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O caráter itinerante das medidas protetivas: Uma brecha para abusos?

A transferência das medidas protetivas conforme o domicílio da suposta vítima pode ser usada de forma abusiva para prorrogar restrições indevidas.

24/4/2025

1. Introdução

A lei Maria da Penha, marco na proteção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, trouxe mecanismos inovadores e urgentes para garantir a integridade física e psicológica das vítimas, entre eles, as medidas protetivas de urgência. Com o intuito de assegurar maior eficiência e resguardo à suposta vítima, a legislação e a jurisprudência admitiram a possibilidade de o processo que trata das medidas protetivas acompanhar o domicílio da mulher, transferindo-se para o juízo mais próximo de sua nova residência.

Essa previsão, chamada de princípio do juízo imediato, embora louvável sob a ótica da proteção da mulher em situação de vulnerabilidade, tem suscitado preocupações legítimas no que se refere ao possível uso abusivo dessa prerrogativa. O presente ensaio busca analisar criticamente os impactos dessa regra à luz da prática forense, seus desvios potenciais e os prejuízos que ela pode causar à parte adversa, especialmente quando se observa a banalização ou utilização tática dessa mobilidade processual como forma de perpetuar medidas protetivas que, em muitos casos, deveriam ser revistas ou revogadas.

2. Desenvolvimento

2.1. A lógica por trás do juízo imediato

O princípio do juízo imediato surgiu como uma exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis, segundo o qual a competência jurisdicional é fixada no momento da propositura da ação e não se altera em função de mudanças de domicílio das partes. No caso das medidas protetivas, essa exceção tem por finalidade garantir que o juízo mais próximo do domicílio atual da mulher possa decidir sobre questões urgentes, facilitar diligências, agilizar ofícios e, acima de tudo, proporcionar segurança efetiva à suposta vítima.

A lógica por trás da medida é compreensível: se a mulher muda de cidade para se afastar do suposto agressor ou por questões de segurança, nada mais razoável que o juízo da nova localidade possa assumir o controle do processo. A proximidade geográfica favorece a atuação da rede de proteção, como o Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacia da Mulher e os serviços de atendimento psicossocial, além de permitir uma atuação mais ágil do Estado em contextos de risco iminente.

2.2. A brecha para a instrumentalização

Apesar das boas intenções que justificam a existência do juízo imediato, a experiência prática revela um cenário preocupante: a transferência de domicílio vem sendo utilizada de forma estratégica por algumas supostas vítimas como instrumento para retardar ou evitar a revogação das medidas protetivas.

Um exemplo concreto extraído da atuação forense ilustra bem o problema: em um caso recente, a suposta vítima obteve medidas protetivas em uma determinada comarca. Com o passar do tempo, as decisões judiciais começaram a dar sinais de possível revogação das restrições. Antevendo tal cenário, a suposta vítima mudou-se para outro Estado, comunicou ao juízo de origem, que, por força do juízo imediato, declinou da competência. O processo foi remetido ao juízo da nova comarca, o que, por razões burocráticas naturais ao sistema judiciário, causou o retardamento do andamento por cerca de três meses — período no qual as medidas protetivas continuaram vigentes.

Nesse contexto, o juízo imediato deixou de ser um mecanismo de proteção e passou a ser um instrumento de protelação e manipulação processual. A parte autora, ao se perceber diante da possibilidade de revogação das medidas, optou por alterar o foro processual, forçando a mudança do juiz e, por consequência, prolongando os efeitos das restrições impostas ao ex-companheiro.

2.3. Violação à boa-fé processual e prejuízos à defesa

Essa conduta é claramente incompatível com o princípio da boa-fé processual, previsto no art. 5º do CPC e aplicável, por analogia, a todos os processos judiciais. Trata-se de uma estratégia dolosa, cujas consequências recaem diretamente sobre o homem submetido às medidas, que tem sua liberdade e seus direitos fundamentais limitados de forma indevida e artificial.

Além disso, essa prática gera prejuízos processuais evidentes. A mudança constante de domicílio por parte da suposta vítima dificulta o acompanhamento da defesa, desorganiza a estratégia processual e impede a consolidação da jurisprudência e entendimento de um único juízo sobre o caso. O risco é que, ao se deparar com um novo juiz — que ainda não teve tempo de conhecer o histórico do processo —, haja a tendência de manutenção das medidas por cautela, perpetuando restrições sem fundamentos atualizados.

Mais grave ainda é a possibilidade de criação de um ciclo de mudanças estratégicas de comarca. A mulher, valendo-se de vínculos familiares em diferentes regiões, pode utilizar-se da prerrogativa de mudança de domicílio para transferir o processo sucessivamente. Com isso, o homem submetido às medidas vê-se em um limbo jurídico contínuo, com suas garantias fundamentais suspensas indefinidamente.

2.4. A superação do juízo imediato com os processos digitais

Com a implantação dos processos digitais em praticamente todo o território nacional, a justificativa que outrora embasava o juízo imediato perdeu parte de sua relevância. Atualmente, a prática processual se dá, em larga medida, por meio eletrônico. Audiências são realizadas por videoconferência, manifestações são protocoladas digitalmente, e a instrução probatória pode ser colhida à distância sem maiores prejuízos.

Inclusive, diligências pontuais — como entrevistas sociais ou perícias psicossociais — podem ser facilmente delegadas ao juízo da nova comarca sem necessidade de transferência do processo. Ou seja, é possível preservar a competência originária do processo e garantir, simultaneamente, a proteção e o atendimento da mulher na localidade onde reside, com a atuação conjunta de juízos cooperantes, como já prevê o CPC no art. 67 (cooperação judiciária).

Nesse novo cenário, manter o processo sob o crivo do juízo originário assegura maior estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica, além de evitar a prática de "forum shopping" — quando uma parte escolhe estrategicamente o juiz ou tribunal que julgará o caso.

3. Conclusão

Embora o princípio do juízo imediato tenha sido concebido para proteger mulheres em situação de risco e vulnerabilidade, sua aplicação indiscriminada e descontextualizada pode abrir espaço para distorções e abusos. A realidade forense tem demonstrado que essa prerrogativa, quando manipulada, transforma-se em um instrumento de prorrogação indevida de medidas restritivas, subvertendo a finalidade protetiva da lei Maria da Penha e violando o princípio da boa-fé processual.

É urgente repensar os contornos do juízo imediato diante da nova realidade digital do Poder Judiciário brasileiro. Com os avanços tecnológicos e a consolidação do processo eletrônico, é perfeitamente possível que a mulher seja atendida e protegida na nova comarca sem que, para isso, se transfira o processo originário. Tal solução respeita o devido processo legal, evita prejuízos à defesa e fortalece a credibilidade do sistema judicial.

O que está em jogo, ao fim e ao cabo, é o equilíbrio entre a proteção eficaz das vítimas e a garantia de um processo justo para todos os envolvidos. Qualquer desequilíbrio que favoreça abusos, mesmo que bem-intencionado, compromete a confiança na Justiça e põe em risco a própria legitimidade das medidas protetivas.

Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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