Diversas construtoras e empreiteiras responsáveis por empreendimentos de interesse social (EHIS) beneficiados com isenções fiscais e subsídios da Prefeitura de São Paulo comercializaram de forma irregular unidades habitacionais destinadas à habitação de interesse social para compradores que não se enquadram nas faixas de renda familiar legalmente aplicáveis (HIS1, HIS2 e HMP1).
Tal prática disseminou-se de tal forma na cidade que motivou o Ministério Público do Estado de São Paulo a instaurar um inquérito civil para apurar a destinação dessas unidades habitacionais por incorporadoras e construtoras em desatendimento das normas legais. A investigação motivou o ajuizamento de uma ação civil pública contra o Município de São Paulo2, visando à suspensão da política pública de produção privada de unidades habitacionais de interesse social (HIS) e de mercado popular (HMP) até que seja demonstrada, no processo, sua readequação, mediante a adoção de medidas eficazes.3
A construção de unidades habitacionais para famílias de baixa renda certamente não é a primeira opção dos agentes do mercado imobiliário, em razão dos valores desses imóveis e seu mercado vis-à-vis os custos de construção. Diante dessa situação, o Poder Público oferece benefícios e isenções fiscais a construtoras e incorporadoras, para incentivar esses agentes a desenvolverem empreendimentos de interesse social e viabilizar a construção de unidades habitacionais destinadas a famílias de baixa renda.
Trata-se de uma política pública habitacional, em que o interesse público existente na contrapartida privada justifica a concessão de subsídios aos referidos agentes.
Assim, porque visam a atender a uma política pública habitacional, nos termos da lei municipal 16.050 de 31 de julho de 2014 (artigos 46 e 47), as unidades imobiliárias produzidas nesse contexto têm sua destinação regulamentada e, consequentemente, estão submetidas a um regime legal de uso e disposição limitado. Isto é, sua comercialização deve observar a faixa de renda familiar para a qual o projeto foi homologado/aprovado.
Em síntese, as incorporadoras ou construtoras cujos empreendimentos estão licenciados para construção de habitação de interesse social se beneficiam de condições vantajosas, sobretudo relacionadas ao acréscimo de potencial construtivo, que têm como contrapartida – e justificativa – a exigência de direcionar as unidades habitacionais ao atendimento de famílias com as faixas de renda definidas no § 2.º do art. 46 da lei 16.050/14.
O que ocorre, portanto, quando a comercialização das unidades imobiliárias não observa a faixa de renda da categoria de habitação de interesse social aplicável?
Quando o imóvel é destinado a adquirentes sem observância do regime jurídico da produção privada de HIS e HMP atrelada a benefícios fiscais e urbanísticos, a legislação municipal previu sanções específicas de natureza pecuniária tanto às construtoras como aos terceiros adquirentes4: a perda da isenção, com o consequente o pagamento integral do potencial construtivo adicional utilizado, os tributos e demais custas e encargos relativos ao empreendimento.
Em relação aos adquirentes, a pena pecuniária consiste no pagamento do benefício fiscal, calculado de forma proporcional à fração ideal do imóvel.
A questão foi brilhantemente enfrentada pelo Exmo. Corregedor-Geral de Justiça Desembargador Francisco Loureiro, nos autos da dúvida registral suscitada pelo 12º Oficial de Registro de Imóveis da Capital (SP) (TJSP, Apelação 1061947-92.2024.8.26.0100):
“O atendimento exigido, a ser garantido por dez anos (cf. § 8.º do art. 47), é a contrapartida dos benefícios assegurados aos promotores de HIS e HMP. Dizendo de outro modo, criou o legislador benefícios mediante renúncia fiscal, com o escopo de facilitar a aquisição de imóveis por população com determinado perfil de renda.”5
A legislação, portanto, estabeleceu mecanismos de fiscalização e controle da destinação social que justificam o benefício fiscal.
O que tem ocorrido, no entanto, em São Paulo, é a comercialização das unidades destinadas a habitação de interesse social a compradores que não se enquadram nas faixas de renda aplicáveis, sem a devida transparência e fiscalização por parte das construtoras.
Se, por vezes, os compradores são investidores que simplesmente ignoraram, conjuntamente às incorporadoras, as exigências legais, outras tantas vezes, os consumidores que adquiriram esses imóveis só descobrem que o fizeram quando da expedição do “habite-se” ou da confecção da escritura de compra e venda, quando a informação relativa à destinação de habitação de interesse social, que até o momento não havia sido informada, vem à tona, por exigência dos cartórios e registros de imóveis.
Ora, é evidente que a venda de um imóvel com essas características, sem a devida divulgação e explicitação prévia dessa informação, do regime jurídico aplicável e suas consequências legais, configura descumprimento dos deveres contratuais de informação, transparência e boa-fé por parte do vendedor.
