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O marco legal das garantias: Uma sobrevida à hipoteca

O marco legal das garantias, a partir da criação do procedimento de execução extrajudicial da hipoteca, é diretamente responsável pelo ressurgimento do próprio instituto em si.

23/5/2025

I. Considerações preliminares:

A lei 14.711/23, popularmente chamada de marco legal das garantias, publicada no final do ano de 2023, trouxe mudanças significativas no processo de execução extrajudicial da alienação fiduciária e, principalmente, instituiu o procedimento de excussão extrajudicial em casos em que houve a instituição de hipoteca sobre bem imóvel.

O propósito legislativo foi, em linhas gerais, aprimorar as regras de garantia; a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca; a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores; o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento da alienação fiduciária; o resgate antecipado de letra financeira; a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior; e o procedimento de emissão de debêntures1.

O intuito do legislador é aprimorar as garantias reais, com o objetivo de estimular a concessão de créditos. Sem garantias reais "fortes", inibe-se a concessão de crédito/empréstimos e a realização de negócios com pagamento parcelado do preço, além do aumento dos juros e dos preços de outros produtos.

A partir de uma perspectiva econômica, o aprimoramento e a maior segurança jurídica nas garantias reais, como alienação fiduciária e hipoteca, permitirão uma maior circulação de crédito no mercado, com o consequente aumento do consumo e aquecimento da economia. Além disso, com uma maior segurança jurídica no momento de estruturação das garantias, os custos de transação tendem a diminuir.

O presente ensaio, no entanto, terá como escopo analisar as novidades trazidas, principalmente, no campo da hipoteca.

II. A hipoteca:

Em nosso ordenamento jurídico, o instituto da hipoteca remete ao ano de 1843, quando da lei orçamentária 317, regulamentada pelo decreto 482, de 14/11/1846, que criou o registro das hipotecas sobre imóveis e semoventes. Posteriormente, com a lei 1.237, de 24/9/1864, regulamentada pelo decreto 3.453, de 26/4/1865, o registro de hipotecas passou a denominar-se registro geral. O CC de 1916, por sua vez, instituiu a hipoteca, enquanto a lei 6.015/73 (lei dos registros públicos) especificou o tratamento da hipoteca perante o registro de imóveis. Atualmente, o CC/02 é a norma regulamentadora da hipoteca.

A hipoteca é uma garantia real que recai sobre bens imóveis, conferindo ao credor o direito de excutir o bem dado em garantia para satisfazer seu crédito em caso de inadimplemento do devedor. Segundo Maria Helena Diniz, "a hipoteca é um direito real de garantia que grava um bem imóvel, conferindo ao credor hipotecário o poder de promover a venda judicial do bem para satisfazer seu crédito".

Como direito real, a hipoteca confere ao credor o direito de sequela, permanecendo a garantia, mesmo que o bem seja alienado. A instituição da hipoteca não retira o bem de comércio, pois o bem gravado pode ser alienado. Inclusive, o art. 1.475 do CC dispõe sobre a nulidade da cláusula que proíba o proprietário de alienar o bem hipotecado. Sua publicidade é obtida a partir do registro imobiliário, assegurando o conhecimento de terceiros. Tal registro ocorrerá no lugar do imóvel hipotecado.

No entanto, a utilização do instituto da hipoteca por parte do mercado bancário e imobiliário, como um todo, ficou em segundo plano, especialmente pelos avanços trazidos à alienação fiduciária, no momento da criação da lei 9.514/97, bem como pelas fortes críticas ao decreto-lei 70/66, com alterações da lei 8.004/90, que permitia a execução extrajudicial da dívida hipotecária, criada sob o pálio do sistema habitacional. Para Sílvio de Salvo Venosa, por exemplo, o sistema instituído pelo referido decreto (modificado pela lei 8.004/90) era draconiano, com redução excessiva dos direitos do devedor. Para o autor, a legislação não outorgava ao devedor o seu direito constitucional à defesa2.

Consequentemente, os operadores do mercado optaram pela celeridade e pela maior segurança jurídica oferecida pelo instituto da alienação fiduciária, devidamente renovado com a criação da lei 9.514/97.

III. O marco legal das garantias e a hipoteca:

O art. 9º da lei 14.711/23 introduz a possibilidade de execução extrajudicial da hipoteca, sem exclusão da via judicial. Isso representa um importante avanço no desafogo judicial.

A criação do procedimento executivo extrajudicial para a hipoteca aproximou o próprio instituto da hipoteca ao instituto da alienação fiduciária. Todavia, a propriedade fiduciária ainda preservará a vantagem imediata de retirada da propriedade plena do imóvel da esfera patrimonial do devedor, o que consiste em proteção do fiduciário diante das dívidas constituídas posteriormente pelo devedor.

O referido art. 9º possui quinze parágrafos, nos quais o trâmite executivo extrajudicial é distribuído.

O procedimento extrajudicial inicia-se da seguinte forma: vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o devedor e, se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos serão intimados pessoalmente, a requerimento do credor ou do seu cessionário, pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, para purgação da mora no prazo de 15 dias (§1º do art. 9º).

