Em um dos primeiros capítulos do seu curso de Direito Empresarial, Fábio Ulhoa Coelho, certamente influenciado pela análise econômica do direito, apresenta a visão do direito como um custo empresarial. Diante da necessidade de organização dos fatores de produção, para o empresário, as normas jurídicas que imputam obrigações empresariais, como as normas tributárias, trabalhistas e as obrigações de regularização da empresa são elementos que impactam diretamente naquele que é o maior objetivo da atividade empresarial: o lucro.
Justamente porque as normas jurídicas obrigacionais que incidem sobre a atividade empresarial podem ser vistas como um custo é que a percepção do empresário se direciona para uma tentativa de negociar com o direito, no sentido de fazer com que esse custo possa ser mais bem absorvido no cotidiano da empresa.
Essa negociação constante vai gerar uma tensão forte entre a necessidade de manutenção da atividade empresarial com geração de lucro e a regulamentação legal da atividade do empresário, ora conformando a empresa à sua função social, ora utilizando como fonte de arrecadação para financiamento das políticas públicas do país. Para além dessa questão, as altas taxas de juros praticadas no mercado pelo setor bancário, altamente concentrado no Brasil, também se tornam uma tensão jurídica para a atividade empresarial, uma vez que os longos financiamentos tornam os contratos bancários relacionais, ou seja, contratos de longa duração que não conseguem reproduzir ao longo do seu cumprimento, as condições primitivas de contratação.
Ao longo de décadas, os empresários vêm utilizando o direito judicializado como mecanismo de atenuação desses conflitos surgidos dentro da esfera pública econômica. Nos últimos vinte anos, todavia, houve uma intensa modificação de paradigma que deve ser percebida pelo advogado na sua função de apresentar uma solução para a crise empresarial. O objetivo desse artigo é analisar justamente essa mudança de paradigma.
1. O paradigma do conflito na gestão jurídica da crise na empresa
O paradigma do conflito na gestão da crise jurídica da empresa iniciou-se em 1945 com o decreto 7.661, quando o modelo da concordata negocial foi substituído pela concordata judicial. Deu-se ao Judiciário a palavra sobre quem continuava no mercado, silenciando a negociação entre devedor e credores que caracterizava o regime da lei 2.024 de 1908. Durante décadas, os processos de falência e concordata suscitavam o horror no mercado, seja pela sua ineficiência, seja pela corrupção que gravitava em torno da busca pela sobrevivência empresarial ou pelo adimplemento dos credores. Mas foi na década de 80 que a utilização do Judiciário para manter a empresa funcionando ganhou mais relevância, tendo em vista a instabilidade econômica que decorria da hiperinflação e dos choques heterodoxos usados para conter o fenômeno inflacionário. Inicialmente, as demandas eram concentradas nas revisões de contratos administrativos gestados nos vultosos investimentos públicos feitos no processo de crescimento do país a partir de grandes obras públicas como as hidroelétricas e as grandes estradas. A reboque, vinham as ações de revisão dos contratos bancários, ainda muito timidamente, por ausência de regulamentação específica setorial. Vigorava, nesse campo, ainda plenamente o pacta sunt servanda, onde havia pouca margem de manobra para interesses revisionais dos players de mercado.
No final da década de 80, o advento de uma nova constituição, abrindo espaço para uma nova ordem jurídica, viria mudar definitivamente a forma como o empresariado utilizaria o Judiciário para diminuir o custo das normas jurídicas sobre a atividade econômica. A CF/88 inaugurou um novo sistema tributário que em muito se chocava com as normas infraconstitucionais sobreviventes do regime anterior, abrindo espaço para contestação da existência de relações jurídico-tributárias não recepcionadas pela nova ordem. A instabilidade normativa bastante comum em transições de sistemas aumentou exponencialmente o uso de teses para limitar a ação tributária dos entes federativos, sobretudo nas incertezas provenientes das regulações posteriores dos tributos previstos no texto constitucional.
No âmbito do setor privado, a desastrosa previsão de limitação da taxa de juros bancária a 12% no texto original da constituição revigorou a tese da lei de usura e deu origem a inúmeras ações que buscavam limitar o patamar das altíssimas taxas praticadas pelos bancos. A revisão contratual ganhou ainda mais impulso com a vigência do CDC que, com uma visão expansiva dos seus destinatários, incluindo no âmbito de proteção as pessoas jurídicas, sedimentou a relativização do pacta sunt servanda. Na esteira da discussão dos juros, a partir da década de 90 surgiram teses que se espraiavam para outros problemas como o anatocismo ou a cumulação de incidências como correção inflacionária do débito com comissão de permanência.