Mais que isso, o enquadramento ao regime jurídico próprio de Habitação de Interesse Social exige que o imóvel seja destinado a famílias cuja renda se enquadre na faixa de renda aplicável, pelo prazo de 10 anos, sob pena de descumprimento de sua destinação e aplicação da sanção pecuniária. Esse regime jurídico, que decorre da regulamentação da política pública, impõe limites ao livre gozo e disposição do bem e altera significativamente as características do imóvel, alterando radicalmente o equilíbrio contratual.
São duas frentes de irregularidades: a omissão da informação de enquadramento do imóvel como HIS dos adquirentes/consumidores constituiu uma violação, entre os contratantes, dos deveres contratuais de boa-fé, informação e transparência. Em outro plano, a comercialização irregular da unidade habitacional HIS a adquirentes que não se enquadram na faixa de renda prescrita pela legislação desfigura a política pública habitacional do município. Os subsídios e isenções fiscais, pensados como incentivos para que agentes privados produzissem unidades habitacionais e os comercializassem para familiares de baixa renda, são desvirtuados, em prejuízo do interesse público que inicialmente os justificou.
Embora essa segunda irregularidade seja mais apropriadamente objeto de análise da ação civil pública proposta pelo Ministério Público, pelas consequências que ela enseja na esfera do interesse público, há evidentes consequências dessa situação para os consumidores lesados por essa prática comercial.
Isso porque referida conduta por parte das construtoras e empreiteiras tem inegáveis efeitos extracontratuais que prejudicam e violam os direitos dos consumidores, colocando-os, contra sua própria vontade, em situação de serem potenciais alvos de sanções administrativas e pecuniárias pelo Poder público ou pelo Poder Judiciário, por figurarem como terceiros adquirentes de unidades habitacionais em relação as quais não poderiam figurar como compradores.
Isto é, ao comercializar imóveis classificados como HIS a consumidores que não se enquadram na faixa de renda prescrita, as construtoras sujeitam esses compradores a serem alvo de sanções pecuniárias calculadas com base no potencial construtivo objeto de renúncia fiscal, impondo a eles consequências jurídicas injustificadas e prejudiciais aos seus interesses. Há inegável dano aos consumidores que nunca pretenderam adquirir ou concordaram com um contrato de compra e venda de uma unidade imobiliária de habitação de interesse social.
Não obstante, o prejuízo aos adquirentes não se limita a essas potenciais consequências jurídicas.
A comercialização de unidades de habitação de interesse social, por lei, tem destinatários específicos, isto é, famílias com renda abaixo de 6 salários-mínimos. Por consequência, o mercado consumidor de uma unidade habitacional HIS é muito mais reduzido do que o mercado consumidor de uma unidade habitacional “normal”, desprovida das mesmas restrições de uso e comercialização. Isso sem levar em conta, do ponto de vista social, a renda disponível e distribuída na sociedade para compra de unidades habitacionais “normais”, e a renda disponível para a aquisição de habitação de interesse social, cujo montante é abissalmente menor.
Essa diferenciação de mercados consumidores faz com que as unidades habitacionais de interesse social sejam bens caracterizados por uma liquidez muito menor do que as unidades imobiliárias “normais”, ou seja, é muito mais fácil comercializar uma unidade imobiliária “normal”, sem perda de valor, do que comercializar uma unidade imobiliária de habitação de interesse social, cuja demanda, evidentemente, é menor. Para simplificar, é só imaginar dois imóveis idênticos, no mesmo prédio, um HIS e um sem o enquadramento. Você trocaria um pelo outro?
Esses reflexos econômicos das características legais dos imóveis de HIS têm efeitos práticos no mercado desses bens, refletindo sobretudo em sua demanda (quantidade de possíveis compradores) e no seu preço de mercado.
Considerando, portanto, que os imóveis de habitação de interesse social possuem menor demanda e menor liquidez do que imóveis sem as mesmas restrições, é evidente que a comercialização de unidades imobiliárias de habitação de interesse social a compradores que não se enquadram na faixa de renda aplicável lhes impõe um prejuízo de ordem econômica.
Sintetizando, assim, temos que a comercialização de unidade imobiliária de habitação de interesse social, sem o conhecimento ou concordância dos adquirentes, lhes impõe um bem imóvel submetido a um regime legal específico, com restrições de uso e gozo, pelo extenso prazo de 10 anos, com liquidez e um mercado consumidor muito mais restrito, além de sujeitar os consumidores a sanções administrativas e pecuniárias, a serem aplicáveis pela Administração pública.
Do ponto de vista do consumidor, trata-se de conduta omissiva que vicia o negócio jurídico celebrado e lesa os o consumidor, a configurar o descumprimento contratual absoluto, justificando, na esfera judicial, que sejam pleiteados o desfazimento do negócio, por culpa exclusiva da vendedora, bem como a indenização pelos prejuízos suportados (súmula 543 do STJ), incluindo a devolução de todos os valores pagos, inclusive comissão de corretagem, bem como a aplicação de multa contratual em desfavor da vendedora, nos termos da tese firmada pelo STJ em sede de recurso repetitivo no Tema 9716.