Na ausência da purga da mora no prazo de 15 dias, fica autorizado o início do procedimento de excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público, e o fato será previamente averbado na matrícula do imóvel, a partir do pedido formulado pelo credor, nos 15 dias seguintes ao término do prazo estabelecido para a purgação da mora (§2º do art. 9º). Dentro do prazo de 60 dias contados da averbação, o credor promoverá o leilão público do bem hipotecado.

Na hipótese de o lance oferecido no primeiro leilão público não ser igual ou superior ao valor do imóvel estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação realizada pelo órgão público competente para cálculo do imposto sobre transmissão inter vivos, o que for maior, o segundo leilão será realizado nos 15 dias seguintes. No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.

Se o lance para arrematação do imóvel superar o valor total da dívida, acrescida das despesas mencionadas acima (§7º do art. 9º), a quantia excedente será entregue ao hipotecante no prazo de 15 dias, contado da data da efetivação do pagamento do preço da arrematação.

Porém, caso o lance oferecido no segundo leilão não seja igual ou superior ao referencial mínimo (metade do valor de avaliação do bem) estabelecido no § 6º do art. 9º, o credor terá duas opções: i) apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, a qualquer tempo, pelo valor correspondente ao referencial mínimo devidamente atualizado (metade do valor de avaliação do bem atualizado), mediante requerimento ao oficial do registro de imóveis competente, que registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único; ou ii) realizar, no prazo de até 180 dias, contado do último leilão, a venda direta do imóvel a terceiro, por valor não inferior ao referencial mínimo (metade do valor da avaliação), dispensando novo leilão.

Caso o imóvel hipotecado esteja ocupado, aplicam-se os procedimentos utilizados e mencionados nos §§ 7º e 8º do art. 27 e nos arts. 30 e 37-A da lei 9.514, de 20/11/1997 (vide §12 do art. 9º).

Por fim, mas não menos importante, o título constitutivo da hipoteca (ex: Escritura Pública de Confissão de Dívida com Garantia Hipotecária) deverá conter expressa previsão do procedimento previsto no referido art. 9º da lei, com menção ao teor dos §§ 1º a 10 deste artigo.

IV. Da jurisprudência importante:

Por amor ao debate e com o intuito de enriquecer a discussão, é importante fazer menção ao recente julgado proferido pela 21ª Câmara Cível Especializada do TJ/MG3.

Neste, basicamente, analisou-se a possibilidade (ou não) de admitir o registro de hipoteca sobre imóvel gravado com alienação fiduciária em favor de credores distintos. Segundo o desembargador relator doutor Marcelo de Oliveira Milagres, a lei 14.711/23 admite a extensão de garantias sobre imóveis gravados com alienação fiduciária, desde que observados os requisitos de unicidade do credor fiduciário. No caso concreto, a escritura pública de confissão de dívida com garantia hipotecária registrou expressamente a ciência e anuência do credor da confissão de dívida acerca da existência de alienação fiduciária.

Para o relator, a hipoteca, embora condicionada neste caso, é uma garantia válida, pois depende da consolidação da propriedade plena pelo devedor fiduciante mediante o adimplemento da dívida garantida pela alienação fiduciária, o que respeita a lógica jurídica das garantias reais e viabiliza a maximização do crédito.

No caso, portanto, tratava-se de garantias distintas (alienação fiduciária e hipoteca), não violando a regra da unidade do credor (art. 1487-A do CC), sendo reconhecida, portanto, a pós-eficácia da garantia hipotecária pela natureza superveniente da propriedade do devedor fiduciante. Trata-se de garantia sobre bem determinado, observado o princípio da especificidade. O intuito da lei 14.711/23 é, justamente, a maximização das garantias e permitir que direitos aquisitivos e expectativos, como os do devedor fiduciante, sejam utilizados para potencializar a função econômica do imóvel, ampliando as possibilidades de obtenção de crédito e preservando os direitos dos credores.

V. Conclusões:

Partindo da premissa de que os agentes respondem a estímulos/incentivos, a modalidade utilizada anterior à lei das garantias desincentivava a utilização dos métodos de garantias adequadas, como a alienação fiduciária e a hipoteca.

Com o marco legal das garantias, traz-se ao mercado segurança jurídica, agilidade e previsibilidade. Somados esses componentes, o resultado será a criação de novos negócios, bem como o aquecimento da economia como um todo.

Portanto, as novidades trazidas pela lei 14.711/23 são de extrema valia e possibilitam o ressurgimento do instituto da hipoteca, por muito tempo deixado em segundo plano.

______________

1 BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar; CLÁPIS, Alexandre Laizo. Marco Legal das Garantias: alienação fiduciária e hipoteca. 1 ed. São Paulo: Saraiva Jus, 2025.

2 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 619.

3 TJMG - Apelação Cível 1.0000.24.512266-8/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo de Oliveira Milagres , 21ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 29/01/2025, publicação da súmula em 10/02/2025.

Demétrio Beck da Silva Giannakos
Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Sócio do Escritório Giannakos Advogados Associados.

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