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A função constitucional e democrática da advocacia pública e sua essencialidade ético-jurídica: Uma breve síntese

A advocacia pública é função essencial à justiça, devendo atuar com ética, autonomia e correção na defesa do interesse público e dos direitos fundamentais.

12/5/2025
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A CF/88 alçou a advocacia pública à condição de função essencial à Justiça, sem especificar de forma ampla como se concretizaria este papel, indicando apenas a representação extrajudicial e judicial do Estado, as funções de consultoria, assessoramento jurídico e representação judicial, a livre nomeação do Advogado-Geral da União com os critérios constitucionais, o concurso público para ingresso na carreira, a exclusividade na cobrança da dívida ativa Federal e, posteriormente, por EC, a existência de Corregedoria própria, observando-se os critérios de LC para definir sua lei orgânica.

Não houve um tratamento detalhado da advocacia pública, ao contrário do que ocorreu com a magistratura e o Ministério Público, e isto tem razões históricas, como se destaca a seguir:

A advocacia pública era vista como órgão fazendário e associado a regimes autoritários e a defesa das razões de poder.

A CF/88 adotou o modelo do constitucionalismo dirigente português que buscava transformar a realidade pela força normativa da CF e pelo ativismo judicial, reforçando o papel dos órgãos de judicialização, como a magistratura e o Ministério Público.

O forte lobby das associações da magistratura e do Ministério Público e um certo esvaziamento da atuação pública da advocacia pública.

Acreditava-se que o Legislativo e o Executivo iriam investir nos órgãos jurídicos que os representavam, sendo que a lei orgânica da Advocacia Geral da União foi aprovada em um momento de esvaziamento institucional, com vários dos seus membros migrando para o Ministério Público da União, sem um debate democrático, sendo que os momentos decisivos de aperfeiçoamento da advocacia pública Federal foram a incorporação da consultoria dos ministérios e a criação da Procuradoria Geral Federal.

Houve uma forte ênfase na judicialização e garantias como a autonomia e a independência funcional da magistratura e do Ministério Público, fazendo com que tais órgãos se representassem como agentes políticos e membros de Poder do Estado e não servidores públicos com estabilidade reforçada, uma vez que não eram eleitos para o exercício de suas funções.

O dirigismo constitucional foi extremado por vários doutrinadores ao associá-lo ao ativismo judicial, havendo dentre eles quem imaginasse que as normas programáticas da CF teriam eficácia imediata, cabendo ao Judiciário concretizar as políticas públicas diretamente, forjando a partir de si a identidade constitucional, chegando-se a repetir o que se afirmava do Judiciário norte-americano no sentido de que a CF seria aquilo que a Suprema Corte diria que é, indo além do papel de guardião da CF.

Com o tempo, constatou-se o déficit de democraticidade das posições judiciais, justificando-se, porém, na defesa de grupos vulneráveis. Contudo, os próprios defensores do constitucionalismo dirigente, como J. J. Gomes Canotilho, passaram a questionar a existência de puros constitucionalistas e de puros democratas, falando-se também em uma função democrática da CF e uma leitura aberta aos seus intérpretes em uma sociedade aberta.

Como a Constituição passou a ter também uma função democrática em sua abordagem, passou-se a buscar uma função democrática também para a advocacia pública, uma vez que não caberia apenas ao Judiciário concretizar direitos diretamente da Constituição, apesar da Administração Pública estar limitada por princípios constitucionais como a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, posteriormente, por emenda constitucional, a eficiência.

Aqui entra a importância da contribuição do Direito Administrativo Italiano, tornada corrente, entre nós, por Celso Antônio Bandeira de Mello, de que o interesse público primário (o interesse da sociedade, os direitos humanos fundamentais) também deveria ser defendido pela Administração Pública e pela advocacia pública, mesmo em observância às democráticas políticas públicas e do mérito administrativo ou de gestão. A defesa dos direitos humanos fundamentais pela advocacia pública é hoje moeda corrente, enfatizando medidas de desjudicialização consensual e de busca de eficiência, além de impactar na forma de defesa do interesse público pela Administração Pública.

Falou-se em como o dirigismo constitucional foi questionado pela função democrática amparada pelo Direito, não se podendo mais falar em puros constitucionalistas nem em puros democratas, pois o constitucionalismo considera fundamental o processo democrático e a teoria democrática reconhece a importância dos direitos individuais garantidos na CF, questionando-se a primazia ora da justeza das políticas públicas ora da necessidade do alto governo democrático e do processo político democrático como forma de assegurar a proteção da liberdade e dos direitos das pessoas, como afirma Canotilho.

Por outro lado, a CF define as funções essenciais da Justiça enquanto conceito autônomo que não se confunde com a ideia de Poder Judiciário, mas isto foi pouco explorado, pois os autores que defendiam a abordagem ético-jurídica do pós-positivismo confundiam-no com o Neoconstitucionalismo, lastreado este na força normativa da Constituição e uma nova hermenêutica constitucional.

Como se observou, os agentes da magistratura e do Ministério Público passaram a se arrogar a condição de agentes políticos, mesmo não sendo eleitos, pois, apesar de exercerem funções jurídicas, seriam órgãos de Poder. A questão é exatamente esta, os órgãos criados pela CF, dentro de sua heteronomia, são órgãos jurídicos constitucionais, cabendo a função de agentes políticos para as autoridades eleitas.

