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Estatal como poder concedente: Qual o regime licitatório e contratual?

Os autores se debruçam sobre a incidência da lei 13.303/16 ou da lei 14.133/21 nas licitações e contratos em que as empresas estatais atuam na condição de poder concedente.

6/2/2025

Um tema pouquíssimo estudado é o das empresas estatais atuando como poder concedente.

Não raro e até comumente atuando como concessionárias, as sociedades de economia mista e empresas públicas às vezes detêm o serviço público cuja gestão e execução será transferida a uma concessionária mediante contrato de concessão.

Neste particular, a primeira pergunta que se faz é: as estatais podem figurar na condição de poder concedente nos contratos de concessão?

Veja, o art. 2º, I da lei 8.987/1995 (a seguir, “lei das concessões”) elenca como poder concedente “a União, o Estado, o Distrito Federal ou o município, em cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão”.

Ou seja, a literalidade da lei das concessões não faz menção às empresas públicas e sociedades de economia mista como um ator passível de exercer o papel de poder concedente. Porém, a ausência de menção literal também não pode ser interpretada como vedação inconteste, na medida em que as empresas estatais compõem a administração indireta dos referidos entes políticos mencionados, de forma que a menção à União, por exemplo, também pode ser interpretada como uma referência ao todo da Administração Federal, abarcando suas partes menores, entre as quais estão as sociedades de economia mista e empresas públicas, conforme art. 4.º, II, a) e b), do decreto-lei 200/67.

Tal interpretação é, de certa forma, corroborada pelo texto constitucional, visto que o art. 175 tem redação mais ampla, a qual afirma que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Ora, à luz da Carta Magna, verifica-se o uso da expressão “poder público” que, por óbvio, traça um figurino constitucional (que não pode ser amesquinhado pelo legislador infraconstitucional) que inclui as empresas estatais.

Reforçando a possibilidade de as empresas estatais figurarem como poder concedente na seara das concessões, destaque-se que o art. 1º, parágrafo único, da própria lei das concessões, impõe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios o dever de promover a revisão e as adaptações necessárias da legislação específica às suas prescrições desta lei, “buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços”.

Em tal cenário, não há, portanto, nenhum impeditivo de que haja lei específica que autorize uma empresa pública ou uma sociedade de economia mista a figurar como poder concedente.

Para espancar em definitivo quaisquer dúvidas remanescentes, o art. 1º, parágrafo único, da lei 11.079/04 (doravante, lei das PPPs) estabelece seu campo de aplicação aos órgãos da Administração Pública direta dos Poderes Executivo e Legislativo, aos fundos especiais, às autarquias, às fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e municípios.

Assim, não faria nenhum sentido empresas públicas e sociedades de economia mista figurarem como poder concedente em concessões patrocinadas e concessões administrativas e não poderem fazê-lo em concessões comuns.

Contudo, admitida a possibilidade de as empresas estatais figurarem como poder concedente, surge um segundo problema, cuja solução é de maior dificuldade, pois desenham-se duas interpretações possíveis, que dividem os autores do texto. Qual o regime licitatório e contratual deverá ser observado pelas estatais concedentes: aquele regulado pela lei 14.133/21 (a frente, LLC - Lei de Licitações e Contratos Administrativos), ou o previsto pela lei 13.303/16 (a seguir, EJE - Estatuto Jurídico das Estatais)?

Antes que se pense que esta é uma dúvida essencialmente teórica, cumpre esclarecer que ela tem consequências práticas relevantes, tanto no que diz respeito à licitação que precederá o contrato de concessão, quanto no que toca à futura execução contratual.

Por exemplo, caso se entenda pela aplicação da LLC, o edital e demais atos da licitação deverão ser publicados no Portal Nacional de Contratações Públicas, conforme art. 174, I, do referido diploma. Contudo, caso se entenda pela aplicação do EJE, a publicização se dará mediante os portais de compras já comumente utilizados pelas estatais nas suas licitações, com fundamento no art. 39, da mencionada legislação.

Da mesma forma, se entendermos pela aplicação da LLC, o diploma regula com muito mais detalhes a aplicação de sanções pelo futuro contratante, enquanto o EJE traz apenas diretrizes gerais, remetendo a disciplina ao regulamento interno de licitações e contratos. Sendo certo, ainda, que é possível encontrar dispositivos inconciliáveis: se o EJE prevê a pena máxima de 3 anos, quando veda a participação do particular sancionado em futuras licitações, a LLC chega a prever a pena máxima de 6 anos, ou seja, o dobro, na modalidade declaração de inidoneidade.

