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Política nacional de biocombustíveis: Desafios da equidade na busca por uma economia descarbonizada

RenovaBio visa reduzir emissões via CBIOs, mas concentra ônus nos distribuidores, gera insegurança jurídica e viola a isonomia.

2/5/2025

RenovaBio - Política Nacional de Biocombustíveis, instituída pela lei 13.576/17, é uma política pública focada na promoção do uso de biocombustíveis, que tem por objetivo contribuir com o cumprimento dos compromissos ambientais assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris, com a expansão da comercialização de biocombustíveis e a redução da intensidade de carbono da matriz de transportes brasileira. 

O programa funciona mediante o estabelecimento de metas anuais de descarbonização estipuladas para distribuidores de combustíveis, as quais devem ser cumpridas por meio da aquisição de CBIOs - Créditos de Descarbonização, consistentes em ativos ambientais que correspondem a uma tonelada de dióxido de carbono equivalente. Os CBIOs, por sua vez, são emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis que devem comprovar sua eficiência ambiental a partir de um processo de certificação. A ideia central é que esse funcionamento aumente a presença de biocombustíveis na matriz energética do país, por se revelar uma fonte mais limpa e sustentável no setor de combustíveis.

No entanto, passados cinco anos de sua regulamentação, a implementação do programa levanta questionamentos quanto à sua constitucionalidade e ao efetivo alcance de seus objetivos, sobretudo no que toca à equidade na busca por uma economia descarbonizada, e à falta de segurança jurídica decorrente da especulação no preço dos CBIOs.

Objetivo de compensar emissões alheias à cadeia de biocombustíveis

Apesar de o RenovaBio ser formalmente a Política Nacional de Biocombustíveis, sua finalidade prática é promover a descarbonização da cadeia de combustíveis fósseis.

Esse fato é evidenciado pelo critério empregado para a definição das metas compulsórias de descarbonização, de acordo com o qual a quantidade de CBIOs - Créditos de Descarbonização a ser adquirida pelos distribuidores de combustíveis em geral deve ser calculada proporcionalmente ao volume de combustíveis fósseis comercializados, e não em razão da comercialização de biocombustíveis em si.

Essa lógica difere dos padrões internacionais de compensação ambiental, segundo os quais a descarbonização é estruturada dentro das respectivas cadeias produtivas. Nesses modelos, empresas que operam com maior eficiência ambiental, dentro de um setor específico, são autorizadas a gerar créditos, enquanto aquelas que excedem determinados limites de emissão, no mesmo setor, devem adquiri-los. 

Alterar esse padrão, com a imposição de obrigações de uma cadeia sobre outra, pode gerar sobrecargas e distorções, o que compromete a proporcionalidade da política ambiental e gera desequilíbrios econômicos relevantes sobre os agentes envolvidos e, consequentemente, uma ruptura com o princípio da isonomia.

Concentração de obrigações e violação ao princípio da isonomia

Além disso, a lei do RenovaBio estabelece aos distribuidores de combustíveis em geral a responsabilidade de compensar a emissão de GEEs - gases de efeito estufa de todos os elos da cadeia de combustíveis fósseis, por meio da aquisição de CBIOs. Essa concentração de obrigações em um único elo da cadeia gera um desequilíbrio estrutural na política pública, por transferir ônus desproporcionais e sem critério técnico ou correlação direta com a efetiva contribuição para as emissões.

Essa abordagem, que responsabiliza os distribuidores de combustíveis por toda a cadeia de emissões de combustíveis fósseis, revela uma desconexão entre a política e a realidade das emissões efetivas. Ao impor esta obrigação aos distribuidores, o programa ignora a distribuição real das emissões ao longo da cadeia produtiva, o que sobrecarrega financeiramente os distribuidores e, simultaneamente, deixa de responsabilizar os maiores emissores. Com isso, o programa, ao contrário do que se propõe, incentiva a não participação dos demais elos nos esforços da descarbonização.

Em que pese os distribuidores de combustíveis sejam responsáveis por apenas 0,5% das emissões de GEEs no ciclo do poço à roda da cadeia de combustíveis fósseis, são obrigados a descarbonizar os 99,4% das emissões da cadeia, que decorrem da exploração do petróleo e do uso do combustível pelo consumidor final.

Modelos internacionais de regulação da matriz de combustíveis, como o LCFS - Low Carbon Fuel Standard da Califórnia ou o RFS - Renewable Fuel Standard dos Estados Unidos, adotam uma lógica diametralmente oposta à do RenovaBio: as obrigações de emissão e aquisição de créditos são distribuídas entre diferentes elos da cadeia, com foco nos agentes emissores ou que detenham maior poder de decisão sobre a composição da matriz energética.

A concentração da responsabilidade de descarbonização exclusivamente sobre um elo da cadeia vem fazendo com que muitos distribuidores, especialmente os pequenos e médios, tenham que encerrar suas atividades, por não suportarem o peso econômico da medida. Este efeito evidencia de maneira inquestionável a violação ao princípio da isonomia, previsto no art. 5º da CF/88, e ao princípio da livre iniciativa, consagrado no art. 170 da CF/88.

