Migalhas de Peso

Por que a lei da alienação parental deve permanecer?

A lei 12.318/10 (lei da AP) apresenta lacunas, falhas e deficiências, mas sua completa revogação não soluciona o problema.

8/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 26/8 completaram-se 11 anos de vigência da lei 12.318/10, a lei da Alienação Parental. No dia seguinte, 27/8, é o Dia do Psicólogo (no Brasil 59 anos de regulamentação da profissão). Pode parecer coincidência, mas entendo que não. A proximidade das datas deve ter uma razão de ser, uma vez que a alienação parental deve ser aprofundada pelos psicólogos que atuam na clínica e para os processos judiciais.

A Alienação Parental são os atos de obstrução do exercício da parentalidade, praticados por qualquer dos genitores, ou mesmo por ambos, ou até por um terceiro (avós, tios, padrasto/madrasta) que tenha a criança ou adolescente sob sua guarda ou vigilância, para que passe a rejeitar o(a) genitor(a)-alvo. Os atos exemplificativos elencados no rol dos incisos do art. 2º da lei 12.318/10. Trata-se de um abuso moral (art. 3º da referida lei) contra a criança ou adolescente, tendo em vista que objetiva o afastamento não somente físico, como também afetivo da criança/adolescente em relação ao(à) genitor(a)-alvo (mais grave ainda quando a AP ocorre em ambos os lados da família, e a criança/adolescente se sente dividida, pressionada, forçada a “escolher” com quem quer ficar, impedida de manifestar satisfação em estar com o(a) genitor(a)-alvo, e os recursos utilizados para tal objetivo são inidôneos: esvaziar a autoridade parental, impedir qualquer forma de contato, mudar-se para local sem justificativa, até o extremo de acusar o(a) outro(a) genitor(a) ter praticado alguma forma de violência (física, psicológica, sexual). 

A AP pode variar de graus de intensidade, começando com ‘leve’ (esquivas inespecíficas para estar com o(a) outro(a) genitor(a)), ‘moderado’ (começar a recusar abertamente a companhia do(a) outro(a) genitor(a)), até o ‘grave’ (hostilização ostensiva, ou mesmo a crença de que ele(a) tenha molestado física e/ou sexualmente). Importante frisar que, caso o(a) genitor(a) tenha praticado de fato algum ato aversivo contra a criança/adolescente (ex.: abuso sexual), não caracteriza AP. A AP procura dar uma aparência de verdade a uma mentira (como o(a) alienador(a) não tem um motivo real para afastar o(a) outro(a), “inventa” um). A AP altera (melhor dizendo, adultera) o juízo moral da criança/adolescente, que passa a assumir os parâmetros de certo-errado do(a) genitor(a) alienador(a), porque teme ser abandonado por ele(a) ou desagradá-lo(a). E também torna inseguros e instáveis os vínculos da criança com o(a) outro(a) genitor(a). 

O problema é que genitores que, de fato tenham praticado algum ato inapropriado para a criança/adolescente, invocam a lei da AP para ocultar suas intenções. Assim é que a lei acaba equivocadamente confundida com “lei de proteção a pedófilos”, quando genitores abusadores tentam burlar o Judiciário para retomar a convivência com a criança (geralmente, filho ou familiar próximo), o que distorce a intenção do legislador de elaborar a lei para impedir que genitores(as) mal intencionados utilizem do recurso inescrupuloso de implantar falsas memórias na criança/adolescente, mediante a indução à crença em acusação de abuso que, só anos mais tarde, com um pouco de ‘sorte’, se comprovem ser inverídicas.  É essa crença distorcida, decorrente do uso inadequado da Lei da AP, que faz com que grupos societários mal informados exijam sua revogação, sem propor formas de aprimoramento do texto legal para impedir essa manipulação, como frequentemente ocorre com a Lei “Maria da Penha”, que é continuamente manipulada por pessoas inescrupulosas, mas ninguém exige sua revogação.

Quando, anos mais tarde, essa criança/adolescente perceber que tudo não passou de uma farsa de interesse do(a) alienador(a), tende a desenvolver sentimentos aversivos por ele(a): ódio, afastamento, recusa a qualquer contato, como ocorreu anteriormente em relação ao(à) genitor(a)-alvo. Por vezes, a criança/adolescente tenta reencontrar aquele(a) genitor(a) anteriormente alvo da AP, mas nem sempre isso é possível: ou já faleceu, ou está com outra família, pode existir mágoas, ressentimentos insuperáveis; há também a tendência a comportamentos autodestrutivos ao perceber que foi manipulada pelo(a) genitor(a) alienador(a).

