O acesso à saúde é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, no art. 6º e, mais especificamente, no art. 196, que prevê:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
No contexto da saúde suplementar, os planos e seguros de saúde desempenham papel essencial para o exercício efetivo desse direito. Contudo, muitas vezes, beneficiários são surpreendidos com o cancelamento unilateral do plano de saúde, sem qualquer aviso prévio ou justificativa, o que pode causar graves prejuízos, especialmente em situações de tratamento médico em curso.
1. Previsão legal e regulamentar
O cancelamento do contrato de plano de saúde está regulamentado pela lei 9.656/1998, que trata dos planos e seguros privados de assistência à saúde. A legislação estabelece limites claros para o encerramento do vínculo contratual, especialmente nos contratos individuais ou familiares.
Segundo o art. 13, inciso II, da referida lei:
"É vedada a suspensão ou rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência."
Portanto, a lei não permite o cancelamento sem justa causa, tampouco sem notificação prévia, mesmo em caso de inadimplência.
Adicionalmente, a ANS, por meio da RN 563/22, reforça o dever de notificação prévia ao beneficiário em caso de inadimplência e necessidade de rescisão contratual.
2. Entendimento jurisprudencial do STJ
O STJ já consolidou entendimento no sentido de proteger o consumidor contra cancelamentos abusivos e unilaterais de plano de saúde, especialmente em contratos individuais ou familiares.
Jurisprudência relevante:
- STJ - AgRg no AREsp 1.015.313/SP
"A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que é abusiva a rescisão unilateral do contrato de plano de saúde individual sem a demonstração de inadimplemento por parte do consumidor e sem a devida notificação prévia."
- STJ - REsp 1.487.229/SP
“A rescisão unilateral do contrato de plano de saúde, sem demonstração de inadimplemento e sem notificação do consumidor, é abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem excessiva e fere o princípio da boa-fé contratual.”
- STJ - AgInt no AREsp 1.211.676/SP
"É abusiva a rescisão imotivada de contrato de plano de saúde individual ou familiar por parte da operadora, devendo ser preservado o equilíbrio contratual e a continuidade do tratamento médico do beneficiário."
3. Princípios do direito do consumidor aplicáveis
A relação entre beneficiário e operadora de plano de saúde é regida pelo CDC, conforme pacífica jurisprudência do STJ.
Dentre os princípios aplicáveis, destacam-se:
- Boa-fé objetiva (art. 4º, III e art. 51, IV do CDC);
- Equilíbrio contratual (art. 6º, V);
- Proibição de cláusulas abusivas (art. 51, IV e §1º, I);
- Direito à informação adequada (art. 6º, III).
A ausência de notificação prévia infringe esses princípios, deixando o consumidor em posição de extrema vulnerabilidade, especialmente quando há tratamentos médicos em andamento.
4. Cancelamento em contratos coletivos
Nos contratos coletivos, principalmente por adesão, é comum a operadora rescindir o contrato por decisão da pessoa jurídica contratante. No entanto, mesmo nesses casos, o STJ reconhece abusividade em cancelamentos imotivados e sem aviso prévio, sobretudo quando há tratamento contínuo.
- STJ – REsp 1.708.429/SP
“A rescisão imotivada de contrato coletivo de plano de saúde, sem prévia notificação do beneficiário e em curso de tratamento, pode configurar abuso de direito, passível de controle judicial.”
5. Direitos do segurado
Diante de um cancelamento indevido ou sem notificação, o segurado pode:
- Requerer a manutenção do contrato;
- Exigir indenização por danos morais e materiais, quando demonstrado prejuízo concreto;
- Obter liminar judicial para restabelecimento do plano, especialmente em casos de urgência ou continuidade de tratamento.
Conclusão
O cancelamento unilateral e sem aviso prévio do plano de saúde é vedado pela legislação e rechaçado pela jurisprudência. A proteção do consumidor, especialmente em contextos de vulnerabilidade decorrente de enfermidade, exige que operadoras atuem com transparência, boa-fé e respeito aos direitos contratualmente assumidos.
O Judiciário tem reafirmado seu papel de garantidor da dignidade do consumidor, impedindo práticas abusivas e assegurando a continuidade da assistência à saúde.