Especulação, insegurança jurídica e penalização econômica

Outro ponto crítico reside na ausência de mecanismos de controle sobre o mercado dos CBIOs, que são negociados no balcão da B3 - Bolsa de Valores do Brasil. Isso pois, tanto agentes obrigados quanto não obrigados podem adquirir e comercializar esses créditos, sem qualquer regulação quanto à quantidade ofertada ou ao momento de sua oferta no mercado. 

Essa dinâmica confere aos emissores ampla liberdade para reter ou liberar os CBIOs conforme critérios unicamente mercadológicos, favorecendo práticas especulativas e distorções no preço dos ativos, o que compromete a previsibilidade e a estabilidade necessárias ao cumprimento das metas compulsórias, por inviabilizar o planejamento financeiro dos distribuidores que são obrigados a adquirir os ativos.

A título ilustrativo, ao longo de 2023 e 2024, o valor dos CBIOs negociados na B3 oscilou entre R$ 15 e R$ 209 por unidade, resultando em uma variação superior a 1.200% — um indicativo claro da especulação.

Nesse contexto, o próprio TCU - Tribunal de Contas da União, por meio do relatório de auditoria TC 015.561/2021-6, ponderou a excessiva especulação na comercialização dos CBIOs, decorrente de elementos estruturais, tais como: (i) a inexistência de prazo de validade para os créditos, o que permite sua retenção indefinida; (ii) a participação irrestrita de agentes não obrigados no mercado; e (iii) a liberdade conferida aos emissores primários para escolher quando e quantos créditos disponibilizar. 

Diante dessa combinação de fatores, que gera um desequilíbrio entre oferta e demanda, resultando em oscilações de preço e impondo ônus desproporcional aos distribuidores, o TCU recomendou para o valor referencial de R$ 40,00 para o ativo, por ser esse montante suficiente para remuneração de todos os elos envolvidos e o alcance das finalidades pretendidas pelo Programa.

No entanto, até que esse ponto seja definitivamente regulado, muitos distribuidores não têm conseguido cumprir com as metas compulsórias de aquisição de CBIOs, o que tem resultado na aplicação das penalidades previstas na lei, consistentes em multas elevadas (que variam de R$ 100 mil a R$ 50 milhões de reais), sanções administrativas e até revogação da autorização de funcionamento dos distribuidores

Mais recentemente, em 30/12/24, foi promulgada a lei 15.082/24, que alterou a lei do RenovaBio para prever que, o não atendimento à meta compulsória de recolhimento de CBIOs constitui crime ambiental previsto no art. 68 da lei 9.605/98, sendo passível de detenção, de um a três anos, e multa.

O resultado deste cenário é o aumento da concentração econômica do setor de combustíveis, já que que pequenos e médios distribuidores, sem capacidade financeira para arcar com os custos decorrentes do cumprimento de metas, são levados à falência, gerando, inclusive, riscos de desabastecimento em regiões onde apenas os pequenos e médios distribuidores atuam.

A ausência de mecanismos regulatórios para estabilizar os preços dos CBIOs, aliada à concentração da obrigação de descarbonização em um único elo da cadeia, gera um ambiente de insegurança jurídica e risco econômico que compromete a previsibilidade necessária à atividade empresarial. 

Diante desse cenário, mostra-se urgente a adoção de instrumentos regulatórios mais robustos, a exemplo do que vem sendo implementado na União Europeia, por meio do seu EU ETS - Sistema de Comércio de Emissões, que prevê diversos mecanismos para evitar a especulação excessiva e controlar a volatilidade dos preços dos créditos de carbono.

Discussão acerca do real lastro dos CBIOs

Relevante destacar ainda a importância da discussão acerca do lastro real dos CBIOs. Os Créditos de Descarbonização são emitidos com base em uma estimativa de eficiência ambiental atribuída no momento da certificação do produtor, sem vínculo com a produção contínua ou com resultados efetivos de redução de emissões. 

Isso quer dizer que não há exigência rigorosa de que a geração de CBIOs corresponda a emissões efetivamente evitadas. Essa desconexão entre emissão do crédito e impacto ambiental concreto coloca em dúvida o valor do CBIO como instrumento de compensação de emissões.

Além disso, os emissores primários de CBIOs — produtores e importadores de biocombustíveis — não estão sujeitos a qualquer obrigação de reinvestimento ambiental dos valores obtidos pela venda dos créditos. A legislação não exige, por exemplo, que os recursos sejam aplicados em aumento da produção, inovação tecnológica, reflorestamento ou redução da pegada de carbono. 

Assim, o programa permite a apropriação privada de recursos com fins supostamente ambientais, sem garantia de retorno ambiental efetivo, o que distorce sua finalidade e agrava o desequilíbrio entre os agentes da cadeia.

