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A insegurança jurídica nas divergências do STF sobre o art. 840 da CLT

Análise de decisões contraditórias no STF sobre a interpretação do art. 840 da CLT e seus impactos na segurança jurídica do processo trabalhista.

21/5/2025

As recentes decisões monocráticas proferidas pelos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes em reclamações constitucionais idênticas revelam um cenário de profunda insegurança jurídica no âmbito da aplicação da reforma trabalhista. As posições diametralmente opostas sobre a necessidade de observância da cláusula de reserva de plenário na interpretação do art. 840, §1º da CLT colocam advogados, magistrados e jurisdicionados em posição desconfortável, sem saber qual orientação seguir.

O dispositivo em questão, com a redação conferida pela lei 13.467/17, determina que a reclamação trabalhista escrita deverá conter o pedido “que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor”. A questão controvertida gira em torno da vinculação do juízo aos valores indicados na inicial - seriam limites à condenação ou meras estimativas.

Na reclamação 79.034/SP, julgada em 12/5/25, o ministro Alexandre de Moraes julgou procedente o pedido formulado pelo Itaú Unibanco S/A, cassando decisão do TST que considerou os valores indicados na petição inicial como meramente estimativos. Para o ministro, ao afastar a aplicação integral do dispositivo celetista “sob o pálio da argumentação constitucional da aplicação dos princípios da inafastabilidade da jurisdição, dignidade da pessoa humana e proteção social do trabalho”, o órgão fracionário do tribunal teria violado a súmula vinculante 10, que exige a submissão da matéria ao plenário ou Órgão Especial para declaração de inconstitucionalidade.

Curiosamente, diante de caso análogo, o ministro Gilmar Mendes adotou posição diametralmente oposta na reclamação 77.179/PR. Nesta decisão, proferida apenas dois meses antes, em 21/3/25, o ministro negou seguimento à reclamação também proposta pelo Itaú Unibanco contra acórdão do TST que permitiu condenação superior aos valores indicados na petição inicial.

Para Gilmar Mendes, “a exigência de reserva de plenário não se aplica a toda e qualquer hipótese em que a autoridade judiciária deixa de acolher a pretensão da parte de fazer incidir determinada norma ao caso concreto em debate; refere-se exclusivamente à hipótese em que se afasta a incidência de lei ou ato normativo por fundamento constitucional”. Segundo o Ministro, o TST não discutiu a constitucionalidade do art. 840, §1º da CLT, mas limitou-se a interpretar as normas infraconstitucionais aplicáveis ao caso.

No caso específico analisado por Gilmar Mendes, o tribunal trabalhista havia considerado que, quando a petição inicial menciona expressamente que os valores foram “provisoriamente atribuídos” aos pedidos, “como um norte para a liquidação”, a condenação não fica limitada ao quantum estimado. Esta interpretação, para o Ministro, não equivale ao afastamento da norma por razões constitucionais, mas à mera exegese do dispositivo legal.

A divergência entre os ministros não é meramente acadêmica e produz efeitos práticos devastadores para a segurança jurídica. Advogados que militam na Justiça do Trabalho não têm clareza sobre como proceder: se devem observar rigorosamente os valores indicados na inicial como teto da condenação ou se podem considerá-los estimativas passíveis de superação na liquidação.

A ausência de uma orientação uniforme da Suprema Corte também impacta a estratégia processual dos litigantes. Para os reclamantes, a tentativa de preservar a possibilidade de liquidação além dos valores indicados pode levar à adoção de expedientes como a expressa menção ao caráter “estimativo” dos valores - solução que foi validada por Gilmar Mendes, mas que poderia ser rechaçada seguindo a linha de Alexandre de Moraes. Para os reclamados, a insegurança dificulta a avaliação de riscos e o planejamento de provisões financeiras.

Mais grave ainda é a percepção de que o próprio STF, guardião da Constituição e responsável por pacificar controvérsias jurídicas, não consegue produzir uma interpretação uniforme sobre tema tão relevante. Se dois ministros podem chegar a conclusões tão díspares em casos virtualmente idênticos, o que esperar dos demais tribunais do país.

A divergência também revela um problema de ordem metodológica no controle de constitucionalidade. A linha que separa a interpretação conforme a Constituição (técnica hermenêutica) da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto (técnica de controle de constitucionalidade) é tênue e frequentemente borrada na prática jurisprudencial brasileira. Este cenário facilita a proliferação de decisões que, a pretexto de interpretar, acabam por afastar normas legais sem a devida observância da cláusula de reserva de plenário.

No caso específico da reforma trabalhista, esta confusão metodológica ganha contornos ainda mais problemáticos. É notório que setores da magistratura trabalhista têm manifestado resistência a diversos aspectos da lei 13.467/17. Em alguns casos, esta resistência se traduz em decisões que, sob o manto da hermenêutica, buscam neutralizar os efeitos da reforma legislativa. A correta aplicação da súmula vinculante 10 seria um freio importante a este tipo de ativismo, mas sua eficácia depende de uma interpretação uniforme pela própria Corte que a editou.

A solução para este impasse passa pelo necessário enfrentamento da questão pelo plenário do STF. Apenas uma decisão colegiada, preferencialmente em sede de repercussão geral, poderá pacificar o entendimento sobre a necessidade de observância da cláusula de reserva de plenário na interpretação do art. 840, §1º da CLT e, mais amplamente, sobre os limites entre interpretação e controle de constitucionalidade.

Enquanto tal definição não ocorre, advogados e partes devem adotar postura de cautela. Para os reclamantes, é prudente formular pedidos com valores que efetivamente correspondam à pretensão máxima, evitando a caracterização como “meras estimativas”. Para os reclamados, a impugnação específica dos valores indicados e a expressa invocação do limite previsto no art. 840, §1º da CLT continuam sendo estratégias necessárias, apesar da incerteza sobre sua eficácia.

O episódio ilustra, enfim, a dificuldade de implementação efetiva das reformas legislativas em um cenário de ativismo judicial e fragmentação interpretativa. A segurança jurídica, valor fundamental em qualquer Estado de Direito, depende não apenas da qualidade da produção legislativa, mas também da coerência e previsibilidade na aplicação das normas pelos tribunais. No caso da reforma trabalhista, este ideal parece ainda distante, como demonstram as contraditórias decisões dos Ministros Alexandre de Moraes (12/5/25) e Gilmar Mendes (21/3/25), proferidas com menos de dois meses de diferença sobre idêntica questão jurídica.

Marco Aurélio Valle Barbosa dos Anjos
Advogado trabalhista. Sócio no Valfran dos Anjos Advogados. MBA em Direito Empresarial. Pós-graduação em Trabalho e Esporte. Curso em Cambridge. Atuação destacada em contencioso, gestão e Tribunais.

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