Assim, torna-se de extrema relevância definir qual legislação de licitações e contratos incidirá quando uma empresa estatal figurar como poder concedente.

E nessa linha, como dito, uma primeira linha de pensamento possível é concluir pela aplicação da LLC.

Um argumento em prol dessa tese é a falta de regramento no EJE acerca das modalidades obrigatórias para a licitação de concessões comuns e parcerias público-privadas.

Em suas redações originais, a lei das concessões e a lei das PPPs, nos seus arts. 2º, II e III, e 10.º, respectivamente, estabeleciam que as concessões de serviço público e as PPPs seriam delegadas pelo poder concedente mediante licitação na modalidade concorrência.

E aqui temos o primeiro problema: a lei das concessões e a lei das PPPs são anteriores ao EJE que, por seu turno, só alberga duas modalidades de licitação: o procedimento ordinário inominado das estatais e o pregão.

Ou seja, o EJE não prevê a modalidade concorrência que é a exigível para delegar concessões comuns e para contratar parcerias público-privadas.

Veja, a partir da edição do EJE, a lei 8.666/931 (que previa a modalidade concorrência) passou a ser inaplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista2, algo que só se agravou com a edição da LLC (vide o disposto no seu art. 1º, § 1º3).

E mais, a LLC alterou a lei das concessões e a lei das PPPs para admitir, além da concorrência, o diálogo competitivo para delegar concessões comuns e para contratar parcerias público-privadas.

Como o EJE também não prevê o diálogo competitivo como modalidade de licitação, tem-se aqui outro ponto de atenção.

Outra questão que merece atenção, é o fato de que EJE estabeleceu em seu art. 68 que “os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado”.

Ao comentar o referido art. 68, a doutrina4-5 assevera que “a redação sintética deste artigo oculta sua profundidade. Ele é a pedra de toque da nova concepção de contratos para as estatais, ao indicar que estas empresas se valem, nas suas relações, de contratos regidos pelo Direito Privado. Afasta-se de uma vez por todas a concepção de que os contratos celebrados pelas estatais seriam contratos administrativos (encampada pela lei 8.666/93), que se caracterizariam pela incidência das chamadas cláusulas exorbitantes. Prestigia-se, assim, a Constituição, que categoricamente indicava que as relações contratuais das estatais se estruturam a partir do regime contratual ordinário, pois elas são criaturas que pertencem, operacionalmente, ao âmbito do Direito Privado.”

Como os contratos celebrados pelas empresas públicas e sociedades de economia mista não são - à luz do dispositivo citado - contratos administrativos com cláusulas exorbitantes tuteladas por um regime jurídico publicístico, derrogatório e exorbitante do Direito comum, é preciso fazer um contraponto com a natureza dos contratos de concessão.

Considerando que na lição de Floriano de Azevedo Marques6 a concessão é “um instrumento jurídico voltado a atribuir a um privado direitos ou poderes próprios da administração” que “confere o exercício privativo de direitos cometidos pelo Poder Público concedente” não nos parece que o regime eminente e predominantemente privado dos contratos regidos pelo EJE seja o adequado para tutelar os contratos de concessão em que as estatais atuem na condição de poder concedente.

E mais, considerando que, como bem leciona Egon Bockmann Moreira7, a “relação jurídico-concessionária transcende as partes que a celebraram, eis que instala projeto a ser objetivamente mantido em todo o seu longo prazo, pois se destina à prestação adequada do serviço público” e que, por isso, existe uma atribuição legal ao poder concedente de uma “competência excepcional, destinada a suspender, provisoriamente, a gestão do projeto por parte da concessionária”, mais uma vez o regime privatístico dos contratos das estatais não é compatível com o tipo de prerrogativa que se faz necessária ser conferida ao poder concedente no âmbito de uma concessão.

De uma forma resumida, podemos dizer que, figuras típicas dos contratos de concessão (vez que decorrentes de expressa previsão legal) como a intervenção, a encampação e a caducidade não encontram albergue no regime jurídico que decorre do EJE.

Outra questão problemática: o art. 186 da LLC estabelece muito claramente que “aplicam-se as disposições desta lei subsidiariamente à lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, à lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à lei 12.232, de 29 de abril de 2010”.

Perceba-se, a LLC, ignorando por completo que as empresas estatais podem figurar como poder concedente nas concessões comuns, patrocinadas e administrativas, submeteu, em caráter subsidiário, as relações jurídicas regidas pela lei das concessões e pela lei das PPPs aos seus termos.

