Introdução
A lei 15.069/24 institui a Política Nacional de Cuidados, com foco em estabelecer diretrizes para a redistribuição e valorização das atividades de assistência pessoal e doméstica no Brasil, visando garantir o direito ao cuidado, reconhecendo e valorizando tanto os cuidadores remunerados quanto os não remunerados, com especial atenção às desigualdades de gênero e às assimetrias sociais historicamente construídas.
Mas qual a relação do novo diploma legislativo com o arbitramento da pensão alimentícia?
Promovendo políticas públicas que possibilitem a compatibilização entre o trabalho remunerado e as responsabilidades familiares de cuidado, a lei pode ser invocada nas questões relacionadas à pensão alimentícia, reconhecendo e valorizando o trabalho de cuidado, indicando a necessidade de considerar o valor econômico desse trabalho na fixação da cota parte dos pais, onde um deles assume a maior parte das responsabilidades na rotina do filho comum.
A título de exemplo, o projeto de reforma do Código Civil1 valoriza e protege o trabalho dos cuidadores no âmbito familiar em diversas passagens, como no art. 1.582-C, garantindo ao cônjuge e ao convivente o direito de permanecer na residência conjugal, se com ele residirem filhos com menos de dezoito anos ou incapazes ou a quem se dedicou aos cuidados da família e não desempenha atividade remunerada.
Embora a lei 15.069/24 não altere diretamente as normas sobre pensão alimentícia, pode influenciar o entendimento e a aplicação destas, ao destacar a importância e o valor econômico do trabalho de cuidado na sociedade e, por via de consequência, no seio familiar.
Adiante, será demonstrado de que forma a valorização do trabalho de cuidado influencia diretamente na quantificação das obrigações materiais dos pais devidas aos filhos menores.
1.Economia do cuidado
O tema vem recebendo destaque interdisciplinar tanto no Direito, quanto na Economia e Ciências Sociais. Na promulgação da lei 15.069/24 foi reconhecido que historicamente o trabalho de cuidado é essencial para o bem-estar e sustentabilidade da sociedade, exigindo, portanto, sua corresponsabilização social entre homens e mulheres, evitando a exploração individual dos cuidadores não remunerados o que, ao longo do tempo, aumenta a desigualdade social ao não reconhecer os direitos de quem cuida e de quem é cuidado.
Destaca a justificativa do projeto que “uma política de cuidados tem como destinatários não apenas as pessoas idosas, mas também crianças, adolescentes, jovens, adultos e pessoas com deficiência, ou de uma forma mais abrangente, a pessoa de qualquer faixa etária que, em razão de sua condição de dependência, necessita de cuidados”.
O projeto prima, assim, pelo apoio e valorização dos cuidadores, profissionais, familiares, sociais e comunitários, o que abarca, consequentemente, o desempenho da função de cuidado entre pais e filhos, especialmente quando não há sua distribuição paritária e equânime.
A economia do cuidado envolve, portanto, o conjunto de atividades formais e informais, remuneradas ou não, que envolvem o cuidado de pessoas e a manutenção da vida cotidiana, como cozinhar, limpar, acompanhar alguém ao médico, ajudar nos estudos, oferecer suporte emocional e tantas outras. São, portanto, atividades essenciais para sustentação da sociedade e da economia, mas que historicamente vinham sendo invisibilizadas e atribuídas na maior parte do tempo às mulheres dentro dos lares. A proposta é, portanto, a valorização do trabalho de cuidado, sua contabilização e redistribuição de forma justa.
“(...) não pode ser desconsiderado que, apesar de existir uma obrigação conjunta dos genitores quanto ao sustento dos filhos, ou seja, as responsabilidades financeiras também devem ser custeadas pela mãe da menor, não pode ser desconsiderado que a genitora coabitante possui gastos diversos com as necessidades e manutenções corriqueiras do dia a dia, além do que, por essa condição, despende tempo bastante superior ao do pai para a criação e cuidado da criança e, embora isso não possa ser quantificado monetariamente, deve se sopesado no arbitramento da verba alimentar. (...)” (TJ/GO - Apelação Cível: 02702162020198090164 CIDADE OCIDENTAL, Relator.: Des(a). ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO, Data de Julgamento: 25/01/2021, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 25/01/2021)
“(...) Diante desse entendimento, verifica-se que ela exerce, com exclusividade, a chamada '‘economia de cuidado’'. Esta envolve muitas horas e tempo dedicado ao cuidado com a casa e com pessoas: dar banho e fazer comida, faxinar a casa, comprar os alimentos que serão consumidos, cuidar das roupas (lavar, estender e guardar), prevenir doenças com boa alimentação e higiene em casa e remediar quando alguém fica ou está doente, fazer café da manhã, almoço, lanches e jantar para os filhos, educar e segue por horas a fio. A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todos nós precisamos de cuidados para existir. Embora tais tarefas não sejam precificadas, geram um custo físico, profissional, psíquico e patrimonial de quem os exerce. No caso em comento, como já dito, é a genitora da menor quem arca com todas estas tarefas e referida contribuição não pode ser menosprezada. (...)”. TJ/PA. 0804269-62.2023.8.14.0039. Tribunal de Justiça do Pará.
