Em tempos de redes sociais e decisões instantaneamente julgadas pela opinião pública, cresce o desafio de proteger a independência judicial contra pressões externas.
A liberdade de expressão, embora essencial em uma sociedade democrática, encontra limites quando se pretende, sob o pretexto da opinião, atacar decisões judiciais técnicas com base em desinformação ou em versões distorcidas dos fatos. A “verdade” das redes sociais, construída por narrativas emocionais e simplificadas, raramente coincide com a verdade processual, que exige contraditório, legalidade e provas nos autos.
O Brasil vive, nesse sentido, um momento revelador. Desde os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, o país presencia um fenômeno preocupante: cidadãos comuns, muitas vezes sem qualquer formação jurídica ou acesso ao conteúdo dos autos, discutem com veemência — em redes sociais, podcasts e até em mesas de bar — sobre a tipificação penal das condutas praticadas naquele episódio. Opinam, por exemplo, se houve ou não tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa ou deterioração de patrimônio público. E vão além: debatem apaixonadamente sobre a suposta correção (ou injustiça) das penas impostas aos réus, sem jamais terem lido a decisão, as provas produzidas na instrução ou as razões de decidir dos julgadores.
Esse comportamento, por mais comum que se torne, revela um paradoxo preocupante: a justiça técnica, formalmente construída dentro dos limites da Constituição e das leis penais, vem sendo julgada — e frequentemente condenada — por um tribunal informal e apaixonado, que opera à margem do processo legal. O juiz, nesse cenário, é convertido em protagonista de um reality show jurídico, com cada ato seu submetido à aprovação ou ao escárnio das multidões digitais.
A célebre advertência de Vincent de Moro-Giafferi, proferida em pleno tribunal do júri em Paris, em 1913, permanece como um marco ético da advocacia e da defesa da independência judicial. No julgamento da notória “Quadrilha de Bonnot” — grupo anarquista acusado de crimes violentos que despertaram enorme comoção social — Moro-Giafferi, advogado de defesa, reagiu com veemência à tentativa da acusação de justificar a pena de morte como resposta à indignação popular. Voltando-se aos jurados, bradou: “Afastem desse julgamento a opinião pública, essa velha prostituta que tenta puxar o juiz pela manga”.
A metáfora, contundente e provocativa, denunciava o risco de contaminação do julgamento pela turba enfurecida. Para Moro-Giafferi, a justiça não pode ser conduzida pela sedução do aplauso público, mas pela consciência serena e técnica de quem julga com base no direito e nas provas. Seu discurso permanece atual: quando o julgador se deixa conduzir pelo clamor popular, abdica de sua missão constitucional — aplicar a lei com isenção, fundamentação e respeito ao devido processo legal.
O artigo 93, IX, da Constituição de 1988 exige que toda decisão judicial seja fundamentada. Não se trata de formalismo: é o que assegura controle, previsibilidade e legitimidade ao Judiciário. Em contraste, os “tribunais” das redes julgam sem processo, sem defesa, e muitas vezes sem qualquer conhecimento jurídico.
Embora o sistema penal tenha filtros internos para resistir a pressões externas esses mecanismos podem ser distorcidos para justificar decisões em resposta ao clamor social. Quando isso ocorre, não estamos diante de justiça, mas de populismo penal.
Preservar a autoridade do Judiciário não é proteger um poder hermético, mas garantir que os direitos e garantias fundamentais não sejam substituídos por julgamentos passionais. A justiça não deve ser refém de hashtags, nem o juiz um executor da vontade popular. O Estado de Direito exige coragem institucional para resistir às tentações do populismo digital — e serenidade institucional para educar o público sobre os limites, os fundamentos e o valor de um julgamento justo.
Quando o juiz passa a ser julgado, a democracia é que corre perigo.