Migalhas de Peso

O Direito e "bebês reborn"

“Hoje 50 crianças foram registradas sem o nome do pai, mas o Brasil só quer saber do bebê reborn” (contém ironia).

27/5/2025

1. Introdução

A CF/88, em seu art. 227, consagra a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. Apesar disso, problemas estruturais como abandono parental, pobreza infantil e omissão estatal ainda comprometem a efetivação desses direitos. Em contraste com essas urgências, a sociedade brasileira se vê absorvida por uma controvérsia curiosa: os chamados "bebês reborn", bonecas hiper-realistas tratadas como se fossem crianças reais. Este texto parte da ironia proposital estampada no próprio título, uma adaptação do filme Scary Movie 3 (Todo Mundo em Pânico 3) em que uma das personagens satiriza a desatenção dada pela mídia e sociedade aos dilemas da população negra norte-americana, no presente texto sátira é a desatenção dada a crianças e adolescente reais em detrimento destes objetos.

2. Bebês reborn e a complexidade dos vínculos afetivos com objetos

Os bebês reborn, criados para fins terapêuticos ou comerciais, seguem sendo juridicamente classificados obviamente como objetos, mesmo quando despertam vínculos afetivos intensos. Tentativas de atribuir-lhes direitos de personalidade são infundadas e tolas, como demonstrado em caso recente relatado pela advogada Suzana Ferreira, que recusou, pasmem, ajuizar uma ação de "guarda" de uma dessas bonecas por considerá-la juridicamente impossível.

Dado atual contexto, infelizmente urge a necessidade de buscar um enquadramento do que estas bonecas são, e não é muito difícil ver que são objetos. Ainda conforme o Oxford Languages, objeto é definido como "artigo, mercadoria, peça" ou "coisa material que pode ser percebida pelos sentidos", o que inclui as bonecas reborn. Já o Dicionário Jurídico reforça essa definição ao descrever os bens corpóreos como “aqueles que podem ser tocados, pois possuem existência material, como um imóvel ou um veículo”. Aplicando esses conceitos, os reborn são inquestionavelmente bens materiais.

No campo do Direito, quanto aos bens recai o direito de propriedade. O titular de um bem detém direitos e obrigações relacionados à posse e ao uso do objeto, mas este não possui, por si, personalidade jurídica. Assim, mesmo que um esse objeto seja tratado com afeição, não se pode atribuir-lhe direitos subjetivos — ele continua sendo um bem patrimonial, seja ele físico ou não.

Como no caso rejeitado pela advogada, há situações em que essas bonecas estão atreladas a perfis monetizados em redes sociais, gerando receitas com publicidade e engajamento. Aqui, tem-se dois bens distintos: o corpóreo (a boneca em si) e o imaterial (o perfil digital). Como observa o jurista Everaldo Cambler, “objeto de propriedade pode ser todo bem que tenha valor econômico, material ou imaterial”. Logo, tanto a boneca quanto o perfil podem ser objeto de direito e, portanto, sujeitos à partilha em caso de disputa patrimonial.

Dessa forma, é tecnicamente incorreto falar em “guarda” de bonecas reborn. O adequado é discutir a partilha do bem. Se o objeto estiver vinculado a um ativo lucrativo e for indivisível, a solução jurídica é a indenização de uma das partes pelo valor correspondente, como ocorre com veículos, empresas ou outros bens economicamente relevantes.

3. A atenção dada aos reborn ante ao abandono familiar no Brasil

Apesar do alarde desproporcional em torno das bebês reborn, a temática revela um sintoma social mais profundo: a inversão de prioridades na atenção pública e legislativa. Enquanto se mobiliza indignação e até propostas de "guarda" para objetos inanimados, milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade seguem invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade. 

Dados estatísticos indicam que há milhares de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento à espera de adoção, muitas delas vítimas de abandono, negligência ou violência. O paradoxo é evidente: como pode uma sociedade se comover mais com bonecas hiper-realistas do que com infâncias reais negligenciadas? A superexposição midiática de objetos inertes, ainda que tecnicamente inofensiva, retroalimentada por explanações de legisladores despreocupados diante de urgências humanas concretas, tira o foco dos problemas estruturais relacionados à proteção da infância e juventude no Brasil.

4. O número de órfãos no Brasil

É preciso reafirmar: bebês reborn não são crianças. Enquanto crianças humanas demandam atenção, cuidado, assistência médica, alimentação e ambiente saudável para seu pleno desenvolvimento, as bonecas não necessitam de nada disso.