2.Vedação do enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil)
Na distribuição do encargo da pensão alimentícia entre os pais, o princípio da vedação do enriquecimento sem causa coíbe que um dos genitores (pai ou mãe) fique com um ônus excessivo, enquanto o outro se beneficia sem contribuir de forma proporcional para o sustento do filho. Quando os deveres de cuidado não são distribuídos de forma equânime, e deixam de ser valorados economicamente para aferição do cálculo da pensão, há evidente enriquecimento sem causa por parte do genitor que não está implicado na rotina diária do filho.
Há muito o princípio da vedação do enriquecimento sem causa era visto apenas sob o prisma do binômio necessidade vs possibilidade, em que o montante dos alimentos não deveria ser superior às reais necessidades do credor. A ótica do preceito vai muito além quando da aferição da economicidade dos deveres de cuidado, evitando que alguém se beneficie de maneira injustificada ao aferir a adequação, razoabilidade e proporcionalidade dos custos e esforços envolvidos no cumprimento dos deveres de cuidado.
“(...) embora os pais possuam o dever recíproco de contribuir para o sustento e o desenvolvimento da prole de modo compatível com suas possibilidades e rendimentos, importa considerar que recai sobre a genitora o maior encargo, em termos econômicos indiretos (economia de cuidado não remunerada), o que deve ser ponderado no cotejo necessidade x possibilidade x proporcionalidade x razoabilidade, a fim de esse trabalho invisibilizado seja compensado, ainda que apenas parcialmente. (...)” TJ/DF. 0704101-70.2024.8.07.0020. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Ao desconsiderar o valor dos cuidados na planilha de despesas do alimentando, o cálculo final das necessidades ficará subestimado, impondo-se uma carga desproporcional àquele que assume integralmente os cuidados diários. Isso compromete a paridade entre os genitores, pois o genitor com convivência reduzida contribuirá apenas com uma fração das despesas materiais, enquanto os cuidados não contabilizados permanecem exclusivamente a cargo do genitor contínuo. Tal desequilíbrio viola o princípio da equidade parental, como será adiante analisado.
3.Vedação do abuso de direito (art. 187 do Código Civil)
De acordo com o art. 187 do Código Civil, comente ato ilícito o titular de um direito que, ao exerce-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Da mesma forma que o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, a vedação do abuso de direito foi constantemente invocado quando quem recebe alimentos pede valores desproporcionais ou desnecessários, para onerar ou prejudicar quem paga. Por exemplo, ao requerer a fixação dos alimentos provisórios, ciente de que o arbitramento ocorre sem a oitiva da parte contrária (art. 4º da lei 5.478/1968), o credor indica ao juízo capacidade financeira do devedor muito superior à realidade, ou omite fatores de que tem ciência que comprometem significativamente sua renda (como condição de saúde, ou número de dependentes).
Outro exemplo ocorre quando o devedor se utiliza de manobras para diminuir ou evitar a obrigação injustamente, omite rendimentos, esconde patrimônio, atrasa ou não paga deliberadamente para prejudicar o alimentando.
Em suma, o objetivo do preceito é evitar distorções no uso da obrigação alimentar protegendo ambas as partes de práticas desleais, o que rotineiramente é verificado quando um dos genitores descumpre reiteradamente acordo de guarda e convivência, impondo o ônus dos deveres de cuidado exclusivamente ao genitor contínuo, em que pese ter judicialmente assumido parte destes deveres para com o alimentando.
O descumprimento reiterado do dever de guarda e convivência onera significativamente o genitor que passa a ser responsável exclusivo por todos os deveres de cuidado com a prole que não são remunerados, ou não foram tomados em conta quando do arbitramento do valor da pensão, diante da divisão de tarefas de cuidado que estão sendo descumpridas pelo alimentante. O reconhecimento do valor econômico do trabalho de cuidado é fundamental para assegurar equidade parental, justificando a revisão do valor da pensão alimentícia em casos de descumprimento do plano de coparentalidade.
4.Princípio da solidariedade familiar
Em termos gerais, o princípio da solidariedade familiar se traduz no dever dos membros da família de se apoiarem mutuamente, moral e materialmente, buscando o bem-estar coletivo e individual de seus integrantes, numa relação de cooperação, afeto, respeito e principalmente responsabilidade mútua entre pais e filhos.
O princípio advém do art. 3º, inciso I da Constituição Federal, constituindo objetivo da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, combinado com o artigo 226 da Magna Carta, que reconhece ser a família a base da sociedade com especial proteção do Estado.