De toda sorte, tais argumentos não extinguem por completo o debate. Visto também ser possível identificar argumentos favoráveis à aplicação do EJE em detrimento da LLC nos contratos de concessão celebrados pelas estatais.

Tal posição baseia-se, principalmente, na reconhecida inaplicabilidade da LLC às estatais. Como sabido, a edição do EJE decorreu da constatação, ao longo do tempo, de que o regime geral de licitações e contratos se revela inadequado para disciplinar os contratos celebrados pelas empresas estatais, de forma que, hoje, é pacificada a não incidência da LLC sobre os contratos celebrados pelas sociedades de economia mista e empresas públicas8.

Inclusive, essa não incidência explicaria por que o art. 186, da LLC, não deveria ser oposto às concessões celebradas pelas estatais: se não há incidência do diploma legislativo como um todo, isso implica, necessariamente, que os dispositivos que o compõem também não incidirão; dessa forma, na medida em que a LLC não incide sobre as estatais, isso significa que o referido art. 186 também não se aplica às companhias, já que ele é parte de diploma não incidente.

O art. 186, da LLC, deve ser interpretado como prescrevendo a aplicação subsidiária do diploma apenas àquelas concessões e PPPs celebradas pelos entes efetivamente sujeitos à LLC, como é o caso dos entes que compõem as administrações diretas.

Assim, diante da não incidência da LLC sobre as estatais, o EJE se sobressai como o único diploma válido e incidente que disciplina as licitações e contratos no âmbito das estatais, inclusive no que diz respeito aos contratos de concessão e PPPs.

Porém, a relação entre o EJE e as leis de concessões e PPPs deve ser percebida como uma relação de generalidade-especialidade. Se o EJE prevê “disposições de caráter geral” (como diz o próprio título do capítulo I, seção II), aplicáveis à generalidade das licitações e contratos, as leis de concessões e PPPs pretendem regular contratos nitidamente especiais, dadas as diversas particularidades relacionadas à sua própria natureza.

Nessa linha, como é normal a toda relação de generalidade e especialidade, as normas especiais derrogam as gerais naquilo em que se revelem incompatíveis, se valendo das disposições gerais apenas na medida em que úteis e pertinentes para complementar a sua aplicação9. Como explica Norberto Bobbio10, ”a situação antinômica, criada pelo relacionamento entre uma lei geral e uma lei especial, é aquela que corresponde ao tipo de antinomia total-parcial. Isso significa que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis, mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente”.

Assim, tal relação de generalidade-especialidade explica por que os contratos de concessão e PPP irão prever poderes unilaterais em favor do contratante, mesmo quando os instrumentos forem celebrados pelas estatais, cujo regime de contratação é primordialmente privado: tais poderes decorrem diretamente da lei de concessões e lei das PPPs, a qual compreende regime especial que afasta o regime geral predominantemente privado das estatais quando estiver em xeque contratos de concessão.

Todos os poderes unilaterais necessários às concessões e PPPs já encontram previsão na legislação que rege a matéria, tais como os arts. 9, §4.º, 32 e 35, II, da lei de concessões, razão pela qual não se revela necessário que o EJE, enquanto lei geral, também possua previsões do tipo, já que as suas disposições eventualmente incompatíveis acabam por ser derrogadas.

Por fim, a incidência das leis de concessões e PPPs enquanto normas especiais importa na incidência de outras normas que sejam referidas por essas normas especiais, mas apenas na medida dessa referência.

Aqui é importante relembrar o conceito de norma dependente: se classificam como dependentes aquelas normas que precisam da conjugação de mais de um dispositivo legal para que se consiga compreender toda a sua extensão11. Um exemplo: o art. 5.º, VIII, da lei das PPPs, prescreve que as garantias apresentadas pelo particular deverão observar os limites definidos pela lei das concessões. Ou seja, para conhecer a integralidade da norma que disciplina as garantias no âmbito das PPPs é preciso recorrer, ao mesmo tempo, a um dispositivo legal da lei das PPPs e a outro dispositivo da lei das concessões.

Por sua vez, a necessidade de recorrer à lei das concessões para interpretar a lei das PPPs implica necessariamente na incidência da integralidade da lei das concessões? Não. Implica apenas e exclusivamente na aplicação da parte da lei de concessões referida pela lei de PPP.

Da mesma forma deve ser entendida a referência da lei de concessões e PPPs às modalidades concorrência e diálogo competitivo: compreendem normas incompletas, que acabam exigindo a conjugação de dispositivos das leis de PPPs e concessões com dispositivos da LLC, para que consigam ser interpretadas em toda a sua extensão; o que não significa a aplicação da totalidade da LLC, mas apenas dos dispositivos contemplados pela referência, ou seja, aqueles que disciplinam as referidas modalidades.

