Migalhas de Peso

Aspectos jurídicos do "contrato de gaveta"

O contrato de gaveta é um acordo informal de compra e venda de imóvel sem registro no cartório, o que pode gerar diversos riscos jurídicos. Entenda quando é válido e o regular procedimento.

30/5/2025

O contrato de compra e venda de imóvel é um dos negócios jurídicos mais comuns no Brasil, sendo amplamente utilizado tanto por pessoas físicas quanto jurídicas.

Contudo, uma modalidade atípica e frequentemente utilizada, especialmente em situações de informalidade ou restrições legais, é o chamado contrato de gaveta.

Trata-se de uma negociação entre comprador e vendedor que, embora válida entre as partes, não é escriturada perante o tabelionato de notas, bem como não é registrada oficialmente no cartório de registro de imóveis.

Ou seja, é um negócio jurídico válido entre as partes, mas que não gera efeitos entre terceiros.

Esse tipo de contrato levanta importantes questões jurídicas, especialmente no que se refere à segurança, à possibilidade de registro, à oposição de terceiros e à responsabilização das partes.

Como mencionado anteriormente, é um negócio jurídico válido entre as partes, mas inoponível a terceiros. Apesar de não ter previsão legal expressa, ele é amplamente aceito no ordenamento jurídico brasileiro sob o princípio da liberdade contratual e da autonomia da vontade, previstos no art. 421 do CC.

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. 

Porém, é fundamental compreender que a propriedade do imóvel só se transfere com o registro da escritura pública no Cartório de Registro de Imóveis, conforme o art. 1.245 do CC.

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

Portanto, o comprador, mesmo com o contrato de gaveta em mãos, não se torna proprietário do bem até que o registro seja efetuado. Nesse sentido, o contrato gera efeitos obrigacionais, mas não reais, ou seja, obriga as partes, mas não confere o direito de propriedade perante terceiros.

Inclusive, tratando-se de bens imóveis com trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país, o CC exige a lavratura da escritura pública de compra e venda, bem como se faz necessário o registro do instrumento.

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país.

Entre comprador e vendedor, o contrato de gaveta gera efeitos jurídicos válidos, desde que estejam presentes os elementos essenciais do negócio jurídico, tais como agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei, na forma do art. 104 do CC:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Assim, as partes estão vinculadas ao cumprimento das obrigações pactuadas, como o pagamento do preço, a entrega do imóvel e a responsabilidade por eventuais débitos anteriores.

Caso uma das partes descumpra o contrato, é possível ingressar com ação judicial para exigir o cumprimento ou a resolução do contrato, com eventuais perdas e danos.

O Poder Judiciário, em diversas ocasiões, reconhece a validade do contrato de gaveta, especialmente quando há prova documental da celebração e da posse do bem.

Além disso, a posse do imóvel pode ser considerada legítima se estiver acompanhada de animus domini (intenção de dono) e ausência de oposição, o que pode até mesmo viabilizar, futuramente, uma ação de usucapião, desde que preenchidos os requisitos legais.

Contudo, apesar de produzir efeitos entre as partes, o contrato de gaveta traz consigo uma série de riscos jurídicos, especialmente para o comprador:

  1. Falta de registro: Sem o registro, o comprador não pode exercer plenamente os direitos de proprietário, como vender, hipotecar ou alugar o imóvel formalmente.
  2. Risco de penhora ou execução: Como o imóvel ainda consta em nome do vendedor, este pode ter dívidas que recaem sobre o bem, sendo possível sua penhora em processos judiciais.
  3. Morte do vendedor: Em caso de falecimento do vendedor antes do registro, o bem pode ser incluído no inventário e ser destinado a herdeiros, deixando o comprador em situação vulnerável.
  4. Boa-fé de terceiros: Se o vendedor alienar o imóvel a terceiros de boa-fé que levem a registro, prevalecerá o direito do terceiro, pois o comprador de gaveta não possui registro e, portanto, não é considerado proprietário perante a lei.

Esses riscos demonstram que, embora o contrato de gaveta seja um instrumento utilizado por diversos motivos (como economia de custos ou restrições legais), ele representa uma insegurança jurídica significativa.

Os tribunais brasileiros têm reconhecido a existência e os efeitos do contrato de gaveta, especialmente quando acompanhados de documentos que comprovem a posse e o pagamento do preço.

O STJ já decidiu, em diversas oportunidades, que esse tipo de contrato pode gerar efeitos obrigacionais e permitir, por exemplo, a adjudicação compulsória do imóvel.

O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. (súmula 239, 2ª seção, julgado em 28/6/00, DJ 30/08/00, p. 118)

Assim, a jurisprudência tem buscado dar efetividade ao negócio jurídico informal, desde que haja boa-fé e cumprimento das obrigações pactuadas.

Mesmo assim, para fins de segurança jurídica a regularização do contrato de gaveta é altamente recomendável.

A forma mais segura é a lavratura da escritura pública e posterior registro no cartório de imóveis, que garante o direito real ao comprador.

Além disso, alguns mecanismos legais, como a adjudicação compulsória extrajudicial (lei 14.382/22), podem ser utilizados para regularizar o imóvel, desde que haja a prova do cumprimento integral do contrato.

Também é possível, em alguns casos, utilizar o contrato de gaveta como fundamento para ação de usucapião, desde que preenchidos os requisitos legais de posse contínua, pacífica e com ânimo de dono por período suficiente.

Portanto, o contrato de compra e venda de imóvel de gaveta é uma prática consolidada no Brasil, embora envolva sérios riscos jurídicos.

Embora seja válido entre as partes, não confere segurança jurídica plena ao comprador, uma vez que não transfere o direito real de propriedade.

Dessa forma, recomenda-se que, sempre que possível, as partes busquem formalizar a transação de forma completa, com lavratura da escritura pública e registro no Cartório de Registro de Imóveis, garantindo assim a plena eficácia jurídica do contrato.

Marcos Roberto Hasse
Advogado (OAB/SC 10.623) com 30 anos de experiência, sócio da Hasse Advocacia e Consultoria, com atuação ampla e estratégica em diversas áreas jurídicas.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025