Excesso de formalismo no cartório: Legalidade ou abuso que compromete a função registral?
I – Introdução
Os cartórios extrajudiciais representam um dos mais sólidos pilares da segurança jurídica no ordenamento brasileiro. Por meio da fé pública delegada, asseguram autenticidade, publicidade e eficácia aos atos jurídicos de particulares, além de integrarem, de forma decisiva, o processo de desjudicialização e a simplificação procedimental no país. É inegável que sua atuação técnica e imparcial tem sido essencial para conferir previsibilidade, ordem e credibilidade às relações civis e patrimoniais.
Entretanto, ao lado da necessária exigência de rigor formal — que preserva a coerência dos registros e a confiabilidade do sistema —, observa-se uma crescente preocupação com o excesso de formalismo praticado por algumas serventias. Em nome da legalidade, requisitos desproporcionais, interpretações maximalistas e exigências não previstas em lei têm imposto barreiras injustificadas à efetivação de direitos, esvaziando a função social dos registros públicos e transformando a qualificação registral em um obstáculo ao acesso à moradia, à regularização fundiária e à própria cidadania.
Esse cenário exige reflexão crítica e reposicionamento. A fé pública não se presta à criação de entraves infundados. Ao contrário, deve servir de instrumento para a realização dos direitos e para a concretização da segurança jurídica com efetividade.
Neste artigo, busca-se demonstrar como a prática de exigências abusivas nos cartórios compromete a finalidade pública do sistema registral, analisando decisões paradigmáticas dos tribunais superiores — como o REsp 1.348.228/MG, no qual o STJ reconheceu a possibilidade de controle judicial sobre exigências desarrazoadas, e o RE 842.846/SC, em que o STF reforçou a responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos delegatários.
Ao final, propõe-se uma abordagem equilibrada entre legalidade e razoabilidade, com medidas práticas de padronização e simplificação, preservando a função técnica dos registradores sem ignorar o compromisso com a cidadania.
II - Exigências cartorárias abusivas: O excesso como desvio de finalidade
A qualificação registral é etapa indispensável para garantir que os atos submetidos ao crivo do registrador estejam em conformidade com os requisitos legais, formais e materiais. Trata-se de um filtro jurídico relevante, voltado à proteção do sistema registral e das partes envolvidas. Contudo, essa prerrogativa não é absoluta — tampouco ilimitada — e deve ser exercida com base na legalidade estrita, na finalidade pública do registro e na razoabilidade das exigências.
A prática cartorária revela, em muitos casos, a transformação desse poder técnico em instrumento de obstrução. Multiplicam-se relatos e decisões judiciais que enfrentam exigências desproporcionais, infundadas ou até mesmo contraditórias entre diferentes serventias, ainda que situadas em um mesmo estado. O excesso de formalismo, sob o pretexto de zelo jurídico, acaba por distorcer a finalidade do serviço registral e gerar ineficiência sistêmica.
Entre os exemplos mais recorrentes, é possível destacar:
- Exigência de reapresentação de documentos que já constam nos arquivos da própria serventia;
- Recusa de registro por ausência de menções irrelevantes ao objeto, como detalhes estéticos ou particularidades sem reflexo jurídico;
- Interpretações restritivas e pessoais do oficial, sem respaldo legal ou jurisprudencial consolidada;
- Demandas por documentos ou certidões além da previsão normativa, especialmente em processos de usucapião extrajudicial, Reurb e retificação de área.
Tais práticas, além de comprometerem a celeridade e a economicidade do procedimento, colocam em risco o próprio princípio da continuidade registral, ao dificultar a concretização de direitos legítimos. Para o usuário, sobretudo aquele com menor poder de negociação ou informação técnica, esse excesso de rigor representa não apenas um entrave burocrático, mas um verdadeiro mecanismo de exclusão registral.
