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Efeito suspensivo automático nas medidas protetivas: Um passa-moleque jurídico

Esse ensaio busca discutir a atribuição automática de efeito suspensivo ao recurso interposto contra decisão que revoga as medidas protetivas no contexto da lei Maria da Penha.

20/2/2025

1. Introdução

Em nossa experiência de anos de atuação no âmbito da lei Maria da Penha, avultam as surpresas estarrecedoras. Após lutar incessantemente contra as medidas protetivas desproporcionais, que chegam a perdurar anos a fio, em um dado momento tais restrições finalmente cessam. Somente após muita insistência e demonstração documental de que o risco não mais subsiste, as protetivas são finalmente revogadas. Nos últimos tempos, a revogação das protetivas tem durado até a interposição de recurso pela vítima. Isso porque tornou-se cada vez mais comum se atribuir efeito suspensivo automático ao recurso interposto contra a decisão que revogou as protetivas. Na prática, isso implica que a simples interposição do recurso pela suposta vítima não só suspende a decisão, como reestabelece a vigência das protetivas, tornando o ato de revogação um provimento oco, onde a razão da decisão é substituída pelo desejo da vítima.

2. Desenvolvimento

A situação é esquizofrênica. O magistrado que revogou as medidas protetivas após meses ou anos de vigência é o mesmo que empresta ao recurso interposto pela vítima efeito suspensivo automático. Na prática, as protetivas têm sido revogadas com uma mão e prorrogadas com a outra, em manifesta ofensa aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé.

Ninguém contesta a importância da lei Maria da Penha em um país misógino e violento como o Brasil. No entanto, após ter atingido a maioridade, a legislação em comento demonstrou falhas estruturais que merecem reparos urgentes. O sistema vigente protege um grupo e violenta o outro. Excesso de proteção às custas do ameasquinhamento de direitos sensíveis de quem é atingido pelas restrições, não deixa de ser uma violência institucional. Não há como tolerar, tampouco naturalizar, a proteção de um grupo às custas da completa desproteção do outro. Não podemos esquecer que as medidas protetivas são também restrições a direitos fundamentais da pessoa submetida às restrições. Por isso, devem ser solicitadas com responsabilidade, aplicadas com proporcionalidade e prorrogadas apenas se demonstrada empiricamente a continuidade da situação de risco. Fora isso, não devemos apostar no desejo da vítima.

Todos sabem que a revogação das medidas protetivas é uma exceção dentro do sistema de proteção instituído pela lei Maria da Penha. A regra é que as restrições perdurem geralmente até que a suposta vítima assim determine, numa espécie de direito potestativo da vítima. Somente após muito tempo decorrido, somada à análise exauriente por parte do magistrado e do membro do Ministério Público, geralmente somada à consulta à vítima, é que finalmente as protetivas cessam, com a sua revogação. Por essa razão, sustento a revisão do sistema (não a sua revogação), sugerindo alterações, dentre elas proibir o efeito suspensivo automático aos recursos interpostos contra decisões que revogam medidas protetivas.

Dentre os fundamentos de que me valho para sustentar a proibição do efeito suspensivo automático, destaco:

Como sabemos que essa proposta corretiva não será facilmente implementada pela via hermenêutica, uma vez que a interpretação não tem efeito cogente, tampouco erga omnes, o que dificultará a vinculação de todos os juízos e/ou Tribunais do país, o ideal é que essa alteração seja promovida por lei ordinária.

Enquanto a alteração legislativa não acontece, o que pressupõe custo temporal, burocrático e baixa aderência ideológica, defendo que a alteração seja promovida via resolução do CNJ. Em que pese o papel do CNJ não ser esse, não podemos esquecer que diversas regulamentações no âmbito da lei Maria da Penha foram implementadas por meio desse expediente. Se a resolução foi possível para conferir tutela a alguns grupos, ela deve servir para reparar excessos, forte na crença de que onde há a mesma razão, haverá o mesmo direito. Não é possível que o CNJ possa editar resoluções que beneficiam um grupo de pessoas e não tenha competência para editar resolução visando a proteção de outro grupo contra interpretações desproporcionais.

3. Conclusão

Ninguém desconhece que as medidas protetivas são importantes ferramentas de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Todavia, após dezoito anos de vigência da lei, constatamos vícios que precisam urgentemente ser reparados. O Direito não pode aceitar, tampouco promover, a proteção integral de um grupo, violentando o outro. Para proteger as vítimas de violência doméstica, o Estado, por meio de suas instituições, não pode sacrificar direitos fundamentais daqueles que se submetem às restrições. Não se trata de interpretação preconceituosa. No lidar diário com a lei Maria da Penha, notamos uma predisposição em se atribuir efeito suspensivo automático aos recursos interpostos contra decisão que revoga medidas protetivas de urgência. Isso significa que a simples interposição de recurso, sem qualquer análise do seu conteúdo, tem sido o bastante para suspender a decisão e reestabelecer as medidas protetivas anteriormente revogadas. O mais grave disso tudo é que tal prática vem sendo aplicada de forma automática, por meio de decisões padronizadas. É como se as protetivas fossem concedidas independentemente da vontade da vítima. Essa não pode ser a justiça que idealizamos, que estudamos e trabalhamos para que seja aplicada em nosso país. É preciso mais responsabilidade nos pedidos de protetivas, mais proporcionalidade em sua concessão e exigências mais objetivas para os casos de prorrogação.  

Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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