Observo nos processos judiciais de Família, que a alienação parental só é mencionada pelos operadores do Direito (advogados, promotores, juízes), e bem pouco (ou quase nada!) pelos psicólogos. Por que isso acontece? Por duas razões, ambas negativas para a Psicologia:

1.      Não temos recursos ou instrumentos validados para avaliar a alienação parental, seja em contexto clínico, seja em contexto jurídico.

Em contexto clínico, vemos crianças e adolescentes apresentando sintomas tanto físicos quanto emocionais: mudança de comportamento, alterações de humor, depressão, irritabilidade, insônia, dificuldades de alimentação (transtornos alimentares), choro compulsivo, comportamentos opositivos, chegando até a comportamentos autolesivos e autodestrutivos (ex.: automutilação, tentativas de suicídio) em decorrência dos conflitos entre os pais, juntos ou separados, e/ou uma opressão psicológica por parte de um deles para impor seus valores e denegrir a imagem do outro.

Como afirma DUARTE (2012, p.176):

Nos casos de litígio conjugal, como é possível constatar na clínica, é que se podem e tender a ocorrer os maiores problemas envolvendo os filhos. Como os pais querem vencer, em geral, não se importam com as “armas” desse embate. E é nesse fogo cruzado que se encontra a criança, um sujeito que está se constituindo que preciso de amor e de modelos positivos para se identificar. Quando um casal, antes ligado pelos laços de amor, passa a brigar movido pelo ódio, pela necessidade de vingança e pela posse dos bens adquiridos, em que o sujeito criança, na sua posição radical de dependência e desamparo pode ser incluído, isso quase sempre não acontece sem consequências. Embora queiram permanecer neutros, os filhos do casal acabam aspirados pela luta e tornam-se “objetos torpedos” das batalhas travadas entre os pais.

Ocorre que os psicólogos clínicos ficam sem saber o que de fato está ocorrendo, qual o ‘nome’ disso (uma vez que, por manobras escusas, a alienação parental não foi devidamente inserida na atual versão do DSM-V, e os psicólogos não têm o manejo do DSM-V para observar que a descrição da alienação parental, na realidade, está ‘diluída’ em diagnósticos paralelos1 daquela obra.

Do mesmo modo, como as divergências entre os pais se estendem ao acompanhamento dos tratamentos (médico, odontológico, psicológico) da criança/adolescente, também repercutem nos consultórios: recusa em comparecer, recusa em colaborar com o profissional, atendimentos paralelos (cada genitor leva a criança/adolescente ao profissional de sua confiança, acarretando dois atendimentos simultâneos), denúncias éticas indevidas, etc.

2.      Em contexto jurídico, os psicólogos se encontram cerceados e limitados quanto aos procedimentos de avaliação dos casos de alienação parental:

Além da utilização indevida e distorcida da Lei da AP, a sociedade se depara com dificuldades – e, em alguns casos, com resistência – por parte do Setor Técnico da Psicologia em identificar e afirmar a ocorrência de indícios e/ou atos de AP, pelos seguintes fatores: 

O que fazer nesses casos?

A lei 12.318/10 (lei da AP) apresenta lacunas, falhas e deficiências, mas sua completa revogação não soluciona o problema, porque vai incentivar as práticas nocivas ao desenvolvimento afetivo da criança/adolescente, sem consciência de suas implicações e consequências. É imprescindível haver debates, audiências públicas, pesquisas científicas, dados empíricos que embasem posicionamentos e entendimentos sensatos, concretos, racionais, objetivos para que se façam as devidas alterações, com a garantia de que não seja distorcida e utilizada de forma indevida. Somente assim teremos um sistema democrático saudável, e com mecanismos de proteção efetivos para o desenvolvimento físico, psicológico, cognitivo e espiritual de nossas crianças e adolescentes.

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1 Diagnósticos “paralelos” para suprir a falta de inclusão da AP no DSM-V (SILVA, 2021):

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DUARTE, L.P.L.  A guarda dos filhos na família em litígio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. 5. ed. Curitiba: Juruá, v. 01 e 02, 2021.

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Denise Maria Perissini da Silva
Psicóloga clínica e jurídica. Mestre em Ciências Humanas pela UNISA. Coordenadora da pós-graduação em Psicologia Jurídica. Colaboradora Comissões de OAB/SP. Autora de livros de Psicologia Jurídica de Família.

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