O desvio de finalidade, nesses casos, é evidente: a qualificação registral deixa de ser um mecanismo de proteção jurídica para se converter em filtro discriminatório, em descompasso com os princípios da função social da propriedade, da eficiência administrativa e do amplo acesso à Justiça — valores que também se irradiam sobre a atividade notarial e registral, por força do art. 236 da CF e da interpretação sistemática da lei 6.015/73.
Nos próximos tópicos, será demonstrado como o Poder Judiciário tem reagido a essa distorção, reequilibrando a atuação cartorária por meio da jurisprudência, e como as Corregedorias podem atuar para uniformizar e racionalizar essas exigências.
III - Jurisprudência contra o formalismo desproporcional
A crescente judicialização de impugnações a exigências cartorárias evidencia que o excesso de formalismo, longe de ser uma questão pontual, tornou-se um fenômeno que desafia a própria essência do sistema registral brasileiro. Em resposta a essa distorção, os tribunais têm delimitado, com maior precisão, os limites da qualificação registral e reafirmado que a atividade extrajudicial deve ser exercida com observância à razoabilidade, proporcionalidade e finalidade pública.
REsp 1.348.228/MG – STJ
Nesse leading case, o STJ reconheceu a possibilidade de controle judicial direto sobre exigências abusivas formuladas por cartórios, por meio de mandado de segurança. A decisão enfrentou a tese de que o incidente de dúvida registral seria a única via possível para questionamento, afastando essa limitação ao afirmar:
“O incidente de dúvida não impede o manejo da ação mandamental para sanar possíveis exigências cartorárias tidas como ilegais ou abusivas.”
(REsp 1.348.228/MG, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 12/05/2015)
A decisão é emblemática por dois motivos: (i) reafirma que a qualificação registral está sujeita a controle jurisdicional quando extrapola os limites legais, e (ii) legitima a atuação ativa da parte interessada — especialmente do advogado — na defesa de direitos diante de exigências desarrazoadas, reforçando o papel do Judiciário como guardião da legalidade.
Decisão do JEC de Brasília – Taxa de assessoria cartorária (MRV)
Por outro lado, a jurisprudência também demonstra que nem toda exigência ou cobrança relacionada ao registro é abusiva per se. Em decisão recente do 3º juizado Especial Cível de Brasília (processo 0712678-30.2016.8.07.0016), o juiz entendeu como lícita a cobrança da taxa de assessoria cartorária pela construtora MRV, considerando que o serviço era opcional, bem explicado contratualmente e revertido em benefício do consumidor:
“A taxa remunera serviço que é revertido efetivamente ao consumidor e não decorre de contratação obrigatória, não sendo assim abusiva.”
Essa decisão é útil para ilustrar que o problema não está na existência de exigências ou taxas — mas sim na ausência de transparência, razoabilidade e fundamentação jurídica em sua formulação. Quando há informação clara e finalidade legítima, a jurisprudência tende a prestigiar a autonomia das partes e a lógica do procedimento.
RE 842.846/SC – STF (Tema 777)
No campo da responsabilidade civil, o STF fixou entendimento de repercussão geral no RE 842.846/SC, reconhecendo a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos decorrentes de atos cartorários, ainda que praticados por delegatários. Embora o caso concreto envolvesse erro em certidão de óbito, o julgado possui impacto direto sobre o tema ora discutido, ao afirmar que:
“A atuação do registrador ou notário, ainda que por delegação, está sujeita ao regime de responsabilidade objetiva do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição.”
A decisão confirma que a atividade notarial e registral, por ter natureza pública, deve respeitar os princípios da legalidade, moralidade, eficiência e finalidade, e que sua distorção — inclusive por formalismos excessivos — pode gerar obrigação de indenizar. O julgado serve de âncora para reforçar que as exigências desproporcionais não são apenas incômodas: são juridicamente relevantes e podem implicar consequências patrimoniais ao Estado e ao delegatário.
Esses precedentes mostram que o formalismo, quando extrapola os limites legais e compromete a função registral, deixa de ser técnica e passa a ser abuso. Nos tópicos seguintes, analisaremos como as Corregedorias podem atuar para conter esse movimento e quais medidas podem ser adotadas para padronizar e simplificar as práticas cartorárias no Brasil.
