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Senado aprova porte de arma para mulher sob medida protetiva

PL 3272/24 permite porte de arma a mulheres sob medida protetiva, mas especialistas alertam para riscos de aumento da violência e flexibilização do Estatuto do Desarmamento.

22/4/2025

1. Introdução

O Senado Federal aprovou o PL 3272/24, de autoria da ex-senadora Rosana Martinelli, que autoriza mulheres vítimas de violência doméstica e sob medida protetiva a obterem, temporariamente, o porte de arma de fogo a partir dos 18 anos. A proposta, que altera de forma sensível a política armamentista nacional, tem gerado intensos debates. De um lado, parlamentares e defensores do projeto alegam que a medida traria mais segurança à mulher em situação de risco, funcionando como um elemento dissuasório contra agressores reincidentes. De outro, alertamos para os riscos de uma escalada na violência e o enfraquecimento progressivo do Estatuto do Desarmamento.

Neste ensaio, analisaremos os fundamentos do projeto, os argumentos de seus defensores e críticos, as implicações jurídicas e sociais da sua eventual sanção, bem como os perigos envolvidos na ampliação do acesso a armas de fogo sob justificativas excepcionais.

2. Desenvolvimento

2.1 A proposta legislativa e seus fundamentos.

O PL 3272/24 autoriza o porte temporário de arma de fogo para mulheres com medida protetiva deferida pelo Poder Judiciário, desde que preencham os requisitos do Estatuto do Desarmamento — entre eles, a comprovação de capacidade técnica e psicológica para manuseio da arma. A principal inovação do projeto é permitir esse acesso a partir dos 18 anos de idade, contrariando a legislação vigente, que estabelece a idade mínima de 25 anos.

Senadores como Magno Malta defenderam entusiasticamente o projeto, argumentando que as medidas protetivas, por si só, são frequentemente ineficazes para garantir a integridade da mulher, e que a simples posse de arma de fogo pode ter um efeito dissuasório sobre potenciais agressores. O aumento dos casos de feminicídio foi utilizado como justificativa para a necessidade de ações mais enérgicas, inclusive o direito da mulher de se proteger com meios letais.

2.2 Nosso alerta: riscos de retrocesso e banalização da arma de fogo.

Apesar da boa intenção declarada de proteger a mulher em situação de vulnerabilidade, o projeto desperta preocupações fundadas entre especialistas em direito e segurança pública. Defendemos posição crítica ao projeto por uma série de razões estruturais e principiológicas.

Em primeiro lugar, aponto o risco de incremento da violência doméstica com a entrada de mais armas em ambientes já marcados por tensão e conflitos emocionais. A arma de fogo, longe de ser um instrumento de pacificação, pode funcionar como catalisadora de tragédias, sobretudo em contextos de fragilidade emocional, impulsividade e descontrole mútuo — características frequentemente presentes em relações familiares desfeitas por episódios de violência.

Em segundo lugar, há um risco institucional de esvaziamento progressivo do Estatuto do Desarmamento, um marco legal consolidado após o referendo de 2005, no qual a população brasileira optou majoritariamente pelo desarmamento civil. O PL 3272/24, ao criar exceção para mulheres com medida protetiva, abre espaço para a ampliação do acesso a armas para outros grupos igualmente considerados vulneráveis, como idosos, LGBTs, motoristas de aplicativo ou profissionais da educação. Essa “porta entreaberta” é o primeiro passo para uma flexibilização disfarçada e silenciosa da política de controle de armas no país.

2.3 A questão da maturidade e o rebaixamento da idade mínima.

Outro ponto extremamente sensível diz respeito à redução da idade mínima para o porte de arma, dos 25 para os 18 anos. Defendo que essa alteração é temerária. A alegação é de que, aos 18 anos, mesmo com treinamento, a maioria dos jovens adultos ainda não possui a maturidade emocional necessária para lidar com o peso de portar um instrumento letal. Em contextos de vulnerabilidade emocional, como os que envolvem medidas protetivas, o risco de decisões impulsivas ou reações desproporcionais é ainda maior.

