Migalhas de Peso

Da necessidade do controle dos atos administrativos judiciais pelos outros Poderes da República

O novo Leviatã reflete os desafios do poder estatal na modernidade, exigindo controle democrático sobre todos os seus braços, inclusive o Judiciário.

28/4/2025

1. Introdução

O conceito de "Novo Leviatã" nos remete à clássica obra do filósofo político inglês Thomas Hobbes (1588–1679), autor fundamental da teoria do contrato social. Em sua obra Leviatã (1651), Hobbes utiliza a figura bíblica como metáfora para o Estado absoluto — um poder centralizado, soberano e necessário para conter o caos natural da vida humana. A escolha do termo não foi gratuita: no Antigo Testamento, o Leviatã é descrito como uma criatura colossal e indomável, símbolo máximo de força e autoridade. Essa imagem aparece com clareza no Livro de Jó, capítulo 41, versículos 18 a 34, onde o monstro é apresentado em detalhes vívidos e impressionantes:

Cada um dos seus espirros faz resplandecer a luz, e os seus olhos são como as pálpebras da alva. Da sua boca saem tochas; faíscas de fogo saltam dela. Das suas narinas procede fumaça, como de uma panela fervente, ou de uma grande caldeira. O seu hálito faz incender os carvões; e da sua boca sai chama. No seu pescoço reside a força; diante dele até a tristeza salta de prazer. Os músculos da sua carne estão pegados entre si; cada um está firme nele, e nenhum se move. O seu coração é firme como uma pedra e firme como a mó de baixo. Levantando-se ele, tremem os valentes; em razão dos seus abalos se purificam. Se alguém lhe tocar com a espada, essa não poderá penetrar, nem lança, dardo ou flecha. Ele considera o ferro como palha, e o cobre como pau podre. A seta o não fará fugir; as pedras das fundas se lhe tornam em restolho. As pedras atiradas são para ele como arestas, e ri-se do brandir da lança; Debaixo de si tem conchas pontiagudas; estende-se sobre coisas pontiagudas como na lama. As profundezas fazem ferver, como uma panela; torna o mar como uma vasilha de unguento. Após si deixa uma vereda luminosa; parece o abismo tornado em brancura de cabelos. Na terra não há coisa que se lhe possa comparar, pois foi feito para estar sem pavor. Ele vê tudo que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba.

(Jó 41:18–34)

O Leviatã hobbesiano é descrito como a representação do Estado em sua forma mais poderosa e arcaica — um ente sem limites, cuja natureza absolutista é comparada à de um monstro. Para Hobbes, tal monstruosidade era imprescindível para a manutenção da ordem, uma vez que o caos residiria no estado de natureza. A ausência de uma autoridade soberana levaria à guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).

No contexto moderno, o conceito de “Novo Leviatã” ganha novas interpretações, ilustrando os fenômenos e desafios contemporâneos. Aqui, aproxima-se da perspectiva de Zygmunt Bauman (1925–2017), sociólogo polonês e referência nos estudos sobre pós-modernidade, criador do conceito de modernidade líquida. Tal conceito representa uma sociedade marcada por incertezas, fluidez de valores e instituições enfraquecidas, onde o poder é difuso, descentralizado e, muitas vezes, invisível.

O objetivo deste ensaio é refletir sobre como o “Novo Leviatã” se manifesta no presente — especialmente no Poder Judiciário — e defender a necessidade de controle dos atos administrativos judiciais por parte dos demais poderes da República. Afinal, em um regime democrático, nenhum poder pode ser absoluto, ainda que este se reveste do manto da legalidade e da imparcialidade institucional.

1.1 O Leviatã de Hobbes: Ordem e contrato social

Na visão de Thomas Hobbes, o Leviatã simboliza o Estado absoluto, nascido de um contrato social no qual os indivíduos, temendo a instabilidade do estado de natureza, abrem mão de parte de suas liberdades em troca de segurança, paz e ordem. A célebre frase de Hobbes resume com clareza esse estado original: "A vida do homem seria solitária, pobre, desagradável, brutal e curta" (HOBBES, 1651, cap. XIII). 

Neste cenário, o Leviatã surge como uma figura soberana, dotada de poder quase ilimitado, necessária para conter os impulsos destrutivos da humanidade e evitar a desordem. A autoridade centralizada, portanto, seria o único caminho para uma convivência civilizada.

