O Dia das Mães no Brasil é, tradicionalmente, um ritual de celebração afetiva. Um domingo de flores, cafés da manhã e homenagens públicas e privadas que, embora bem-intencionadas, seguem ignorando uma verdade estrutural: As mães continuam sendo o alicerce invisível de uma economia inteira baseada na exploração do tempo, do corpo e da energia das mulheres. É por isso que, neste 2024, a data ganha um contorno diferente — e mais potente. É o primeiro Dia das Mães com a política nacional de cuidados aprovada como lei (lei 14.836/24). E, com ela, temos a chance de tensionar o discurso celebrativo e colocá-lo em diálogo com justiça social e igualdade de gênero.
Afinal, por que o cuidado é uma tarefa quase exclusivamente feminina no Brasil? Porque a divisão sexual do trabalho persiste como uma engrenagem funcional ao capitalismo neoliberal e ao patriarcado. O Estado se omite, o mercado lucra, e as famílias – leia-se: As mulheres – cuidam. Cuidam dos filhos, dos idosos, dos doentes, dos lares, da comida, da saúde mental de todos ao redor, mas raramente da sua própria. E fazem isso gratuitamente, silenciosamente, em jornadas extenuantes que sequer são reconhecidas como trabalho.
É exatamente contra esse cenário que se insurge a política nacional de cuidados. Embora ainda precise ser efetivada, a lei representa uma virada simbólica e normativa importante: Ela reconhece o cuidado como um direito, como um trabalho, e como uma responsabilidade coletiva que deve ser repartida entre Estado, sociedade e setor privado. A política aponta caminhos possíveis para reverter a histórica sobrecarga das mulheres e tem uma mirada estruturada em três eixos — (i) reconhecimento, (ii) redução e redistribuição do trabalho de cuidado, e (iii) remuneração e valorização do trabalho de cuidado.
O primeiro eixo, reconhecer, é mais do que retórico: É reconhecer que o cuidado é trabalho, que produz riqueza, que sustenta a vida e que, até aqui, foi feito de forma gratuita e desigual. Significa nomear as desigualdades de gênero, raça e classe que sustentam o atual modelo de organização social.
O segundo eixo, reduzir e redistribuir, é o mais ousado. Ele desafia a naturalização da divisão sexual do trabalho. Redistribuir o cuidado é enfrentar a masculinidade que terceiriza ou ignora essa dimensão da vida. É rever políticas de licenças parentais, investir em creches e serviços públicos, mudar o desenho urbano e, sobretudo, deslocar o cuidado do espaço privado para o espaço público e político.
O terceiro eixo, remunerar e valorizar, toca num ponto sensível e muitas vezes negligenciado: A profissionalização do cuidado. Isso significa regulamentar e valorizar as trabalhadoras domésticas, cuidadoras, assistentes sociais e tantas outras profissionais precarizadas, invisibilizadas e exploradas sob o véu da “vocação” ou da “ajuda”.
É por isso que o Dia das Mães não pode continuar sendo apenas uma data de gratidão sentimental. Ele precisa se tornar um dia de consciência política. As mães precisam de licenças parentais dignas, creches públicas em tempo integral, apoio à saúde mental, serviços de cuidado para idosos e pessoas com deficiência, redistribuição justa das tarefas no lar, e reconhecimento social e econômico por tudo aquilo que fazem.
Celebrar o Dia das Mães à luz da política nacional de cuidados é transformar o afeto em luta. É dizer que o amor não pode mais justificar a exploração. É afirmar que cuidar é um ato político — e que, por isso mesmo, deve ser sustentado por políticas públicas e não apenas por mãos femininas cansadas e solitárias.