1. Introdução
A lei 14.994, sancionada em 9 de outubro de 2024, alterou significativamente o tratamento jurídico do crime de ameaça quando praticado no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher. As mudanças atingem dois pilares essenciais do direito penal e processual penal: a dosimetria da pena e a natureza da ação penal. Ao dobrar a pena e tornar a ação penal incondicionada, o legislador parece ter respondido a pressões sociais por maior rigor contra a violência doméstica. No entanto, essas alterações também suscitam debates relevantes sobre proporcionalidade, presunção de inocência e riscos de instrumentalização da máquina estatal. O presente ensaio visa analisar criticamente essas alterações à luz do sistema garantista do processo penal brasileiro.
2. Desenvolvimento
2.1 O crime de ameaça: o que previa a legislação anterior
O crime de ameaça, previsto no art. 147 do CP, sempre foi tratado como uma infração de menor potencial ofensivo, com pena de detenção de um a seis meses ou multa. Em regra, sua persecução dependia de representação da vítima, nos termos do art. 88 da lei 9.099/1995, respeitando-se, portanto, a autonomia da vítima em decidir se desejava ou não a intervenção penal.
A representação criminal, como se sabe, é uma condição de procedibilidade, prevista no art. 38 e seguintes do CPP. A vítima tem o prazo de seis meses, a partir da ciência da autoria, para manifestar sua vontade de ver o agente processado. Caso não o faça dentro desse prazo, opera-se a decadência, que extingue a punibilidade.
Esse modelo buscava preservar o equilíbrio entre o poder punitivo estatal e a vontade da parte ofendida, especialmente em conflitos interpessoais de baixa lesividade, nos quais o diálogo, a reconciliação ou o distanciamento voluntário muitas vezes resolvem o problema de forma mais eficaz e menos traumática do que a judicialização penal.
2.2 O que mudou com a lei 14.994/24
A lei 14.994/24 promoveu duas mudanças fundamentais no art. 147 do CP:
a) Parágrafo 1º – Aumento de pena
Foi incluída uma causa de aumento de pena, que dobra a sanção aplicável ao crime de ameaça quando ele for praticado no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. A pena, que era de 1 a 6 meses, pode agora chegar a 1 ano de detenção ou o valor da multa dobrado, conforme a fixação judicial.
b) Parágrafo 2º – Ação penal incondicionada
A segunda alteração foi ainda mais impactante: nos casos de violência doméstica, a ação penal passa a ser pública incondicionada, ou seja, independe de representação da vítima.
Na prática, isso significa que basta a lavratura de um boletim de ocorrência para que seja instaurado inquérito policial, com potencial de se converter em um processo criminal, ainda que a suposta vítima não queira processar o acusado.
Essa mudança, embora pretenda evitar que a vítima volte atrás por medo, dependência emocional ou pressões familiares, retira completamente sua autonomia e amplia o risco de judicialização de conflitos pontuais ou mal interpretados. O sistema passa a desconsiderar o contexto subjetivo da vítima, tratando-a como incapaz de decidir o que é melhor para si - o que, ironicamente, contradiz os próprios princípios de empoderamento feminino.
Além disso, o fato de que a palavra da suposta vítima tem grande peso probatório na lei Maria da Penha, somado à nova regra da ação incondicionada, pode gerar um desequilíbrio perigoso: a mera afirmação de ameaça já pode justificar processo e condenação, com pena dobrada, sem que a vítima sequer tenha autorizado a investigação ou o processo criminal.
3. Conclusão
A lei 14.994/24 representa uma guinada importante na repressão às ameaças praticadas contra mulheres no contexto doméstico, buscando dar respostas mais duras e céleres à sociedade. Contudo, ao dobrar a pena e eliminar a necessidade de representação, o legislador parece ter sacrificado princípios fundamentais do direito penal e processual penal, como a proporcionalidade, o contraditório e o respeito à autonomia da vítima.
Trata-se de um avanço normativo que deve ser acompanhado com cautela. Se por um lado, busca maior proteção, por outro, abre brechas para a persecução penal desnecessária, abusiva ou injusta, sobretudo nos casos em que o próprio suposto risco já deixou de existir.
Em um Estado Democrático de Direito, o combate à violência deve ocorrer com rigor, mas sem renunciar às garantias do processo justo, da dignidade dos envolvidos e da sensatez que deve sempre nortear a aplicação da pena.