1. Introdução
Em nossa experiência de anos de atuação no âmbito da lei Maria da Penha, avultam as surpresas estarrecedoras. Após lutar incessantemente contra as medidas protetivas desproporcionais, que chegam a perdurar anos a fio, em um dado momento tais restrições finalmente cessam. Somente após muita insistência e demonstração documental de que o risco não mais subsiste, as protetivas são finalmente revogadas. Nos últimos tempos, a revogação das protetivas tem durado até a interposição de recurso pela vítima. Isso porque tornou-se cada vez mais comum se atribuir efeito suspensivo automático ao recurso interposto contra a decisão que revogou as protetivas. Na prática, isso implica que a simples interposição do recurso pela suposta vítima não só suspende a decisão, como reestabelece a vigência das protetivas, tornando o ato de revogação um provimento oco, onde a razão da decisão é substituída pelo desejo da vítima.
2. Desenvolvimento
A situação é esquizofrênica. O magistrado que revogou as medidas protetivas após meses ou anos de vigência é o mesmo que empresta ao recurso interposto pela vítima efeito suspensivo automático. Na prática, as protetivas têm sido revogadas com uma mão e prorrogadas com a outra, em manifesta ofensa aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé.
Ninguém contesta a importância da lei Maria da Penha em um país misógino e violento como o Brasil. No entanto, após ter atingido a maioridade, a legislação em comento demonstrou falhas estruturais que merecem reparos urgentes. O sistema vigente protege um grupo e violenta o outro. Excesso de proteção às custas do ameasquinhamento de direitos sensíveis de quem é atingido pelas restrições, não deixa de ser uma violência institucional. Não há como tolerar, tampouco naturalizar, a proteção de um grupo às custas da completa desproteção do outro. Não podemos esquecer que as medidas protetivas são também restrições a direitos fundamentais da pessoa submetida às restrições. Por isso, devem ser solicitadas com responsabilidade, aplicadas com proporcionalidade e prorrogadas apenas se demonstrada empiricamente a continuidade da situação de risco. Fora isso, não devemos apostar no desejo da vítima.
Todos sabem que a revogação das medidas protetivas é uma exceção dentro do sistema de proteção instituído pela lei Maria da Penha. A regra é que as restrições perdurem geralmente até que a suposta vítima assim determine, numa espécie de direito potestativo da vítima. Somente após muito tempo decorrido, somada à análise exauriente por parte do magistrado e do membro do Ministério Público, geralmente somada à consulta à vítima, é que finalmente as protetivas cessam, com a sua revogação. Por essa razão, sustento a revisão do sistema (não a sua revogação), sugerindo alterações, dentre elas proibir o efeito suspensivo automático aos recursos interpostos contra decisões que revogam medidas protetivas.
Dentre os fundamentos de que me valho para sustentar a proibição do efeito suspensivo automático, destaco:
- Maior prestígio à decisão de primeiro grau que revogou as medidas, por ter aquele juízo prolator maior contato com a matéria;
- Maior previsibilidade e segurança jurídica às decisões emanadas pelo Poder Judiciário;
- Maior confiabilidade nas decisões judiciais;
- Respeito ao princípio da temporalidade das medidas protetivas de urgência, segundo o qual tais tutelas não podem perdurar ad aeternum (protetivas foram feitas para acabar);
- Respeito ao princípio da boa-fé.
Como sabemos que essa proposta corretiva não será facilmente implementada pela via hermenêutica, uma vez que a interpretação não tem efeito cogente, tampouco erga omnes, o que dificultará a vinculação de todos os juízos e/ou Tribunais do país, o ideal é que essa alteração seja promovida por lei ordinária.
Enquanto a alteração legislativa não acontece, o que pressupõe custo temporal, burocrático e baixa aderência ideológica, defendo que a alteração seja promovida via resolução do CNJ. Em que pese o papel do CNJ não ser esse, não podemos esquecer que diversas regulamentações no âmbito da lei Maria da Penha foram implementadas por meio desse expediente. Se a resolução foi possível para conferir tutela a alguns grupos, ela deve servir para reparar excessos, forte na crença de que onde há a mesma razão, haverá o mesmo direito. Não é possível que o CNJ possa editar resoluções que beneficiam um grupo de pessoas e não tenha competência para editar resolução visando a proteção de outro grupo contra interpretações desproporcionais.
3. Conclusão
Ninguém desconhece que as medidas protetivas são importantes ferramentas de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Todavia, após dezoito anos de vigência da lei, constatamos vícios que precisam urgentemente ser reparados. O Direito não pode aceitar, tampouco promover, a proteção integral de um grupo, violentando o outro. Para proteger as vítimas de violência doméstica, o Estado, por meio de suas instituições, não pode sacrificar direitos fundamentais daqueles que se submetem às restrições. Não se trata de interpretação preconceituosa. No lidar diário com a lei Maria da Penha, notamos uma predisposição em se atribuir efeito suspensivo automático aos recursos interpostos contra decisão que revoga medidas protetivas de urgência. Isso significa que a simples interposição de recurso, sem qualquer análise do seu conteúdo, tem sido o bastante para suspender a decisão e reestabelecer as medidas protetivas anteriormente revogadas. O mais grave disso tudo é que tal prática vem sendo aplicada de forma automática, por meio de decisões padronizadas. É como se as protetivas fossem concedidas independentemente da vontade da vítima. Essa não pode ser a justiça que idealizamos, que estudamos e trabalhamos para que seja aplicada em nosso país. É preciso mais responsabilidade nos pedidos de protetivas, mais proporcionalidade em sua concessão e exigências mais objetivas para os casos de prorrogação.