Sendo certo, ainda, que tal incidência de dispositivos da LLC em virtude de referências contidas nas leis de concessões e PPPs não se confunde com a suposta aplicação do art. 186, da LLC. Isto porque, quando estamos falando de dispositivos da LLC referidos pelas leis de concessões e PPPs, nos referimos a dispositivos que retirarão seu fundamento de validade de legislação que efetivamente incide sobre as estatais, na qualidade de normas especiais. Por outro lado, pretender a incidência do art. 186, do LLC, é pretender a aplicação de dispositivo que não possui outro fundamento de validade que não um diploma que reconhecidamente não incide sobre as estatais, ou seja, que não possui fundamento de validade apto a justificar a sua aplicação sobre as sociedades de economia mista e empresas estatais.

Como se vê, embora seja inquestionável a possibilidade de as estatais figurarem como poder concedente, a dúvida quanto à legislação que disciplinará o regime licitatório e contratual não possui resposta única, de forma que se provoca o leitor a refletir sobre qual linha argumentativa julga mais adequada.

__________

1 “(...) a Lei nº 13.303/16 prescreve regime próprio de licitações e contratos para as estatais, que exclui, em princípio, o regime tradicional de licitações, direcionado para a estatal em geral, baseado na Lei nº 8.666/93, na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC) – o que encontra fundamento, como já salientado, no inc. XXVII do art. 22 e no inc. III do §1º do art. 173, ambos da Constituição Federal. A Lei nº 13.303/16 não reconhece, por qualquer modo, a aplicação subsidiária a ela da legislação tradicional, marcada pela Lei nº 8.666/93. Isso significa que, em termos práticos, na ausência de norma específica na Lei nº 13.303/16, os agentes das estatais não devem recorrer às normas da Lei nº 8.666/93 e aplicá-las, ou das demais leis que vigem para a Administração Pública em geral. Excepcionalmente, a legislação tradicional somente deve ser aplicada nas hipóteses e nas condições expressamente prescritas na própria Lei nº 13.303/16. Explicando melhor, a Lei nº 13.303/16 prescreve, em algumas passagens, de forma específica e para casos e situações específicas, a aplicação de dispositivos ou passagens da legislação tradicional.” (NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR, Pedro de Menezes. Licitações e Contratos das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, págs. 41-42)

2 "Não se aplica subsidiariamente a Lei 8.666/1993 a eventuais lacunas da Lei 13.303/2016 [Lei das Estatais], exceto nas hipóteses nela expressamente previstas (arts. 41 e 55, III) , sob pena de violação aos arts. 22, XXVII, e 173, §1°, III, da Constituição Federal" (TCU, Acórdão 739/2020 – Plenário)

3 “A Lei nº 14.133/2021, ao estabelecer normas gerais de licitação e contratação, direciona seu modal deôntico para o exercício da função administrativa pelas Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo: i) os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios; ii) os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública. A NLLCA não se aplica às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias, que são regidas pela Lei nº 13.303/2016, salvante os aspectos criminais que nos termos do art. 178 consignou a aplicação dos tipos penais por ela inseridos no Código Penal, também para as condutas típicas que eventualmente venham a ocorrer no âmbito do processo de contratação das empresas estatais.” (PEDRA, Anderson Sant’ana. In: FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana (org.). Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 41)

4 GUIMARÃES, Bernardo Strobel; et al. Comentários à lei das estatais (lei nº 13.303/2016). Belo Horizonte: Fórum, 2019, págs. 375-376

