1. Introdução
Reina no imaginário jurídico brasileiro a crença de que a boa-fé tem eficácia mitigada no campo do direito comercial. Com efeito, corrente é a afirmação de que nas relações entre "contratantes iguais", nas quais inexistem desníveis estruturais, como sói ocorrer, em regra, nas relações empresariais, a boa-fé objetiva teria importância reduzida. Com isso, busca-se, em geral, afastar o reconhecimento pelo juiz ou árbitro de deveres adicionais de conduta no caso concreto.
O discurso, porém, carece de fundamentação. O equívoco mostra-se já sob uma perspectiva histórica, pois foi no campo do direito comercial medieval que a boa-fé objetiva – tal como hoje compreendida1 – surgiu e se desenvolveu na Alemanha, penetrando posteriormente na jurisprudência do antigo Tribunal Imperial alemão (Reichsgericht) e, na sequência, no direito civil2.
A partir do direito germânico, a noção se expandiu para outros ordenamentos jurídicos, sendo recepcionada no Brasil principalmente através da obra pioneira de Clóvis do Couto e Silva3 e, no plano legislativo, no Código de Defesa do Consumidor, vez que o art. 131 do antigo Código Comercial de 1850 permaneceu letra morta durante sua vigência, como lucidamente coloca José Carlos Moreira Alves4.
Sob o aspecto sistemático, a crença também não se sustenta, pois a boa-fé, enquanto mandamento de eticidade e proteção da confiança, é princípio estruturante de todo direito, principalmente do direito obrigacional5. Longe de constituir um entrave ao funcionamento do comércio, a boa-fé objetiva – ao regular o comportamento dos agentes econômicos e tutelar as expectativas – garante previsibilidade e segurança, reduzindo os custos de transação e aumentando a eficiência do sistema.
Não por acaso os comercialistas há muito advertem que um mercado sem respeito à boa-fé e à proteção da confiança tenderia ao colapso, porque dificultaria a fluidez das relações econômicas6. A ciência jurídica ocidental alcançou aqui o point of no return: a boa-fé objetiva é a regra de ouro do comércio jurídico e o desafio agora é corrigir os desvios de sua aplicação na experiência brasileira, conferindo racionalidade e coerência à teoria da confiança, desenvolvida à partir do princípio.
De qualquer forma, o fato de haver equilíbrio (real) de forças entre os contratantes só impede – in abstracto – o surgimento de alguns deveres laterais de conduta, como informação e esclarecimento, não dispensando a exigência de deveres outros como lealdade, cooperação, diligência e sigilo, de acordo com as peculiaridades da situação concreta. Tão pouco obsta a incidência do princípio como cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico e como freio ao exercício de direitos, inclusive da autonomia privada e da liberdade contratual.
Temida por ser um "conceito vago", a boa-fé objetiva, como ensina com propriedade a doutrina alemã, consiste no mandamento da eticidade no comércio jurídico, desdobrando-se em dois comandos centrais: agir com retidão e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte, ainda quando perseguindo a satisfação de seus próprios interesses – inclusive o fim de lucro, inerente à atividade empresarial7.
Devido à função elementar de tutela da confiança no comércio jurídico, a boa-fé implica, necessariamente, limitação de conduta e equilíbrio de forças na relação jurídica (equilíbrio contratual).
É o chamado núcleo duro do conceito da boa-fé (retidão e consideração pelos interesses da contraparte) que vai guiar a aplicação do princípio em suas três funções básicas: como cânone hermenêutico máximo (art. 113, caput CC2002), como controle do exercício abusivo de posições jurídicas (art. 187 CC2002) e como fonte de deveres ético-jurídicos de conduta (art. 422 CC2002), ditos deveres laterais de conduta ou, hodiernamente, deveres de consideração (Rücksichtspflichten), a englobar uma gama de comandos jurídicos individualizáveis: lealdade, informação, esclarecimento, alerta, conselho, sigilo, proteção stricto sensu, guarda, diligência, cooperação, etc.
Nas relações obrigacionais duradouras, as quais exigem maior contato e colaboração entre as partes, a boa-fé incide de forma plena em todas as suas funções: guiando a interpretação contratual, limitando o exercício de posições jurídicas e criando deveres adicionais para os contratantes, os quais, quando violados, dão ensejo ao dever de indenizar e, em casos excepcionais, à resolução do contrato.
Dessa forma, a eficácia do princípio sobre os contratos comerciais decorre lógica e necessariamente de sua função (proteção da confiança no comércio jurídico) e posição central no sistema jurídico e no Código Civil, que, vale lembrar, regula de forma unificada o direito civil e comercial8.
Não paira, portanto, a menor dúvida acerca da eficácia da boa-fé dos arts. 113, 187 e 422 CC2002 nos contratos de concessão comercial de veículos, disciplinados pela lei 6.729/1979, conhecida como Lei Ferrari, que, enquanto diploma especial e anterior à codificação, nada disciplina sobre a boa-fé e as consequências jurídicas de sua violação. A incidência ainda mais se justifica em razão da natureza e das características da relação contratual existente entre concedente e concessionário, como adiante demonstrado.
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