O que se observa a partir disso é um fenômeno preocupante: a supervalorização de bonecas hiper-realistas contrasta duramente com a negligência dirigida a crianças reais. Crianças que não têm sequer o mínimo: vestimentas adequadas, alimentação regular, acesso à saúde ou momentos de lazer. Apesar das previsões do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, da CF/88 e do CC, muitos desses direitos permanecem no plano teórico, não alcançando efetividade prática.

Esse descaso fica evidente diante dos dados da Arpen-Brasil - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, que apontam que cerca de 43,9 mil crianças se tornam órfãs a cada ano no Brasil, número impulsionado pelo desastre social causado pela pandemia de Covid-19. Ao contrário dos reborn, essas crianças muitas vezes não têm lares adequados, estrutura familiar ou apoio público. Dependem de entidades beneficentes que, com parcos recursos, buscam suprir o que o Estado não entrega.

Outro dado alarmante refere-se à pobreza extrema: segundo estatísticas oficiais, mais de 10,6 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos vivem nessa condição no Brasil. A invisibilidade dessas infâncias revela uma escolha perversa de prioridades. E mais: entre 2019 e agosto de 2024, cerca de 800 mil crianças foram registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento, conforme o Painel da Transparência dos Cartórios de Registro Civil do Brasil. Este dado escancara a ausência paterna institucionalizada.

Esse abandono real permite uma crítica simbólica: enquanto se discutem os chamados "pais de reborn", há inúmeros pais biológicos que, embora vivos e identificáveis, não exercem minimamente suas responsabilidades parentais. A desconexão entre paternidade biológica e responsabilidade efetiva assemelha-se à relação com um boneco: a criança é tratada como objeto, destituída de valor afetivo ou jurídico real. A crítica, portanto, não é à construção simbólica de vínculos afetivos — como os que se desenvolvem com os reborns —, mas sim à omissão e à indiferença com as crianças de carne e osso.

5. Prioridades invertidas: Entre reborns e a realidade das crianças invisíveis

Diante disso, cabe perguntar: onde estão as políticas públicas efetivas voltadas à proteção integral de crianças e adolescentes?

O destaque recente dado às bonecas reborn revela uma inversão alarmante de prioridades sociais e legislativas. Enquanto crianças reais enfrentam diariamente a ausência de alimentação, moradia, educação, afeto e estrutura familiar, surgem propostas legislativas inócuas e sensacionalistas — como projetos de lei para multar quem não respeitar supostas filas preferenciais por serem “pais de reborn”.

É preciso perguntar: existem realmente pais de reborn ocupando vagas no SUS, pressionando creches públicas ou solicitando aposentadorias junto ao INSS? Não. Se há escassez de serviços, a culpa reside na gestão pública e na decadência das políticas sociais, não nas bonecas ou em seus colecionadores.

Essas iniciativas legislativas — movidas por desejo de engajamento e visibilidade digital — revelam o descompasso entre a realidade social e o debate público institucional. Conforme destacado pelo jornalista Pedro Silvini, em artigo publicado no Diário do Comércio, “existem cerca de 25 projetos de lei no Congresso Nacional voltados a limitar ou regulamentar a circulação dos bebês reborn,” o jornalista destacou que foram poucos os casos de fato em que donos destes objetos que solicitaram atendimento suas bonecas. Segundo ele, a controvérsia tem sido usada como palco para disputas ideológicas, nas quais pautas irrelevantes ganham força política enquanto dados alarmantes sobre a infância brasileira são ignorados.

Em vez de legislar sobre objetos inanimados para obter visibilidade nas redes sociais, o mais ético e sensato seria encarar a omissão do Estado e da sociedade civil diante das infâncias negligenciadas. É paradoxal que o legislativo atue com tanta agilidade em torno de bonecas, mas mantenha silêncio institucional sobre o crescente número de órfãos, crianças abandonadas e crianças sem filiação reconhecida.

Portanto, mais do que nunca, é preciso combater a indiferença institucional que invisibiliza as infâncias reais, ao invés de criar um universo jurídico artificial em torno de bonecas que, por mais realistas que sejam, não deixam de ser objetos — ao contrário de milhões de crianças brasileiras, que são pessoas reais, com direitos reais, e que clamam, silenciosamente, por cuidado e justiça.

Giocondo de Andrade Lacerda
Advogado OAB 125078 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná; membro da Comissão de Direito de Família da OAB/PR; pós-graduando em Advocacia Cível.

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