Considerações finais

A forma como o RenovaBio foi estruturado, com a concentração de obrigações em um único elo da cadeia de combustíveis, sem critério técnico proporcional e sem mecanismos de correção de mercado, viola princípios constitucionais como a isonomia, a proporcionalidade e o poluidor-pagador. 

Por tais razões, o TCU - Tribunal de Contas da União, por meio do relatório de auditoria TC 015.561/2021-6, já alertou para as falhas estruturais do programa, sugerindo, inclusive, a adoção de limites de preço de referência e maior transparência na definição de metas.

Some-se a isso que, em 5/2/24 o PRD - Partido Renovação Democrática ingressou com a ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 7596, perante o STF, contestando a parte da lei que obriga exclusivamente os distribuidores de combustíveis a comprovarem a redução de emissão de gases do efeito estufa, por meio da aquisição de CBIOs.

Em sede de liminar, o PRD pediu suspensão de parte da lei 13.576/17, sobretudo pois, conforme seus dispositivos, os distribuidores que descumprirem as metas obrigatórias anuais de descarbonização estão sujeitos ao pagamento de multas que variam de R$ 100 mil a R$ 50 milhões, além da revogação da autorização de funcionamento.

Em que pese a apreciação da medida liminar ter sido postergada pelo relator ministro Nunes Marques, a questão continua sob debate no STF, além de ser alvo de fiscalização do TCU, por meio de seu relatório anual de fiscalização de políticas públicas, no qual são emitidas orientações anuais de melhoria do programa.

Não obstante, tramita perante o Senado Federal o PL 2.798 de 9/7/24, de autoria do senador Eduardo Gomes (PL), que tem por objeto alterar a lei do RenovaBio, a fim de transferir a obrigação de compra dos Créditos de Descarbonização aos produtores de derivados de petróleo. 

A tramitação do PL está na primeira casa (Senado), de modo que ainda poderá ser objeto de emendas parlamentares ou projetos de lei substitutivos, visando até mesmo adequar o programa às regras de um mercado de carbono, por meio da distribuição das obrigações de limites de emissões e aquisição de créditos proporcionalmente entre os diferentes elos da cadeia.

Enquanto isso, diversos distribuidores de combustíveis têm recorrido ao Poder Judiciário para questionar a isonomia da lei do RenovaBio, notadamente quanto à imposição de metas compulsórias de aquisição de CBIOs sob um único elo da cadeia, dissociadas das emissões efetivamente geradas por suas atividades. Inclusive, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região noticiou que, em 7/11/24, sua 6ª turma deu provimento ao agravo de instrumento 1035728-17.2023.4.01.0000 da Biopetro Distribuidora de Combustíveis, para autorizar a conversão do valor depositado em juízo em CBIOs, para fins de cumprimento da meta compulsória de descarbonização dos anos de 2022 e 2023, em razão da elevada volatilidade na precificação dos ativos1.

Conclui-se, portanto, que há a necessidade de se buscar melhorias na Política Nacional de Biocombustíveis, resgatando-a como um verdadeiro instrumento de política climática, justiça regulatória, equilíbrio econômico e coerência ambiental. Sem isso, o programa continuará a transferir custos ambientais a agentes que não detêm responsabilidade proporcional pela poluição, além deixar de impor qualquer contrapartida de investimento dos valores advindos dos Créditos de Descarbonização em políticas ambientais.

__________

1 https://www.trf1.jus.br/trf1/noticias/valor-depositado-em-juizo-por-distribuidora-de-combustiveis-e-aceito-para-atender-metas-do-renovabio-#:~:text=A%206%C2%AA%20Turma%20do%20Tribunal,da%20meta%20compuls%C3%B3ria%20do%20RenovaBio 

Mahe Moreira Maia
Secretária-Geral Adjunta da Comissão de Crédito de Carbono da OAB-DF, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduada em Direito Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Law) e pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC-SP. Membro do Grupo de Estudos e Projeto de Pesquisa "ASPECTOS JURÍDICO-TÉCNICO-ECONÔMICOS DO AGRONEGÓCIO" do CEDES.

Luísa Barreto Corrêa da Veiga
Presidente da Comissão de Crédito de Carbono da OAB Nacional, Presidente da Comissão de Crédito de Carbono da OAB-DF, sócia do BCV Law, especialista em ESG pela escola das Nações Unidas, mestranda em Direito Empresarial Internacional com foco em Arbitragem Internacional pela Universidade de Essex - Reino Unido. Membro do Grupo de Estudos e Projeto de Pesquisa "ASPECTOS JURÍDICO-TÉCNICO-ECONÔMICOS DO AGRONEGÓCIO" do CEDES.

Flávio Schegerin Ribeiro
Sócio do escritório Moreira e Schegerin advogados, pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP), mestrando em direito pelo IDP, mestrando em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - ISCSP, da Universidade de Lisboa, Associado efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP. Membro do Grupo de Estudos e Projeto de Pesquisa "ASPECTOS JURÍDICO-TÉCNICO-ECONÔMICOS DO AGRONEGÓCIO" do CEDES.

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