5 No mesmo sentido: “Pela regra do artigo 68, os contratos das estatais não se subordinam ao regime jurídico de direito público, passando a sofrer o influxo do direito privado, com as prescrições da Lei nº 13.303/16 e das respectivas cláusulas contratuais. Com o afastamento do regime jurídico de direito público e a incidência de regras de direito privado, a consequência imediata disto é a inaplicabilidade nas relações contratuais das estatais das denominadas cláusulas exorbitantes.” (GUIMARÃES, Edgar e SANTOS, José Anacleto Abduch, Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016, Belo Horizonte: Fórum, 2017, pág. 241) e ainda: “A Lei nº 13.303/16 trata do tema nitidamente de modo diverso: o regime de direito privado não é aplicado de modo supletivo, mas de modo direto, ao lado das disposições da legislação mencionada – a qual, diga-se de passagem, sequer prevê um rol de cláusulas exorbitantes. Assim, o regime dos contratos do direito civil aplica-se como fonte primária do direito, e não de modo supletivo, na hipótese em que a Lei das Estatais não desse conta de disciplinar o tema. Logo, a natureza dos contratos feitos e regidos pela Lei nº 13.303/16 seria típico ‘contrato da administração’. Para sermos ainda mais objetivos, o art. 68 determina que somente possam ser inseridas nos contratos feitos pelas empresas estatais as cláusulas que derivam expressamente da Lei nº 13.303/16 e, claro, do direito privado. De modo que tal legislação não permite a importação de norma administrativa que não aquelas já constantes (recepcionadas) na própria Lei nº 13.303/16. Assim, se por um acaso se quisesse mirar uma dita ‘cláusula exorbitante’ nos negócios jurídicos feitos pelas empresas estatais, teríamos de procurá-las no âmbito do seu estatuto, ora comentado. Portanto, o art. 68 impõe um traço diferencial marcante entre os contratos feitos pela Lei nº 13.303/16 e pela Lei nº 8.666/93.135 A origem dessa disparidade reside na possibilidade de as sociedades de economia mista e de as empresas públicas deterem capacidade gerencial menos rígida e burocrática, como ocorre com as autarquias e as fundações, para que aquelas entidades possam seguir a lógica do mercado, a enaltecer sua competitividade. Logo, é apropriado dizer que as empresas estatais receberam a possibilidade de contratações de forma mais flexível e ágil, adequadas às dinâmicas do mercado no qual estão inseridas, desde que observados os princípios da administração pública.136Esse panorama abordado é acentuado, por exemplo, pelo regime especial de desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais (Decreto Federal nº 9.188/2017). Veja que o regime em questão permite a feitura de uma série de instrumentos jurídicos negociais de cada alienação, os quais serão regidos pelos preceitos de direito privado – art. 4º, parágrafo único.” (HEINEN, Juliano. In: Jessé Torres Pereira Junior; et al. (org.). Comentários à Lei das Empresas Estatais: Lei nº 13.303/16. Belo Horizonte: Fórum, 2020, pág. 629)

6 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015, pág. 117.

7 MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público: (concessões, parcerias, permissões e autorizações). Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 399.

8 “a Lei nº 13.303/16 prescreve regime próprio de licitações e contratos para as estatais, que exclui, em princípio, o regime tradicional de licitações, direcionado para a estatal em geral, baseado na Lei nº 8.666/93, na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC) – o que encontra fundamento, como já salientado, no inc. XXVII do art. 22 e no inc. III do §1º do art. 173, ambos da Constituição Federal. A Lei nº 13.303/16 não reconhece, por qualquer modo, a aplicação subsidiária a ela da legislação tradicional, marcada pela Lei nº 8.666/93. Isso significa que, em termos práticos, na ausência de norma específica na Lei nº 13.303/16, os agentes das estatais não devem recorrer às normas da Lei nº 8.666/93 e aplicá-las, ou das demais leis que vigem para a Administração Pública em geral. Excepcionalmente, a legislação tradicional somente deve ser aplicada nas hipóteses e nas condições expressamente prescritas na própria Lei nº 13.303/16. Explicando melhor, a Lei nº 13.303/16 prescreve, em algumas passagens, de forma específica e para casos e situações específicas, a aplicação de dispositivos ou passagens da legislação tradicional.” (NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR, Pedro de Menezes. Licitações e Contratos das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, págs. 41-42)

9 Para um exemplo de aplicação do princípio da especialidade pela jurisprudência pátria, veja-se o seguinte acórdão do STF: ”AGRAVO INTERNO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.443/1992 E RESOLUÇÃO TCU N. 246. LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. NORMA GERAL. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. 1. Predomina em nosso sistema jurídico o princípio da especialidade, segundo o qual, diante de conflito aparente entre normas, a regra especial deverá prevalecer sobre a geral. 2. A Lei n. 8.443/1992 e a Resolução TCU n. 246, que estabelecem rito processual específico para os embargos de declaração no âmbito do Tribunal de Contas da União e lhes atribuem efeito suspensivo, afastam a incidência do Código de Processo Civil, norma geral a prever que os aclaratórios interrompem o prazo de interposição de recurso (lex specialis derogat legi generali). 3. Agravo interno desprovido.” (STF. MS 35977. Ministro Relator: Nunes Marques. Segunda Turma. Julgado em 29/11/2021)

10 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UNB, 1995, p. 96-97.

11 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2011. p. 98

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

Ednaldo Ferreira
Advogado. Membro da Associação Norte e Nordeste de Direito Econômico - ANNDE. Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito de Lisboa. Doutorando em Direito Público pela UFPE.

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