IV - O papel das Corregedorias e do CNJ na contenção do formalismo excessivo
O exercício da atividade notarial e registral no Brasil, ainda que delegado à iniciativa privada, está sujeito à fiscalização permanente do Poder Judiciário, nos termos do art. 236, §1º, da CF/88. Esse controle é exercido pelas Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, bem como, em âmbito nacional, pelo CNJ. Tais órgãos têm papel central na uniformização de entendimentos, racionalização de procedimentos e contenção de práticas abusivas.
Na prática, porém, a atuação das Corregedorias ainda se mostra desigual e fragmentada. Muitos estados possuem normativas próprias, sem qualquer padrão nacional, o que resulta em divergências acentuadas entre serventias de diferentes unidades da federação — e até mesmo entre cartórios da mesma comarca. Essa assimetria normativa favorece o excesso de formalismo, ao permitir que cada oficial adote critérios próprios para a qualificação dos títulos, em detrimento da previsibilidade e da confiança do usuário.
O CNJ, por sua vez, tem editado provimento de caráter nacional, que busca padronizar procedimentos relevantes. Dentre eles, destacam-se o provimento 65/17, que regulamenta a usucapião extrajudicial, e o provimento 88/19, que trata da prevenção à lavagem de dinheiro no âmbito notarial e registral. Em ambos, percebe-se o esforço do órgão em definir critérios claros, objetivos e uniformes, reduzindo a margem para interpretações excessivamente formalistas.
Apesar desses avanços, ainda falta ao país um sistema integrado e publicamente acessível de exigências padronizadas por tipo de ato, que permita ao usuário e ao advogado antecipar os requisitos exigíveis para lavratura ou registro, conferindo segurança e celeridade ao procedimento.
Outro ponto relevante é o papel das Corregedorias no controle disciplinar das serventias. Exigências notoriamente infundadas ou recorrentes de formalismos irrazoáveis podem configurar infração funcional, ensejando advertência, suspensão ou perda da delegação, conforme prevê o art. 32 da lei 8.935/94. Essa prerrogativa disciplinar deve ser exercida não apenas com foco punitivo, mas também como instrumento pedagógico de orientação da boa prática registral.
Em suma, a uniformização regulatória, a fiscalização efetiva e a transparência procedimental são pilares indispensáveis para conter o avanço do formalismo excessivo e restaurar o equilíbrio entre a técnica registral e a função social dos cartórios. O CNJ e as Corregedorias, como instâncias superiores de regulação e controle, têm papel decisivo nessa construção.
V - Propostas para padronização e simplificação
O enfrentamento do formalismo excessivo nas serventias extrajudiciais não exige ruptura institucional, mas sim aperfeiçoamentos estruturais e normativos que reforcem a finalidade pública do serviço, promovam maior segurança jurídica e valorizem o papel do registrador como agente técnico e facilitador do direito. A seguir, propõem-se medidas concretas e viáveis para equilibrar a qualificação registral com a razoabilidade exigida pelo ordenamento.
1. Padronização nacional de exigências por tipo de ato
A criação de checklists nacionais padronizados, elaborados pelo CNJ em conjunto com o IRIB e as corregedorias estaduais, permitiria aos usuários e advogados saber, de forma clara e prévia, quais documentos e requisitos são exigíveis para cada procedimento (como usucapião extrajudicial, averbações de construção, retificações de área, institutos de multipropriedade, etc.).
Essa padronização evitaria interpretações subjetivas e reduziria a insegurança decorrente das variações de entendimento entre serventias.
2. Central pública de orientações e exigências cartorárias
A criação de uma plataforma nacional digital, unificada e acessível, onde cada cartório publicaria as exigências formuladas por tipo de ato, com justificativa normativa e possibilidade de consulta, traria transparência e controle social. O modelo poderia se espelhar na CNB - Central Nacional de Indisponibilidades ou na CRI - Central de Registro de Imóveis.