Contudo, essa concentração de poder não vem isenta de riscos. O mesmo Leviatã que protege pode também dominar, calar, vigiar. E é nesse ponto que a reflexão moderna se debruça: como manter o equilíbrio entre segurança e liberdade, entre autoridade e democracia?

2. O novo Leviatã: Transformações do Estado moderno

No mundo contemporâneo, o conceito de Leviatã passou a ser reinterpretado, refletindo as profundas mudanças no papel e na natureza do Estado. Se outrora o Estado era visto apenas como um ente soberano e absoluto, hoje ele se mostra multifacetado, em constante transformação e, por vezes, contraditório.

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos países aderiram ao modelo do Estado de Bem-Estar Social, em que o Poder Público assumiu uma postura ativa na promoção do bem-estar econômico e social dos cidadãos. A figura do Leviatã passou, então, a carregar não apenas o papel de garantidor da ordem, mas também o de provedor de direitos fundamentais, como saúde, educação e previdência. Tal configuração ampliou a legitimidade do Estado, ao mesmo tempo em que o tornou responsável por desafios complexos e, muitas vezes, insustentáveis frente à crise fiscal e à crescente demanda social.

A globalização, por sua vez, trouxe consigo problemas que ultrapassam os limites das soberanias nacionais. Fenômenos como as mudanças climáticas, as crises migratórias e os colapsos econômicos globais exigiram a atuação de um novo tipo de Leviatã, agora articulado em redes transnacionais, representadas por organismos como a ONU, a OMC ou a União Europeia. Trata-se de um Leviatã difuso, que atua de maneira descentralizada, e que muitas vezes escapa dos mecanismos tradicionais de controle democrático.

Paralelamente, o avanço vertiginoso da tecnologia transformou a natureza do poder estatal. O controle da informação passou a ocupar o centro do exercício da autoridade, e ferramentas como vigilância digital, reconhecimento facial, algoritmos e bancos de dados permitiram ao Estado monitorar e influenciar comportamentos de forma silenciosa, contínua e quase invisível. A visão foucaultiana do panoptismo encontra aqui seu ápice, com um Leviatã que vê tudo, mas que raramente é visto.

Contudo, há quem sustente que o verdadeiro Leviatã do século XXI não seja mais o Estado, mas sim o capitalismo global. As grandes corporações, especialmente as empresas de tecnologia e os conglomerados financeiros, exercem uma influência avassaladora sobre a política, a economia e a vida privada. O poder corporativo, não raramente, molda legislações, financia campanhas eleitorais e define o que consumimos, o que sabemos e até como nos comportamos. Nesse sentido, o Leviatã assume uma roupagem empresarial, onde o lucro se sobrepõe ao bem comum e a lógica do mercado relega os princípios democráticos a segundo plano.

Esse cenário nos obriga a revisitar a obra de Hobbes com um olhar crítico e atualizado, reconhecendo que o monstro de outrora não desapareceu, mas adaptou-se aos tempos líquidos e complexos da modernidade tardia. O Leviatã de hoje não é único nem visível; é múltiplo, fluido e, muitas vezes, mais poderoso justamente por sua capacidade de se ocultar sob as vestes do progresso, da eficiência ou da neutralidade tecnológica.

3. Interpretações contemporâneas

Entre as diversas leituras possíveis do novo Leviatã no contexto atual, uma das mais recorrentes emerge das críticas ao neoliberalismo. Sob essa lógica, o Estado é gradualmente esvaziado de suas funções reguladoras, enquanto o mercado passa a ocupar o centro da organização social. Não se trata mais de um Leviatã autoritário e visível, mas de um ente silencioso e eficaz que atua por meio da racionalidade econômica imposta a todos os âmbitos da vida. O cidadão é transformado em gestor de si mesmo; a lógica do desempenho, da produtividade e da autossuficiência substitui qualquer ideia de solidariedade coletiva ou justiça social. Nesse ambiente, o sofrimento se torna individualizado e a exclusão naturalizada, já que a falência do indivíduo é percebida como fruto de sua ineficiência — não como consequência de estruturas injustas. Assim, o Leviatã neoliberal não governa por meio da coerção, mas por meio da autogestão compulsória, onde cada um se vigia, se cobra e se culpa.

