Algo vem despertando, curiosamente, uma grande confusão e debate no meio jurídico, em um assunto que já foi definido pelo STF. Recentemente, através da ADPF 279, o STF decidiu que a assistência judiciária não é atribuição exclusiva dos estados (ente federativo), realizada através das respectivas defensorias públicas.
Nas palavras da relatora, ministra Carmen Lúcia: “Precisamos de um sentimento constitucional que possa aumentar a efetividade constitucional dos direitos fundamentais”. A decisão da Suprema Corte vai ao encontro do estabelecido pelo constituinte, ao considerar a advocacia (art. 133) essencial à administração da justiça.
Essa previsão constitucional visa dar efetividade aos direitos garantidos pela própria Constituição, especialmente aos direitos fundamentais dos cidadãos vulneráveis.
Embora se reconheça que muitas defensorias públicas no Brasil, como a do estado do Rio de Janeiro, prestam um serviço de alta qualidade, o que foi esclarecido pelo Supremo Tribunal Federal é que o respectivo órgão estadual não possui exclusividade de atuação na defesa da população de baixa renda.
Uma possível confusão decorre do fato de que, em alguns estados, como São Paulo, a advocacia atua de maneira complementar à Defensoria, em âmbito estadual, em decorrência da carência de membros e da busca de maior efetivação da prestação do serviço jurídico.
Esse, porém, não foi o caso julgado pelo STF. Na Corte, o debate foi especificamente sobre a possibilidade de o município criar um órgão municipal para atuação em prol da população de baixa renda. Não se trata de complementaridade de órgão estadual, mas de complementaridade do serviço, através da competência concorrente entre os entes quando da prestação do serviço advocatício.
Há, portanto, uma competência concorrente que permite a criação, pela municipalidade, de estabelecer e coordenar a atividade de prestação de serviço ao cidadão, sem prejuízo da atuação da Defensoria estadual. O termo ‘dativo’, por ter sido utilizado durante muito tempo para designar os advogados que, via de regra, atuam em âmbito estadual de maneira complementar à Defensoria Pública, ou por determinação judicial, causa uma suposta confusão.
Nesse sentido, por mais que a Defensoria Pública do estado seja efetiva, como a do Rio de Janeiro, ainda assim, o município pode criar a sua assistência jurídica, inclusive através de convênios com terceiros.
Sobre a questão orçamentária, vale lembrar que cabe à municipalidade o custeio do serviço, sem prejuízo ao orçamento estadual designado aos órgãos estaduais, não havendo o que se falar em prejuízo financeiro às defensorias estaduais. Não por outra razão, os municípios passaram a se valer de convênios com advogados locais, através da OAB, para a implementação dos serviços, visando a efetividade da proteção dos direitos dos cidadãos.
O que se apresenta como louvável, no entanto, é um trabalho conjunto, de parceria, baseado na boa relação entre as instituições, estados e municípios, ou, entre a assistência jurídica dos municípios (advogados) e a defensoria pública da localidade, o que não é impeditivo para a atuação do município.
Outro fator importante decidido pelo STF tem relação com a participação da OAB, entidade designada pelo legislador federal para a proteção dos direitos fundamentais, a teor da lei federal 8.906/94, através de convênios firmados com os municípios, garantindo a eficácia do estabelecido pela Corte.
Essa legitimidade de atuação e participação da Ordem dos Advogados do Brasil foi, também, objeto da referida ADPF, tendo o STF a considerado compatível com a Constituição, o que mereceu esclarecimento da relatora:
“Como se vê, trata-se de situação substancialmente distinta do caso ora em exame, em que a assistência judiciária prevista pela Lei Municipal não pretende afastar o dever ou substituir a atividade desempenhada pela Defensoria Pública estadual, senão que complementá-la. Nessa esteira, não havendo qualquer óbice a que a atividade de assistência judiciária gratuita aos vulneráveis seja prestada por outros entes, em complemento à atuação da Defensoria Pública, afasta-se o argumento de que a legislação impugnada violaria o artigo 134 da Constituição.”
Esse entendimento apenas corrobora a função social da advocacia, seja privada, ou pública. Nesse sentido, trecho do acórdão da lavra do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luís Felipe Salomão, nos autos do Recurso Especial 1.423.825/CE:
“Nesse passo, anoto que a Constituição da República de 1988, ao preceituar ser o advogado indispensável à administração da justiça (art. 133), reconheceu a função social da advocacia, manifestada em seu papel fundamental de contribuição e fortalecimento do Estado Democrático de Direito, porquanto garantidora dos direitos e liberdades públicas previstos em todo o ordenamento jurídico. Deveras, "a advocacia não é apenas um pressuposto do Poder Judiciário. É também necessária a seu funcionamento [...] nada mais natural, portanto, que a Constituição o consagrasse e prestigiasse, se se reconhece no exercício do seu mister a prestação de um serviço público" (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 613). Como bem revela a lei 8.906/94, o advogado, no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social, e seus atos constituem múnus público (art. 2º)...”
Verifica-se, portanto, um grande avanço do STF na proteção dos direitos fundamentais e dos cidadãos mais vulneráveis.