Em 29/4 do corrente ano foi anunciada1 a aprovação pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados a aprovação do PL 4978/23, que altera o CPC no capítulo do cumprimento de sentença das ações de alimentos para instituir o “pix da pensão”, nos casos em que o devedor não tenha vínculo regular de emprego que possibilite o desconto da pensão diretamente em folha de pagamento.
O objetivo, segundo consta da justificativa do projeto, é reduzir o “trabalho do Estado e beneficiar os alimentandos”. Aduz que o sistema de constrição de valores através do SISBAJUD por ordem judicial, atualmente “é contraproducente na pensão alimentícia, que, geralmente, é cobrada mensalmente até a maioridade do alimentando”.
Desta forma, o CPC passaria a contar com o art. 529-A, qual seja:
“O exequente poderá requerer, observado o art. 854, a transferência automática, mês a mês, da importância da prestação alimentícia para conta de sua titularidade ou do representante legal, sendo ao executado facultado o direito de informar a conta preferencial para débito. § 1° Ao proferir a decisão, o juiz determinará à instituição financeira, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que efetue a transferência automática para a conta do exequente, nas datas definidas, ou proceda nos termos do § 4° deste artigo. § 2° O ofício conterá o nome e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do exequente e do executado, a importância a ser descontada mensalmente, o tempo de sua duração, as contas de débito e de crédito, a eventual necessidade de atualização em caso de aumento do salário mínimo ou índice oficial a ser usado no reajuste, nos termos do art. 1710 do Código Civil, e o índice de atualização monetária em caso de mora.”
De acordo com o projeto, em sede de cumprimento de sentença de fixação de alimentos, entre as formas de execução, poderia o juiz, a pedido da parte, expedir ofício à instituição financeira em que o devedor tiver conta bancária, para que a própria instituição transfira os pagamentos para conta do credor, mensalmente, na data determinada. Ainda de acordo com a norma, caberá ao banco a obrigação de proceder a atualização dos valores da pensão, conforme os índices estabelecidos na decisão (em regra o salário mínimo). Desta forma, repassa-se aos bancos o controle do pagamento mensal da pensão alimentícia devida ao alimentando, através da administração das finanças do alimentante, lastreado em ordem judicial.
A proposição continua para hipótese de inexistência de saldo no dia do pagamento:
“§ 3° Na ausência de saldo suficiente para o pagamento da prestação alimentícia na data definida, a instituição financeira, considerada a decisão judicial proferida nos termos do § 1°, informará a autoridade supervisora do sistema financeiro nacional para que torne indisponíveis os ativos mencionados no art. 835, itens I a IV, limitando-se a indisponibilidade ao valor atualizado das prestações alimentícias em atraso.”
Ou seja, uma vez que a instituição financeira verifique a inexistência de saldo suficiente para o pagamento do valor integral devido, deverá informar a autoridade supervisora do sistema financeiro nacional para que proceda a constrição do valor em atraso em outras contas do alimentante, de títulos da dívida pública, títulos ou valores mobiliários, e veículos terrestres. Portanto, pelo que consta no enunciado, cabe ao banco em que o alimentante for titular da conta declinada pelo juízo, proceder o cálculo do valor atrasado da pensão, e imediatamente requerer à autoridade supervisora do sistema financeiro o bloqueio de bens ou direitos do alimentante, sem qualquer outra ordem judicial indicando o valor a ser constrito, já que o cálculo caberá ao próprio Banco.
O §4º autoriza a constrição das contas de empresa individual vinculada ao CPF do alimentante pelo valor do débito em atraso.
Após a constrição de bens e valores em nome do alimentante, de acordo com o projeto, o mesmo deverá ser intimado pessoalmente ou por seu advogado, na forma do art. 854 do CPC. O projeto é silente sobre a atribuição para essa intimação, se da própria instituição financeira ou do juízo onde tramita o cumprimento de sentença, e responsável pela ordem inicial dos descontos “pix”.