São indenizáveis ainda, com fundamento na legislação consumerista, os danos emergentes, consistentes em valores por ventura despendidos pelos adquirentes com o imóvel, por exemplo, a título de gastos com uma reforma ou benfeitorias.
Além disso, é plenamente defensável que o vendedor seja responsabilizado pelos valores que os adquirentes deixarem de auferir, a título de aluguéis, ao longo do tempo, nos casos em que a aquisição se fez com fins de investimento, uma vez que o regime jurídico do imóvel veda o uso ou o aluguel do imóvel de forma desimpedida.
Isso porque referida pretensão indenizatória não se confunde com a situação contemplada pela súmula 970 do STJ, que estabeleceu entendimento acerca da vedação de cumulação de cláusula penal moratória com lucros cessantes, o que tem sido inclusive relativizado pela própria Corte Superior, em determinados casos (AgInt no REsp n. 2.082.106/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, e AgInt nos EDcl no REsp n. 1.741.212/RN, relator Ministro Raul Araújo).
No caso de comercialização irregular de unidades habitacionais de HIS, as pretensões indenizatórias de multa contratual e lucros cessantes não configuram o bis in idem, que justifica e fundamenta a vedação.
Do ponto de vista da política pública habitacional e dos interesses públicos e privados em jogo, a discussão é complexa e envolve muitos atores, sendo que a ação civil pública proposta pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital contra o Município representa apenas um dos contextos em que essa situação será equacionada. Nesse cenário, a própria prefeitura do município, em resposta ao ajuizamento da ação, já iniciou a notificação de empresas responsáveis pelos empreendimentos identificados com a destinação irregular das habitações de interesse social.
Em que pese o aberrante desvirtuamento da política pública que essas vendas representam, não se pode perder de vista a importância da política pública habitacional do Município por meio da produção privada de unidades de habitação de interesse social, o que, de forma global, conta com um grande número de casos exitosos, se comparados ao número de casos e que foram identificados com destinação irregular.
Do mesmo modo, independentemente da discussão a ser travada na ação civil pública, as irregularidades observadas não são pontuais e aparentemente afetaram muitos adquirentes, com consequências relevantes nesse mercado.
Nesse contexto, os adquirentes de imóveis que por ventura se surpreendam com o enquadramento legal do bem adquirido como unidade de habitação de interesse social têm amplo ferramental para defender seus interesses e buscar a devida indenização frente às construtoras e incorporadoras, que comercializaram as unidades imobiliárias de HIS, sem a devida informação e transparência.
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1 HIS 1: destinada a famílias com renda familiar mensal média de no máximo 3 salários-mínimos; HIS 2: destinada a famílias com renda familiar mensal média de no máximo 6 salários-mínimos. Habitação de Mercado Popular - HMP é aquela destinada ao atendimento habitacional de famílias cuja renda mensal seja entre 6 e 10 salários-mínimos, com até dois sanitários e até uma vaga de garagem, podendo ser de promoção pública ou privada.
2 https://www.mpsp.mp.br/w/inqu%C3%A9rito-do-mpsp-apura-direcionamento-de-moradias-sociais-para-fam%C3%ADlias-de-maior-renda
4 Art. 47, § 2.º, da Lei n.º 16.050/2014, introduzidas pela Lei n.º 17.975, de 8 de julho de 2023, reproduzidas no art. 8.º do Decreto n.º 63.130/2024:
I - ao promotor do empreendimento, o dever de pagamento integral do potencial construtivo adicional utilizado, tributos, custas e demais encargos referentes à sua implantação, além de multa equivalente ao dobro deste valor financeiro apurado, devidamente corrigido, sem prejuízo das sanções previstas na Lei n.º 16.642, de 9 de maio de 2017 Código de Obras e Edificações;
II - a terceiros adquirentes a partir da segunda alienação dos imóveis de HIS 1, HIS 2 e HMP, cobrança dos valores indicados no item anterior, calculados de forma proporcional à fração ideal do imóvel adquirido, estando autorizado o Poder Público a adotar as medidas processuais análogas às previstas nos incisos I e II do artigo 107 da Lei n.º 16.050, de 2014 PDE.
5 A regulamentação da Lei Municipal Lei n.º 16.050 pelo Decreto n.º 63.130/2024 estabeleceu a exigência de que o imóvel permaneça durante o prazo de 10 anos destinados “apenas para famílias com certidão de ateste de enquadramento na respectiva faixa de renda declarada”. O mesmo Decreto 63.130/2024 (Artigos 4 e 5) exigiu a averbação nas matrículas dos imóveis de “cada unidade habitacional das tipologias de HIS 1, HIS 2 e HMP, de que tais unidades receberam os benefícios previstos no Plano Diretor Estratégico e legislação correlata, de forma condicionada à destinação a famílias com o perfil de renda declarado no licenciamento do empreendimento”, exigindo também a emissão de certidão que ateste o enquadramento das famílias nas respectivas faixas de renda.
6 “No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial.”