é o caso. Afinal de contas, cabe ao Poder Legislativo, por natureza constitucional, inovar no mundo jurídico, restringindo – ou criando – direitos, assim como impondo obrigações.

O Estado Democrático de Direito é nossa escolha, mormente nas crises. Sintetizamos nosso acordo de vontades, enquanto nação, na Constituição de 1988. Não há solução à margem da lei.

_________

*Nicácio Carvalho é advogado, sócio do escritório Carvalho, Costa, Guerra & Damasceno Sociedade de Advogados, professor, especialista em processo pela PUC/MG e Diretor Jurídico da CDL Jovem Natal.

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