Por fim, determina que a instituição financeira deverá oficiar ao juízo mês a mês informando os valores transferidos, a data da transferência e a eventual incidência de juros de mora.
É evidente que várias questões de ordem prática surgem da efetivação do que se pretende. Primeiramente, não parece que a proposta tenderá reduzir significativamente o trabalho das serventias, já que, de todo modo, sendo a medida determinada no bojo do cumprimento de sentença, o mesmo deverá ser ajuizado para veiculação do pedido de implementação do “pix da pensão”. Outrossim, a enxurrada de ofícios mensais dispondo sobre os valores transferidos, a data da transferência e a eventual incidência de juros de mora, a serem juntados pelas serventias em cada um desses processos, certamente inibe qualquer tentativa de desafogar o trabalho do judiciário.
Se por um lado deixa de ser atribuição do juízo a determinação das ordens de constrição de ativos financeiros junto ao SISBAJUD, por outro o Judiciário permanece responsável para dirimir todas as controvérsias advindas das impugnações aos cálculos que deverão ser elaborados pelos próprios bancos no que se refere ao débito em atraso.
E em se falando de débito em atraso, parece-nos incoerente que o dispositivo esteja versado no capítulo do cumprimento de sentença, quando na verdade veicula forma de cobrança do valor mensal da pensão, e não da dívida já consolidada pelo não pagamento das prestações anteriores. Observe-se que não há no projeto a forma de pagamento da dívida acumulada anteriormente à ordem dos descontos mensais, mas apenas o modo de agir do banco a partir do momento em que constatada a inexistência do saldo para pagamento do débito mensal. A partir daí a instituição financeira desdobraria, sem necessidade de qualquer nova ordem judicial, para calcular o saldo em aberto e promover os atos executórios administrativamente.
No entanto, o problema maior do projeto é repassar aos bancos a prerrogativa de promover atos de constrição sem qualquer ordem judicial específica, que não o ofício genérico no sentido do repasse entre contas de valor certo e determinado. A partir daí, eventuais atualizações, cálculos de valores em atraso, e mesmo outros atos de constrição que sequer estavam discriminados no ofício inicial, são de encargo exclusivo do próprio banco.
O projeto parece não estar em consonância com o art. 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, qual seja, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A prática de atos de constrição patrimonial sem ordem judicial afronta o devido processo legal. Por outro lado, a ordem judicial deve ser certa e determinada, para não incidir no vazio da tutela do dispositivo constitucional. O ofício genérico enviado inicialmente pelo juízo não contém o valor da dívida, mas apenas o valor arbitrado a título de pensão. Tudo o mais que se desdobra quando não é encontrado o valor estabelecido na conta indicada, é realizado administrativamente, sem contraditório ou ampla defesa, que o projeto posterga para ser aferido judicialmente, em que pese não ter indicado quem deverá intimar o executado para manifestação.
É bom que se diga, por outro lado, que as ferramentas atuais, como a ordem repetitiva de constrição de ativos financeiros (vulgo teimosinha), permitindo ao juízo a ordem de bloqueio de valor certo, determinado, por certo período de tempo, na verdade cumpre em parte o objetivo do projeto, inclusive com relação ao bloqueio de eventuais valores vinculados ao CNPJ do empresário individual, eis que o Sniper - Sistema Nacional de Investigação e Recuperação de Ativos fornece essa informação ao exequente, permitindo o pedido de ordem de constrição também das contas bancárias da empresa individual.
Se atualmente essas ferramentas não vêm sendo suficientes para inibir os elevados índices de inadimplemento, é porque o problema ainda esbarra na falta de saldo, bens ou valores em nome do devedor (ou da sua empresa individual). A ordem de constrição repetitiva de ativos financeiros só se mostra ineficaz quando o devedor não possui qualquer valor em nenhuma instituição financeira, o que demonstra que a ineficácia do chamado “pix da pensão” recairá no mesmo problema, criando outros, como a fiscalização mensal do pagamento regular da pensão pelo judiciário (art. 529-A, §6º do projeto), já que, atualmente, o assoberbamento já ocorre por conta da fiscalização do pagamento do débito em atraso, quiçá ficará com a fiscalização do pagamento da pensão regular.