No setor trabalhista, um dos grandes custos que incidem sobre a atividade empresarial, o jogo era diferente: a CF/88 reforçou o rol de direitos individuais dos trabalhadores, além de aumentar a competência da justiça do trabalho. Isso fez com que as ações trabalhistas contra os empregadores tivessem um aumento A ampliação dos direitos trabalhistas, somada ao fortalecimento da Justiça especializada e à facilitação do acesso ao Judiciário — por meio da gratuidade processual e da hipossuficiência presumida do trabalhador —, fez com que o ambiente de contratação de mão de obra se tornasse ainda mais arriscado sob a perspectiva empresarial. Em um cenário de elevada litigiosidade, a contratação passou a envolver não apenas o custo direto da remuneração e dos encargos sociais, mas também o custo indireto decorrente da possibilidade de futuras demandas judiciais.
A instabilidade das decisões judiciais em diversos temas que representavam a esperança de empresários de se reestruturar em momentos de crise, com o questionamento dos contratos e dos tributos que representavam parcela significativa do seu custo, tornava as postulações perante o Judiciário um jogo incerto que se traduzia em insegurança jurídica para o ambiente de negócios sempre muito arredio a incertezas econômicas.
No início dos anos 2000, o STJ começou a barrar as investidas empresariais contra as instituições financeiras, sobretudo na questão das teses a priori de cálculos indevidos de juros, aumentos do dólar a incidir sobre contratos (cláusula rebus sic stantibus) e taxas bancárias de diversos tipos, o que logo seria replicado nos tribunais e instâncias de primeiro grau.
Já no contencioso tributário, as decisões do Supremo Tribunal, permitindo a rescisão da coisa julgada quando no controle de constitucionalidade havia manifestação do pleno contrária à tese defendida na ação proposta, colocaram os empresários em stand by quanto ao patrocínio de teses que não haviam sido decididas definitivamente pelo STF em controle de constitucionalidade, diminuindo drasticamente as aventuras jurídicas em torno de temas sem pacificidade e reduzindo as suspensões de pagamento sob o regime precário das liminares.
No entanto, o sistema econômico precisava se rearranjar em torno de soluções que permitissem uma gestão da crise empresarial sem as incertezas inerentes ao modelo puramente contencioso. Esses rearranjos só fariam sentido se houvesse uma redução do custo empresarial pelo menos durante o momento mais agudo da crise da empresa.
2. Modificações legislativas na gestão da crise empresarial
O primeiro grande marco na mudança de paradigma da gestão da crise empresarial no Brasil foi a promulgação da lei 11.101, de 2005, que reformulou profundamente o sistema falimentar então vigente. Com ela, a tradicional concordata foi extinta e substituída pela recuperação judicial, um instituto concebido para promover a superação da crise econômico-financeira das empresas, com vistas à preservação da atividade produtiva, dos empregos e da arrecadação de tributos. Do ponto de vista da construção jurídica, essa nova legislação incorporou expressamente ao ordenamento o princípio da preservação da empresa, que passou a orientar a atuação dos atores jurídicos e econômicos no tratamento da insolvência. Essa mudança de narrativa legal abriu espaço para que tanto o Legislativo quanto o Judiciário buscassem, no interior do próprio sistema, mecanismos de proteção e estímulo à continuidade da atividade empresarial. Nos primeiros anos de vigência da nova lei, entretanto, a recuperação judicial foi utilizada com cautela. O desconhecimento por parte dos empresários quanto à aplicação prática do novo instituto, bem como a incerteza sobre a postura do Judiciário frente às suas inovações, contribuíram para essa timidez inicial. No entanto, com o passar do tempo, e à medida que o Poder Judiciário foi consolidando entendimentos sobre temas sensíveis — como os limites de sua intervenção nos planos de recuperação, a admissibilidade da recuperação mesmo diante de débitos tributários, e a proteção de bens essenciais à atividade empresarial contra atos de constrição —, o instituto passou a ser mais largamente utilizado, adquirindo maior previsibilidade e segurança.