Outra vertente interpretativa, fortemente inspirada por autores como Michel Foucault e Gilles Deleuze, aponta para uma configuração pós-moderna do poder, na qual o Leviatã deixa de ser uma figura única, centralizada e imponente, para tornar-se uma rede capilar de forças invisíveis que atravessam os corpos, os discursos, as instituições e os sistemas. O poder já não precisa se apresentar com rosto ou farda: ele se inscreve nas normas, nas rotinas, nas tecnologias e na linguagem. Está nos hospitais, nas escolas, nos algoritmos e nos diagnósticos. Esse Leviatã fragmentado não impõe, ele induz; não ordena, mas molda; não ameaça, apenas direciona — e, por isso, pode ser ainda mais eficaz. Na sociedade da performance e da vigilância voluntária, as estruturas de controle são naturalizadas, travestidas de eficiência, progresso ou conveniência. O Leviatã pós-moderno é difuso, mas profundamente presente, pairando sobre nós como uma névoa que nos condiciona sem que percebamos.

Em paralelo, às urgências do século XXI também trouxeram à tona uma nova face do Leviatã: aquela que se apresenta sob a bandeira da ecologia política. Diante da devastação ambiental e do colapso climático iminente, o Estado é chamado a intervir de forma mais contundente para preservar a vida no planeta. Surge então a figura de um Leviatã verde, responsável por regulamentar, fiscalizar e impor medidas de sustentabilidade — ainda que, para isso, precise limitar liberdades individuais ou intervir diretamente no modo de produção e consumo das sociedades modernas. Essa forma de poder, ainda em construção, levanta dilemas profundos: até onde podemos ou devemos aceitar a força do Estado em nome da preservação ambiental? Como garantir que esse poder seja exercido com base em critérios democráticos e não se converta em mais uma forma de dominação? O Leviatã ecológico, embora necessário diante da catástrofe ambiental, exige um novo pacto político, onde ética, ciência e cidadania se articulem de forma inovadora.

As interpretações contemporâneas, portanto, revelam que o Leviatã não desapareceu com a modernidade — ele apenas se transformou. E em um tempo em que o poder já não se concentra apenas no Estado, mas circula por redes invisíveis, estruturas financeiras e plataformas digitais, é mais urgente do que nunca repensar os mecanismos de controle, os limites da autoridade e as possibilidades de resistência. O Leviatã de hoje veste muitas máscaras. Entendê-lo é o primeiro passo para enfrentá-lo.

4. O novo Leviatã e a democracia

Um dos grandes desafios do novo Leviatã, em suas múltiplas formas, está em compatibilizar a necessidade de ordem e segurança com a preservação da democracia e dos direitos fundamentais. Em tempos de crise — sejam econômicas, sanitárias, ambientais ou morais — a tentação autoritária ressurge com força, sustentada pelo medo e pelo apelo à eficiência. Mas é justamente nesses momentos que os princípios democráticos devem ser mais protegidos.

Em sociedades democráticas, o Estado precisa ser transparente, responsivo e submetido ao controle popular. A força que legitima o poder não pode ser apenas sua eficácia, mas sobretudo sua adesão a valores como a legalidade, a dignidade humana e a igualdade de direitos. Um Estado democrático não se define apenas pela realização de eleições periódicas, mas pela existência de mecanismos permanentes de vigilância social, de liberdade de expressão e de independência entre os poderes.

É nesse ponto que se faz necessário um olhar mais atento sobre o Judiciário, enquanto instituição fundamental para a manutenção da ordem constitucional, mas que, como qualquer poder, não deve estar imune ao controle e ao escrutínio. De acordo com o renomado jurista e professor Luís Roberto Barroso, atualmente presidente de nossa Suprema Corte:

“Todos os poderes da República interpretam uma Constituição e têm o dever de assegurar seu cumprimento. O Judiciário, é certo, detém a primazia da interpretação final, mas não o monopólio da aplicação da Constituição. De fato, o Legislativo, ao pautar sua conduta e ao desempenhar a função legislativa, subordina-se aos mandamentos da lei fundamental, até porque a legislação é um instrumento de realização dos fins constitucionais. Da mesma forma, o Executivo submete-se, ao traçar a atuação de seus órgãos, aos mesmos mandamentos e fins. Os órgãos do Poder Executivo, como órgãos destinados a dar aplicação às leis, podem, no entanto, ver-se diante da mesma situação que esteve na origem do surgimento do controle de constitucionalidade: o dilema entre aplicar uma lei que considere inconstitucional ou deixar de aplicá-la, em reverência à supremacia da Constituição.”

(BARROSO, Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Editora Saraiva, 2004, p. 64).