Afora todas essas questões, ao que parece o projeto repassa às instituições financeiras uma demanda considerável de atividades que certamente não será remunerada pelos tribunais, quanto menos pelas partes, o que provavelmente deverá ser objeto de questionamento, já que nada existe de paralelo na lei do sistema financeiro nacional, qual seja, atribuição das instituições financeiras para o cumprimento da sentença de alimentos após o recebimento de singelo ofício judicial informando o CPF das partes e o valor mensal da pensão, tão somente.
O objetivo da proposta, qual seja, desafogar o Judiciário das ações que envolvem o inadimplemento da pensão alimentícia, bem como promover sua maior efetividade, de fato é um problema que merece a devida atenção com apontamento de soluções concretas. Por outro lado, o projeto parece esquecer que, parte considerável dessa inadimplência atualmente é por conta da frequência com que devedores de alimentos trocam o vínculo empregatício frustrando as tentativas de desconto em folha diretamente pelo empregador.
Há muito se reclama da necessidade de um sistema de cadastramento nacional de alimentantes, para que, ao formalizar o vínculo de emprego, o órgão empregador já tenha acesso às informações pertinentes para implementar de imediato o desconto em folha da pensão, sem a necessidade de se recorrer ao pedido de novo ofício judicial à cada novo contrato de trabalho. Para tanto, bastaria o juízo oficiar ao órgão responsável pelo cadastramento uma única vez, para inserção dos dados dos alimentantes/alimentandos e, ao final da obrigação, para sua exclusão, diante da exoneração da obrigação. Apenas isso já desafogaria as serventias com uma quantidade considerável de ordens de desarquivamentos e ofícios todos os dias, muitos dos quais acabam chegando ao empregador após a cessação do vínculo contratual.
Atualmente, para que a parte alimentária tenha ciência do empregador do alimentante, é necessário à consulta ao INSS junto ao sistema PrevJud, que reúne todas as informações de todas as empresas contratantes do alimentante ao longo dos anos, para que, uma vez ciente do vínculo atual, possa então ser feito o pedido de novo ofício. Essa informação já poderia estar disponível ao empregador quando da celebração do contrato de trabalho, sem a necessidade do custo e do tempo de toda essa volta para se chegar finalmente ao desconto em folha.
A pergunta que se faz é: qual vem sendo a dificuldade encontrada para criação desse sistema nacional, especialmente considerando que a própria autarquia previdenciária já reúne boa parte das informações necessárias?
Em suma, as dificuldades enfrentadas não decorrem da ausência de informações, mas da necessidade de articulação institucional, regulamentação jurídica adequada e estruturação técnica compatível com a realidade do que vem sendo efetivamente enfrentado pelo Judiciário para reduzir o inadimplemento da dívida alimentar. A proposta do “pix da pensão”, conforme formulada, não se afasta do que já se tem de eficácia com relação à ordem repetitiva de ativos financeiros, além de trazer outros problemas relacionados.
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1 Ver sobre: https://www.camara.leg.br/noticias/1153541-comissao-aprova-projeto-que-cria-o-pix-pensao-para-facilitar-pagamento-de-pensao-alimenticia/#:~:text=Direito%20e%20Justi%C3%A7a-,Comiss%C3%A3o%20aprova%20projeto%20que%20cria%20o%20%22Pix%20Pens%C3%A3o%22%20para,facilitar%20pagamento%20de%20pens%C3%A3o%20aliment%C3%ADcia&text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Previd%C3%AAncia%2C%20Assist%C3%AAncia,transfer%C3%AAncia%20autom%C3%A1tica%20da%20pens%C3%A3o%20aliment%C3%ADcia. Acesso em 18/5/25