A segunda grande mudança veio com o CPC/15, em que novamente a mudança de paradigma em torno do conflito é ressaltada, desta vez com ênfase na cooperação entre as partes e na busca por soluções consensuais dentro do próprio processo. Trata-se de uma inflexão significativa do modelo tradicional de jurisdição, fortemente marcado pela rigidez procedimental e pela centralidade da figura do juiz, para uma concepção mais moderna e dialógica do processo, em que as partes assumem protagonismo na construção da solução para o litígio. O atual CPC consagra expressamente o princípio da cooperação (art. 6º), reforça a mediação e a conciliação como formas preferenciais de resolução de conflitos, e introduz, com grande destaque, mecanismos inovadores como o negócio jurídico processual (art. 190), que permite às partes, de comum acordo, convencionar sobre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, desde que o objeto do ajuste diga respeito a direitos que admitam autocomposição.
No âmbito da crise empresarial, essa ferramenta apresenta enorme potencial. Permite, por exemplo, que empresas em crise estabeleçam com seus credores cláusulas procedimentais voltadas à racionalização do trâmite, à limitação de incidentes protelatórios e à definição de prazos e etapas específicas, contribuindo significativamente para a celeridade e previsibilidade do desfecho da controvérsia. Ao mesmo tempo, o negócio jurídico processual reforça a autonomia das partes e se coaduna com a lógica negocial que permeia os processos de reestruturação econômica.
Já no subsistema trabalhista, a grande mudança foi a reforma implementada em 2017, por meio da lei 13.467. Esta reforma representou um marco na tentativa de reequilibrar a relação entre capital e trabalho, a partir de uma ótica mais irmanada com os princípios da autonomia da vontade coletiva, da segurança jurídica e da previsibilidade das relações contratuais, diminuindo a participação política da vontade legislativa nas relações individuais. Dentre as alterações de maior impacto, destacam-se a prevalência do negociado sobre o legislado em temas sensíveis da relação de trabalho, a regulamentação mais clara do trabalho intermitente, a limitação da responsabilidade do empregador por danos extrapatrimoniais, e a imposição de ônus processuais ao reclamante que litigar de má-fé ou for sucumbente em pedidos.
No aspecto tributário, a regulamentação da transação tributária, sobretudo no âmbito Federal, representa mais um marco relevante na consolidação de um novo paradigma de gestão jurídica da crise empresarial. Por muito tempo, o Direito Tributário brasileiro operou sob uma lógica rigidamente legalista e não negocial, em que a dívida fiscal era tratada como obrigação inflexível, sujeita a uma máquina de cobrança compulsória, com reduzidos instrumentos de diálogo entre o contribuinte e o Fisco. Esse cenário começou a se alterar com a promulgação da lei 13.988, de 14/4/20, que regulamentou, no âmbito da União, a possibilidade de transação resolutiva de litígios tributários. Essa lei representa uma inflexão importante: pela primeira vez, o ordenamento jurídico passou a admitir que o crédito tributário possa ser objeto de concessões recíprocas entre a administração fiscal e o contribuinte, desde que respeitados os critérios de interesse público e de capacidade contributiva. Embora prevista no CTN desde 1966, a transação não era regulamentada e assim que o foi passou a ser usada em outros entes federativos. Essa regulamentação tardia é um reflexo do paradigma conflituoso do direito empresarial sendo superado por uma nova percepção de como deve atuar o ordenamento jurídico na gestão da crise empresarial.
No hiato de vinte anos, houve uma superação lenta, mas constante e substancial da ideia de que a superação da crise econômica, usando o direito como ferramenta, teria uma face necessariamente conflituosa. A mudança de paradigma para a negociação em torno das dificuldades empresariais mudou a forma de se advogar neste ramo do Direito.
3. O paradigma da negociação na gestão jurídica da crise na empresa
Todas as alterações legislativas apontadas que ocorreram no espaço de tempo de vinte anos possuem algo em comum: a solução da crise empresarial passa pela negociação que pode se dar se forma endógena ou exógena a um processo que tramita no Judiciário.
Atuar como advogado na tentativa de conter os danos decorrentes da crise significa conhecer quais os mecanismos que o ordenamento jurídico põe à disposição dos empresários para que se faça uma negociação individual ou coletiva com credores e com agentes do mercado dispostos a salvaguardar a permanência da empresa na vida econômica.