A lição é clara: nenhum poder, nem mesmo o que julga, pode escapar ao crivo da Constituição. O controle recíproco entre os poderes, a chamada teoria dos freios e contrapesos, é o que garante que o Leviatã moderno — ainda que travestido de toga — não se converta em um senhor absoluto.

Essa preocupação com a crítica e com os limites da autoridade institucional também se expressa na filosofia da ciência. O pensador austríaco Paul Feyerabend, em sua célebre obra Contra o Método, desconstroi a noção de que existam regras universais e imutáveis no campo científico. Ao contrário, argumenta que, em determinados contextos, a desobediência a certos princípios pode ser não apenas válida, mas absolutamente necessária:

“Dada qualquer regra, não importa quão ‘fundamental’ ou ‘racional’, sempre há circunstâncias em que é aconselhável não apenas ignorá-la, mas adotar a regra oposta. (...) Há mesmo circunstâncias — e elas ocorrem com bastante frequência — em que a argumentação perde seu aspecto antecipador e torna-se um obstáculo ao progresso.”

(FEYERABEND, Contra o Método, 2ª ed., trad. Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Editora UNESP, p. 38).

Essa passagem ecoa fortemente no debate jurídico contemporâneo. Às vezes, o apego formal às normas, especialmente quando manipuladas por uma elite tecnocrática ou por estruturas rígidas, torna-se um obstáculo à realização da justiça material. É necessário, portanto, que o controle dos atos administrativos — inclusive os oriundos do Judiciário — possa ser exercido pelos demais Poderes da República, como expressão de um sistema verdadeiramente democrático, dinâmico e plural.

Nesse sentido, o Leviatã democrático não pode ser cego nem surdo às exigências de seu tempo. Precisa reconhecer que sua legitimidade depende não da força que exerce, mas da escuta que pratica e da prestação de contas que oferece. Um poder que não se deixa questionar já não serve à democracia, mas sim à sua negação.

5. Conclusão

A Constituição Cidadã: a liberdade de imprensa e a existência de instituições independentes são essenciais para evitar que o novo Leviatã se torne autoritário. Um dos grandes desafios do novo Leviatã é equilibrar a necessidade de ordem e segurança com a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Em sociedades democráticas, o Estado deve ser transparente, responsivo e sujeito ao controle cidadão, evitando a concentração excessiva de poder. A participação cidadã, a liberdade de imprensa e a existência de instituições independentes são essenciais para evitar que o novo Leviatã se torne autoritário.

O conceito do novo Leviatã reflete as transformações do Estado moderno e os desafios do mundo contemporâneo. Se, por um lado, o Estado continua a ser uma instituição essencial para garantir a ordem e o bem-estar, por outro, ele enfrenta críticas e desafios relacionados ao autoritarismo, à desigualdade, à tecnologia e à globalização.

O novo Leviatã pode ser visto como uma entidade multifacetada, que assume diferentes formas dependendo do contexto histórico e político. A questão central é como garantir que o poder do Estado seja exercido de maneira justa, democrática e responsável, sem sacrificar a liberdade e a dignidade humana.

A necessidade do controle dos atos administrativos judiciais pelos outros Poderes da República não é apenas uma exigência jurídica, mas um imperativo democrático. Quando o Poder Judiciário, sob o argumento de imparcialidade ou tecnicismo, exerce suas competências administrativas de forma ilimitada e sem prestação de contas, abre-se espaço para a opacidade, para os abusos e para a perpetuação de privilégios institucionais.

O sistema republicano exige mais do que a separação formal entre os poderes: exige uma cultura de responsabilização mútua, onde cada instância estatal reconheça que o poder que exerce não é próprio, mas delegado pelo povo. O Judiciário, embora resguardado por garantias fundamentais de autonomia, não pode transformar tais garantias em escudos para escapar ao debate público ou à fiscalização externa. A autonomia não pode ser confundida com soberania.

Portanto, se quisermos evitar que o Leviatã contemporâneo assuma feições autoritárias ou tecnocráticas, precisamos fortalecer os mecanismos de controle democrático sobre todos os poderes — inclusive aquele que julga. A cidadania plena exige que a Justiça, além de ser cega, seja também humilde, acessível, aberta ao diálogo e disposta a prestar contas. Afinal, em um Estado verdadeiramente democrático, nem mesmo o Leviatã pode viver acima da lei.

Mário Goulart Maia
Sócio do Kohl & Maia Advogados.

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