Além disso, a ampliação do porte de arma para mulheres a partir dos 18 anos pode facilitar o uso indevido de medidas protetivas, inclusive com falsas denúncias, abrindo espaço para desvios e fraudes, como mulheres sendo usadas como “laranjas” para obtenção de armas por terceiros. Embora a boa-fé seja o pressuposto do ordenamento jurídico, a experiência forense demonstra que onde há brechas, haverá quem as explore.

2.4 A ilusão da autodefesa e a omissão do Estado.

O argumento de que armar a mulher é uma forma de protegê-la carrega um perigoso subtexto: o de que o Estado, incapaz de garantir a segurança das vítimas, estaria transferindo a elas a responsabilidade pela própria defesa. Essa lógica, além de injusta, é perigosa. Incentivar o armamento de vítimas como solução para a falência da política pública é uma inversão de prioridades. O caminho mais sensato seria o fortalecimento dos mecanismos de proteção e fiscalização do cumprimento das medidas protetivas, o investimento em políticas de prevenção, em abrigos seguros e no acompanhamento psicológico e social das vítimas e dos agressores.

Entendo que o foco da discussão deveria estar no aumento das penas para o descumprimento das medidas protetivas, como as levadas a efeito pela lei 14.994/24, na celeridade da resposta judicial, e na integração entre os órgãos de segurança pública e o Judiciário, e não na aposta em soluções armadas que podem multiplicar tragédias.

2.5 O projeto de lei é elitista, uma vez que somente favorece mulher ricas.

Outra crítica que precisa ser feita ao projeto de lei é o seu viés elitista e antidemocrático. A proposta ignora deliberadamente a realidade socioeconômica da maioria das mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil — em especial as mulheres negras, periféricas e em situação de vulnerabilidade, que não possuem condições mínimas para adquirir, registrar e manter uma arma de fogo. A arma, neste contexto, se torna um privilégio de quem pode pagar, transformando o direito à legítima defesa em um produto de mercado, acessível apenas àquelas que já dispõem de recursos e redes de proteção que, paradoxalmente, as tornam menos expostas à violência cotidiana.

Além de ser ineficaz na proteção coletiva das mulheres, o projeto revela seu caráter demagógico ao vender a ilusão de empoderamento por meio da violência. Ao invés de investir em políticas públicas de prevenção, abrigos, capacitação de agentes públicos e celeridade na concessão de medidas protetivas eficazes, o legislador opta por uma solução individualista e excludente. No fim das contas, o projeto não combate à violência: apenas escancara a desigualdade, relegando ao abandono justamente aquelas mulheres que mais precisam do amparo do Estado.

3. Conclusão.

O PL 3272/24, ao permitir o porte de arma de fogo para mulheres com medidas protetivas a partir dos 18 anos, coloca em pauta questões complexas e sensíveis. Embora sua motivação seja a proteção da vida e da integridade da mulher, os riscos colaterais que o acompanham não podem ser ignorados. O aumento da circulação de armas, o enfraquecimento do Estatuto do Desarmamento, o risco de tragédias domésticas impulsionadas por armas em mãos emocionalmente instáveis, bem como a possibilidade de desvio da finalidade da medida, são aspectos que devem ser enfrentados com rigor e cautela.

A proteção da mulher em situação de violência exige mais do que facilitar o acesso a armas. Exige políticas públicas sólidas, investimento em segurança, punição exemplar a quem descumpre medidas judiciais e, sobretudo, um Estado presente e atuante. Transferir para a vítima o ônus da autodefesa é, em última análise, mais uma forma de violência simbólica. Em nome de uma proteção mal direcionada, podemos estar abrindo as portas para um ciclo ainda mais perverso de violência, que trará consequências irreversíveis não apenas às mulheres, mas à sociedade como um todo.

Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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