Nos últimos anos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) tem consolidado uma linha de entendimento que impõe severas restrições à criação de cargos comissionados pelas administrações municipais. Na prática, o que se observa é um movimento jurisprudencial que considera inconstitucional praticamente toda e qualquer estrutura que contenha cargos de livre nomeação, mesmo quando vinculados a funções de direção, chefia ou assessoramento.
Sob o pretexto de aplicar o Tema 1010 do Supremo Tribunal Federal, que trata da necessidade de descrição clara das atribuições dos cargos comissionados e da demonstração da relação de confiança com o agente nomeante, o TJ/SP tem proferido reiteradas decisões nas quais invalida leis municipais com base em argumentos genéricos e, muitas vezes, sem uma análise substancial das funções desempenhadas.
O que era para ser uma proteção à moralidade administrativa e ao princípio do concurso público, pilares importantes da administração pública, passou a se configurar como um verdadeiro cerceamento da autonomia municipal e da discricionariedade do gestor. A Constituição Federal, no artigo 37, inciso V, é clara ao admitir a existência de cargos comissionados, desde que destinados às atribuições de direção, chefia e assessoramento. No entanto, o que se vê nas recentes decisões é uma presunção quase automática de inconstitucionalidade, com base em fórmulas padronizadas, desconsiderando a diversidade e as peculiaridades da estrutura administrativa de cada município.
Em muitos acórdãos, o Tribunal não se debruça de forma aprofundada sobre as atribuições descritas nos textos legais. Ao contrário: há uma tendência de citar genericamente que os cargos “não guardam relação com funções de direção, chefia ou assessoramento”, ainda que as atribuições legisladas expressem, por exemplo, tarefas típicas de assessoramento direto à alta administração ou de articulação política institucional. Funções que, constitucionalmente, admitem provimento comissionado.
Casos como os dos municípios de Guaratinguetá, Franca, Itaquaquecetuba, Santo André, São Caetano do Sul, Vargem Grande do Sul, Vinhedo, Murutinga do Sul e Chavantes demonstram esse cenário. Nestes julgados, o TJ/SP anulou cargos comissionados com base em entendimentos que desprezam a análise contextual das funções e a necessidade prática de flexibilidade administrativa nos altos escalões da gestão pública?
Nos bastidores da administração pública paulista, um fenômeno jurídico tem chamado atenção de prefeitos, procuradores e legisladores: o endurecimento progressivo das decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) quanto à constitucionalidade das leis que criam cargos comissionados nos municípios. Amparado na interpretação do Tema 1010 do STF, o Tribunal paulista tem declarado inconstitucionais dezenas de estruturas administrativas, sob a justificativa de que os cargos criados não preencheriam os requisitos de direção, chefia ou assessoramento exigidos pela Constituição.
Mas a realidade que se desenha é bem mais complexa do que aparenta. A jurisprudência do TJ/SP, ainda que fundamentada no zelo pelo concurso público e na proteção contra o uso indevido dos cargos em comissão, tem sido aplicada de forma genérica, muitas vezes ignorando as especificidades das funções descritas nas leis municipais. Em vez de uma análise concreta e contextualizada, o que se observa são decisões baseadas em padrões repetitivos, com afirmações abstratas de que as atribuições são técnicas, operacionais ou burocráticas, sem avaliar a efetiva natureza estratégica, gerencial e fiduciária dos cargos.
Esse movimento, que inicialmente parecia uma reação pontual a excessos administrativos, ganhou contornos mais preocupantes ao atingir indistintamente municípios grandes e pequenos, estruturas simples ou complexas, cargos periféricos ou centrais. As administrações locais começaram a se ver de mãos atadas, sem margem para montar equipes de confiança, realizar reestruturações organizacionais ou implementar políticas públicas com a agilidade necessária. O peso das declarações de inconstitucionalidade passou a comprometer o planejamento estratégico e a própria governabilidade municipal.
Foi então que os municípios resolveram reagir. Através de um movimento jurídico coordenado, diversas prefeituras têm levado seus casos ao Supremo Tribunal Federal, buscando não apenas suspensões liminares dos efeitos das decisões do TJ/SP, mas também a revalidação de leis que, segundo as administrações locais, estão perfeitamente de acordo com o Tema 1010.
E o Supremo tem dado sinais claros de que a interpretação paulista precisa de ajustes. No caso de Rio Claro, por exemplo, a Ministra Cármen Lúcia reconheceu que o TJ/SP havia ultrapassado os limites da tese firmada pelo STF, ao invalidar cargos de Controlador Interno criados com base em normas claras e que detalham funções de assessoramento estratégico. A Reclamação Constitucional 75.430 foi julgada procedente, restabelecendo a vigência da norma municipal e repreendendo, com veemência, o entendimento equivocado da corte estadual.
O mesmo se verificou em Jundiaí, onde o STF suspendeu os efeitos de uma decisão que declarava inconstitucionais cargos vinculados à gestão de uma faculdade pública. O relator da decisão ressaltou que as atribuições descritas na legislação local demonstravam, com clareza, que se tratava de funções de confiança e relevância institucional. Exatamente como exige o Tema 1010. O mesmo padrão foi seguido em decisões envolvendo Caieiras, Itanhaém e outros municípios, nos quais o Supremo reconheceu que a aplicação automática da inconstitucionalidade gera grave lesão à ordem administrativa, prejudica a continuidade de serviços públicos e interfere indevidamente na autonomia legislativa local.
De forma didática, o STF tem reiterado que o Tema 1010 não foi criado para extinguir os cargos em comissão, mas para garantir que eles sejam utilizados com responsabilidade e finalidade legítima. A Corte deixa claro que o núcleo da discussão deve estar na qualidade das atribuições e na presença de relação de confiança com o gestor, e não na forma genérica com que os tribunais locais têm classificado as funções como “meramente técnicas”.
A constatação é dura, mas necessária: o Tribunal de Justiça de São Paulo transformou uma importante ferramenta de controle em um mecanismo de supressão da prerrogativa legislativa dos municípios. Ao interpretar a exceção como regra e desconfiar sistematicamente de toda estrutura comissionada, o TJ/SP tem avançado sobre o espaço de autonomia política que cabe aos entes federativos na Constituição.
Hoje, o único caminho para reverter esse cenário é o enfrentamento. Os municípios não podem mais assistir passivamente ao desmonte de suas estruturas administrativas por decisões que não dialogam com a realidade da gestão pública. É preciso recorrer, contestar, ajuizar contracautelas e levar os casos ao Supremo sempre que necessário. A omissão ou o medo de judicializar essas controvérsias apenas alimenta o ciclo de engessamento institucional e fortalece uma jurisprudência que já se mostra desconectada da complexidade da vida administrativa.
Mais do que uma disputa jurídica, trata-se de uma batalha pela preservação do pacto federativo e pela capacidade dos gestores locais de escolher suas equipes, formular políticas públicas e estruturar o serviço público conforme as necessidades reais da população. Se esse embate não for travado, estaremos, em breve, diante de um Estado em que toda e qualquer iniciativa de organização administrativa dependerá do aval prévio de um Poder Judiciário que parece ter esquecido o princípio da separação entre os poderes.