3. Responsabilização por recusa infundada
Recusas manifestamente abusivas devem ensejar responsabilidade funcional e, se for o caso, civil, do registrador. A jurisprudência já reconhece que o excesso de formalismo pode comprometer direitos (como no RE 842.846/SC – Tema 777 do STF).
Nesse sentido, é cabível a responsabilização do delegatário e do Estado por danos materiais e morais causados ao usuário que teve seu direito inviabilizado ou indevidamente postergado.
4. Aperfeiçoamento da atuação disciplinar das Corregedorias
As Corregedorias devem adotar postura mais proativa e preventiva, realizando inspeções periódicas sobre exigências repetitivas e analisando representações com critérios técnicos e uniformes.
Além disso, recomenda-se a capacitação contínua dos registradores e substitutos com ênfase em princípios constitucionais como a função social do cartório e a eficiência administrativa.
5. Valorização do papel técnico do advogado
O advogado, como agente essencial à administração da Justiça, deve ser reconhecido como interlocutor técnico legítimo no âmbito extrajudicial. O diálogo entre advocacia e registradores precisa ser institucionalizado, com canais claros de resposta a exigências, inclusive com a possibilidade de instauração de mediação prévia antes da via correcional ou judicial.
O fortalecimento dessa relação evita litígios desnecessários e promove soluções mais céleres e seguras.
VI – Conclusão
A atividade registral brasileira é um dos pilares da segurança jurídica patrimonial e contratual no país. Sua credibilidade foi construída com base na técnica, na publicidade e na fé pública, elementos que conferem ao sistema um grau elevado de confiabilidade perante a sociedade. No entanto, quando a técnica se transforma em rigidez desproporcional e a legalidade é interpretada de forma desvinculada da finalidade do serviço público, perde-se o equilíbrio necessário entre forma e função.
O formalismo excessivo, especialmente quando fundado em interpretações isoladas, exigências não previstas em lei ou práticas cartorárias idiossincráticas, compromete a função social do registro público e afasta o cidadão da formalização de seus direitos. O que deveria ser um meio de inclusão e pacificação jurídica torna-se, paradoxalmente, um filtro de exclusão ou morosidade.
A jurisprudência, tanto do STJ quanto do STF, tem demonstrado sensibilidade para esse cenário, reconhecendo a possibilidade de controle judicial sobre exigências abusivas e afirmando a responsabilidade objetiva do Estado e dos delegatários por atos que extrapolem os limites legais e comprometam a função pública da atividade.
As Corregedorias e o CNJ, como instâncias de supervisão técnica e normativa, possuem o papel estratégico de conter esses excessos e promover uma atuação harmônica, racional e padronizada em todo o território nacional. Cabe a esses órgãos instituir diretrizes claras, fiscalizar práticas reiteradamente abusivas e promover a capacitação permanente das serventias, com foco não apenas na forma, mas na efetividade do serviço prestado.
Por fim, é indispensável valorizar a atuação da advocacia na via extrajudicial, como parceira legítima da cidadania e do bom funcionamento do sistema registral. O diálogo institucional e o respeito mútuo entre advogados e registradores é um dos caminhos mais promissores para restaurar o equilíbrio entre a necessária segurança jurídica e o direito à concretização célere e razoável dos atos da vida civil.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: mar. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015.htm. Acesso em: mar. 2025.
3 BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm. Acesso em: mar. 2025.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.348.228/MG. Rel. Min. Og Fernandes. Segunda Turma. DJe 12 maio 2015.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 842.846/SC (Tema 777). Rel. Min. Luiz Fux. Tribunal Pleno. DJe 14 mar. 2017.
6 TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Processo nº 0712678-30.2016.8.07.0016. 3º Juizado Especial Cível de Brasília. Sentença publicada em 2016.
7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017. Dispõe sobre a usucapião extrajudicial. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2556. Acesso em: mar. 2025.
8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento nº 88, de 1º de outubro de 2019. Dispõe sobre política de prevenção à lavagem de dinheiro nos cartórios. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3061. Acesso em: mar. 2025.