A recuperação judicial e a extrajudicial aparecem como uma forma de negociação coletiva em torno de um plano em que os credores podem participar de forma ativa e onde o Judiciário, na maioria das vezes, é o homologador das vontades concordantes sem participar do mérito dos acordos travados no processo.
A recuperação extrajudicial, mais do que a judicial, aparece como um instrumento interessante de renegociação da dívida bancária sem que se apele para teses que já não encontram sustentação no Poder Judiciário. Ainda que se diga que há aqui a dependência da vontade dos credores para que o plano apresentado pela empresa, há uma abertura negocial importante com diversos atores trabalhando juntos para evitar um aprofundamento da crise.
No mesmo contexto da crise empresarial, a transação tributária assume um papel estratégico, sobretudo para empresas que estejam sob a incidência da recuperação judicial ou extrajudicial. Por meio dela, empresas em dificuldades financeiras podem renegociar seus débitos fiscais com maior flexibilidade, obtendo descontos sobre encargos legais, alongamento de prazos e até mesmo remissão parcial da dívida, conforme critérios estabelecidos pela PGFN - Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
A utilização desse instituto representa um avanço expressivo frente ao antigo modelo de parcelamentos padronizados e inflexíveis, que muitas vezes inviabilizavam a regularização fiscal e impediam a continuidade da atividade empresarial.
Além disso, a transação tributária favorece a integração entre as esferas judicial e administrativa, contribuindo para a redução da litigiosidade, a racionalização dos recursos estatais e a previsibilidade no ambiente de negócios. Ao reconhecer que nem todo crédito é recuperável de forma coercitiva, o Estado passa a atuar com racionalidade econômica e fiscal, o que, por sua vez, oferece ao empresário um espaço legítimo de diálogo institucional para equacionamento de passivos.
No mesmo cenário de valorização da negociação como eixo estruturante da gestão da crise empresarial, merece especial destaque o campo das relações de trabalho, sobretudo após a entrada em vigor da reforma trabalhista, introduzida pela lei 13.467/17. A nova legislação ampliou significativamente o espaço da autonomia coletiva e individual na regulação da relação laboral, conferindo aos instrumentos de negociação — especialmente os acordos e convenções coletivas — força normativa superior à da legislação em diversos aspectos, desde que respeitados os direitos indisponíveis previstos na CF/88.
Essa inflexão favoreceu a constituição de um ambiente mais propício à solução consensual de conflitos entre empregadores e empregados, inclusive em situações de crise financeira que demandem reestruturação de quadros, revisão de jornadas, ajustes salariais ou modificação de benefícios. Empresas em situação crítica passaram a contar com um caminho jurídico legítimo e mais previsível para, mediante diálogo com sindicatos representativos, construir soluções pactuadas que viabilizem sua continuidade, evitando demissões em massa ou encerramentos abruptos de atividade.
Paralelamente, o desenvolvimento de programas de compliance trabalhista passou a ocupar papel central na estratégia de mitigação de riscos e prevenção da judicialização. A adoção de políticas internas claras, treinamentos periódicos, canais de denúncia eficazes, revisão contratual contínua e auditorias periódicas são exemplos de boas práticas que têm se mostrado eficazes não apenas para a redução de litígios, mas também para o fortalecimento da cultura organizacional baseada na legalidade, transparência e boa-fé.
Tais medidas, quando integradas a uma postura negocial proativa por parte da empresa, promovem a estabilidade das relações laborais e reforçam o ambiente de confiança necessário para a superação de crises. Além disso, contribuem diretamente para a diminuição do passivo oculto trabalhista, fator frequentemente determinante na inviabilidade econômica de empresas em processo de recuperação.
Não queremos dizer com isso que os litígios não são mais necessários no âmbito das relações empresariais, sobretudo em momentos de crise. O direito de ação continua tendo sua importância no questionamento de taxas de juros contratadas acima das regras de mercado, dos tributos que não possuam legitimidade constitucional ou legal ou de autuações nulas de pleno direito. Mas essas demandas por si só não vão resolver o problema da gestão da empresa que está passando por um momento difícil, próprio do regime de mercado, e que precisa mais do que uma vitamina para se restabelecer. Precisa de uma cirurgia profunda que lhe restaure o potencial produtivo.