A correta identidade de um sistema judicial envolve a definição do papel dos magistrados na dinâmica processual. Em alguns ordenamentos, os magistrados exercem maior protagonismo; noutros, a atuação do julgador se sobressai menos (BARBOSA MOREIRA, 2003). Um claro exemplo da dualidade entre o papel de protagonista ou espectador do julgador no exercício da atividade jurisdicional envolve a questão da possibilidade de a parte desistir do seu recurso.
Recentemente, o STJ voltou a apreciar o tema. Quando do julgamento do REsp. 2.172.296-RJ, a 3ª turma da Corte, em sessão realizada no dia 4 de fevereiro de 2025, seguindo o entendimento da relatora, a ministra Nancy Andrighi, inovou acerca da interpretação a ser dada ao art. 998, caput, do CPC, consignando que o relator pode indeferir a manifestação de desistência do recurso para prosseguir com a análise das razões recursais em qualquer hipótese, ainda que o dispositivo de lei federal interpretado consigne que “o recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.
Em 2008, o STJ já tinha firmado o entendimento de que o indeferimento da desistência é possível no julgamento da Questão de Ordem no REsp. 1.063.343-RS, também de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Contudo, à época, a Corte restringiu esta possibilidade aos casos em que o recurso especial esteja afetado à sistemática dos recursos repetitivos, conforme acórdão publicado em 4 de junho de 2009.
A grande novidade está, portanto, no reconhecimento de que o indeferimento da desistência pode ocorrer mesmo sem ter havido afetação do recurso à sistemática dos repetitivos, contemplada no art. 998, parágrafo único, do CPC, ao dispor que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquele objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”. No caso analisado, o indeferimento ocorreu antes mesmo da inclusão do recurso em pauta para julgamento.
De acordo com a 3ª turma, o indeferimento é adequado quando (I) se tratar de tema nunca enfrentado na Corte (leading case), (II) houver indícios de estratagema a evitar jurisprudência em pedidos de desistência homologados anteriormente, (III) o sorteio de relatoria preceder a apresentação do pedido de desistência e (IV) houver forte interesse público no enfrentamento do objeto recursal.
A inovação vai na contramão da literalidade do art. 998 do CPC e foi decidida em questão de ordem, permitindo o julgamento de mérito do caso a despeito da vontade da parte recorrente, que desistiu do recurso em momento anterior à sua inclusão em pauta.
A solução aplicada acirra um embate histórico entre a doutrina e a jurisprudência do STJ, que perdura desde o CPC/73, que já previa a possibilidade de desistência do recurso “a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes” (art. 501).
Para o STJ, a interpretação do art. 998 do CPC deve estar alinhada à Constituição Federal e à missão institucional da Corte, qual seja, ocupar posição que transcende a última palavra em âmbito infraconstitucional, tendo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instâncias ordinárias de todo o país, conforme decidido no REsp. 1.721.705-SP, também de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em acordão publicado no dia 6 de setembro de 2018.
Este papel institucional do STJ é, de fato, mais evidente quando se está diante de um julgamento afetado à sistemática dos recursos repetitivos. Para além do caso concreto, a técnica de julgamento dos repetitivos envolve a constituição de uma tese de direito formada no presente, direcionada a regrar e fundamentar a atuação do estado em sua função jurisdicional no futuro (FARIA, 2021). Justamente com este olhar, a Corte Especial do STJ já decidiu pela inviabilidade de acolhimento de desistência recursal manifestada quando iniciado o julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, consoante acórdão da Questão de Ordem no REsp. 1.063.343-RS, também de relatoria da Min. Nancy Andrighi, publicado em 4 de junho de 2009.
Ocorre, porém, que o protagonismo do STJ deve se vincular aos limites do sistema de legalidade (DINAMARCO, 2023). Vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da inércia, que é vital para a manutenção de um sistema judiciário justo e imparcial. Em sua essência, ele assegura que a atuação judicial esteja limitada às solicitações das partes, preservando, assim, a neutralidade do magistrado.
Assim, quando o STJ indefere a desistência manifestada em um processo cujo pronunciamento judicial vai regrar uma relação jurídica constituída tão somente entre as partes, como é o caso do REsp. 2.172.296-RJ, há, em verdade, uma violação legal (DINAMARCO, 2023).
Para a doutrina majoritária, a desistência é ato unilateral da parte que sequer está sujeito a homologação - isto tanto na vigência do art. 501 do CPC/1973, quanto com o advento do art. 998 no CPC.
Barbosa Moreira esclarece que a desistência do recurso é incondicionada e produz efeitos de imediato, sendo a decisão homologatória de natureza declaratória, e não constitutiva (BARBOSA MOREIRA, 2002). José Roberto dos Santos Bedaque sustenta que, mesmo na hipótese de direito material indisponível, o princípio da inércia da jurisdição deve persistir, não tendo o interesse do Estado naquela relação jurídica específica capacidade de influir em maior poder de iniciativa do magistrado (BEDAQUE, 2011). José Rogério Cruz e Tucci prescreve que, excetuando-se a hipótese do art. 988, parágrafo único, do CPC, sempre deve prevalecer a vontade do recorrente, mesmo que o objeto do recurso esteja vinculado a matéria de ordem pública (CRUZ E TUCCI, 2024).
As ressalvas propostas por Bedaque e Cruz e Tucci são fundamentais para a correta análise das quatro condicionantes estabelecidas pelo recente julgamento da Terceira Turma do STJ. Não há diferença se o caso é inédito, a desistência é estratégica, a motivação decorre do sorteio da relatoria ou, sobretudo, se está presente relevante interesse público. Faz-se necessária a prevalência da inércia da jurisdição e a vontade do recorrente de não ver o seu recurso julgado.
A inércia da jurisdição impõe que o julgador atue apenas mediante provocação (WAMBIER, 2016) e todo pronunciamento que exceda os limites objetivos da demanda configura violação ao princípio, porque implica atuação jurisdicional sem provocação (BEDAQUE, 2018). O processamento e o julgamento do recurso após a desistência da parte configuram pronunciamento judicial sem provocação e, portanto, violação à inércia. A própria Terceira Turma do STJ já decidiu pela natureza declaratória da decisão que recebe a desistência do recurso, de modo que a insurgência passa a não mais existir a partir do momento, conforme julgamento do REsp. 2.119.389-SP, com acórdão publicado em 26 de abril de 2024.
Parte da doutrina estende a possibilidade de desistência do recurso até mesmo para a hipótese do art. 988, parágrafo único, do CPC, afirmando que, apesar do prosseguimento da análise da questão jurídica afetada à sistemática dos recursos repetitivos, haveria uma modulação imediata para o resultado do julgamento não se aplicar ao caso concreto, no qual se manifestou a desistência (DIDIER, 2024). Essa conclusão foi consignada no enunciado 213 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, ao dispor que “no caso do art. 998, parágrafo único, o resultado do julgamento não se aplica ao recurso de que se desistiu”.
Assim, o julgamento do REsp. 2.172.296-RJ pela 3ª turma do STJ revela um preocupante ponto de inflexão no debate acerca do papel do magistrado na condução processual. Ao permitir o indeferimento da desistência de qualquer recurso, mesmo com a autorização expressa do caput do art. 998 do CPC, o posicionamento do STJ vai na contramão do princípio da inércia da jurisdição e afronta a autonomia da vontade do recorrente no que tange ao processamento ou não do seu recurso.