Assim, a advocacia pública é órgão jurídico, assim como a magistratura e o Ministério Público, cujas garantias se prestam para assegurar uma atuação idônea de tais instituições. A questão da justiça, que Hans Kelsen chegou a considerar como uma ilusão, está impregnada de elementos éticos, seja no ponto de vista da experiência jurídica, que assegura as dimensões dos direitos humanos fundamentais, seja da comunicação normativa, que assegura a consensualidade na formação dos direitos, unindo-se a proporcionalidade e a razoabilidade como medida de Justiça, no respeito ao espaço de atuação de cada um.

A essencialidade ético-jurídica da advocacia pública a faz ser reconhecida como órgão jurídico e função essencial à justiça. A velha concepção fazendária e autoritária da advocacia pública não é mais compatível com a defesa do interesse público primário, o interesse público da sociedade e os direitos humanos fundamentais, que passam a ter primazia na concretização das políticas públicas e do mérito administrativo ou de gestão.

A advocacia pública congrega o discurso de efetividade de direitos do Judiciário e do Ministério Público, o de controle do parlamento e do Tribunal de Contas e o de eficiência do Executivo e da Administração Pública. Cabe à função consultiva da advocacia pública zelar pela efetividade de direitos, mas também aproveitar as políticas públicas e o mérito administrativo ou de gestão. Incumbe à função de representação judicial zelar pela defesa da Administração de acordo com o interesse público integralmente, sejam os direitos humanos fundamentais, sejam as políticas públicas, seja o mérito administrativo ou de gestão. Observe-se que o assessoramento jurídico deve viabilizar as políticas públicas e o mérito administrativo ou de gestão sem deixar de fornecer os parâmetros ético-jurídicos dos direitos humanos fundamentais para o administrador público.

A advocacia pública hoje pode ser definida como órgão jurídico e função essencial à justiça que defende políticas públicas a partir de uma ética administrativa impessoal (profissional) e pública (transparência e participação) em busca de correção (efetividade jurídica e controle) e eficiência (resultados) na defesa do interesse público (direitos humanos fundamentais, legítimas políticas públicas e o mérito administrativo ou de gestão).

Não adianta ao contencioso adotar medidas de defesas de políticas públicas e do mérito administrativo sem observar os direitos humanos fundamentais, muitas vezes sendo necessário recorrer à consensualidade na redução de demandas ou a defesas condicionais em respeito aos direitos humanos fundamentais. Assim como a consultoria deve observar os direitos humanos fundamentais e aproveitar, na medida do possível, as legítimas políticas públicas e o mérito administrativo ou de gestão, cabe a ela junto com o assessoramento jurídico oferecer parâmetros ético-jurídicos para o gestor público.

As políticas públicas são circunstancialidades democráticas, apesar de buscarem concretizar os direitos humanos fundamentais e a cidadania, mas a essencialidade é ético-jurídica, entendendo-se o Direito como exigibilidade garantida e a justiça como o respeito ao espaço de atuação de cada um, a ponto de não se confundir o Advogado-Geral da União - comprometido com as políticas de governo, mas orientado pelos órgãos respectivos da advocacia pública - com a advocacia pública, como órgão jurídico e função essencial à justiça, que deve, democraticamente, orientar os órgãos de gestão do Estado, dentro de critérios de Direito e justiça, por mais que se pressuponham tais conhecimentos.

É preciso associar a advocacia pública com correção (efetividade de direitos e controle) e impessoalidade (profissionalidade) e eficiência (resultados) e publicidade (transparência e participação), estabelecendo a prevenção de vícios como a politização (o mero jogo de poder) e o mandonismo (relações hierárquicas sem a mediação do direito) e a tecnocracia (o saber-fazer) e o patrimonialismo (a apropriação privada da esfera pública).

Assim, conclui-se que a advocacia pública possui, além de uma função constitucional e democrática, uma essencialidade ético-jurídica e deve, portanto, ter reconhecida sua autonomia e independência técnico jurídica que deve ser exercida de forma democrática pelos agentes jurídicos da advocacia pública, observando que a Administração Pública necessita de critérios de uniformidade para alcançar correção e eficiência de forma impessoal e pública na defesa do interesse público, pois, como regra, está afeta ao regime administrativo constitucional.

Finaliza-se apresentando uma proposta de EC para a AGU, introduzindo um §4° no art. 131 da CRFB nos seguintes termos, considerando que a lei orgânica da AGU foi apresentada em um momento de esvaziamento institucional, sendo necessário o debate democrático e ético-jurídico:

“Lei Complementar regulará a organização e funcionamento da Advocacia Pública Federal, prevendo a incorporação e reformulação de órgãos vinculados, a Autonomia institucional, Princípios, Garantias e Prerrogativas na condição de Órgão Jurídico e Função Essencial à Justiça com uma Ética Jurídica Impessoal e Pública em busca de Correção e Eficiência na Defesa do Interesse Público.”

Tal disposição normativa concretizaria a função constitucional democrática da advocacia pública e sua essencialidade ético-jurídica, trazendo para alçada constitucional todo um papel social relevante de uma instituição que defende a juridicidade do Estado, como heteronomia, coercitividade e legitimidade, e a garantia de Justiça como virtude das instituições sociais e respeito ao campo de atuação de cada uma delas.

Autor

Leonardo de Mello Caffaro Procurador federal - Advocacia-Geral da União (AGU); instrutor da Escola da AGU; bacharel em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro (UERJ); especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Gama Filho (UGF); mestre em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA); doutorando em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP).

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