Densificando as normas constitucionais, o art. 1.634 do Código Civil impõe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos à ambos os genitores.
Nesse sentido, o princípio da solidariedade familiar é a base do direito aos alimentos devidos entre pais e filhos, cuja fixação do montante deve ter em conta o valor econômico dos cuidados dispensado por apenas um deles, quando da omissão do outro.
“(...) 1. A fixação dos alimentos deve obedecer a uma perspectiva solidária entre pais e filhos, pautada na ética do cuidado e nas noções constitucionais de cooperação, isonomia e justiça social, uma vez que se trata de direito fundamental inerente à satisfação das condições mínimas de vida digna, especialmente para crianças e adolescentes que, em virtude da falta de maturidade física e mental, são seres humanos vulneráveis, que necessitam de especial proteção jurídica. Exegese dos artigos 3º, inc. I, 6º e 229 da Constituição Federal, conjugado com os artigos 1.566, inc. IV, 1.694 e 1.696 do Código Civil, e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, Recomendação nº 123/2022 do Conselho Nacional de Justiça e Precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala (1999). (...)” (TJ/PR - 12ª Câmara Cível - 0013506-22.2023.8.16.0000 - Comarca de Rio Branco do Sul - Rel.: Des. Eduardo Augusto Salomão Cambi - J. 02.10.2023).
5.Princípio da equidade
Tempo e dedicação juridicamente tem valor econômico (artigos 4º, inc. II, e 170, caput, da Constituição Federal; lei 15.069/2024), e constituem alimentos in natura, de acordo com a própria conceituação do que deve ser abarcado pela expressão “alimentos”. O cuidado é indispensável à satisfação das necessidades de ordem física, moral, social e espiritual (arts. 1º e 3º, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente c/c art. 3.2 da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas). Logo, na cota parte do dever de sustento do genitor contínuo, o cuidado diário e exclusivo deve ser devidamente considerado, caso contrário, resta desvirtuado a isonomia entre os pais, que deve reger as obrigações decorrentes da parentalidade. Pai e mãe tem os mesmos deveres e obrigações advindos do princípio da parentalidade responsável (art. 226, § 7º, da Constituição Federal; arts. 1.694, § 1º, e 1.703 do Código Civil).
“(...) 6. O princípio da parentalidade responsável (art. 226, § 7º, da Constituição Federal) - concretizado por meio do pagamento de alimentos fixados em montante proporcional aos esforços da mulher, com a realização de trabalhos domésticos e diários na educação da criança - é um instrumento de desconstrução da neutralidade epistêmica e superação histórica de diferenças de gêneros, de identificação de estereótipos presentes na cultura que comprometem a imparcialidade jurídica, de promoção da equidade do dever de cuidado de pai e mãe no âmbito familiar, além de ser um meio de promoção de direitos humanos e de justiça social (artigos 4º, inc. II, e 170, caput, da Constituição Federal). (...)”. (TJ/PR - 12ª Câmara Cível - 0013506-22.2023.8.16.0000 - Comarca de Rio Branco do Sul - Rel.: Des. Eduardo Augusto Salomão Cambi - J. 02.10.2023).
O princípio da equidade na avaliação da economicidade da prestação de cuidado perpassa pelo protocolo de julgamento com perspectiva de gênero. Segundo consta no referido documento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça2, a divisão sexual de tarefas de cunho sexista divide o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo, atribuindo aos homens o trabalho produtivo na esfera pública, que é remunerado, e à mulher como única ou prioritariamente responsável pelo trabalho reprodutivo ou de cuidado não remunerado:
“(...) Assim, às mulheres, é relevado o trabalho interno denominado 'economia de cuidado', geralmente desvalorizado. Aliado a tais considerações, oportuno destacar que a romantização do cuidado como uma tendência natural das mulheres, algo vinculado ao amor e, portanto, tendente à voluntariedade, embora, na realidade, seja trabalho, agrava a inércia dos genitores em reconhecer que a disponibilidade diária em cuidar de uma criança não pode ser valorada unicamente considerando gastos objetivos com lazer, educação, saúde e alimentação (...)”. Assim, na presente fixação de alimentos tem-se que levar em conta algumas ponderações: 1) Ao exercer a guarda do filho menor, há uma presunção de que a genitora também é responsável por seu sustento, uma vez que já exerce o difícil encargo diário de dispender cuidados afetivos e materiais ao infante, o que deve ser considerado na fixação de pensão alimentícia; 2) Ao exercer a chamada “economia de cuidado”, a mulher dispende tempo de dedicação (muitas vezes exclusiva) nos cuidados com o lar e com as pessoas que nele habitam. Afazeres domésticos como compra de alimentos, faxina, preparação de refeições, cuidados com roupas, higiene, atenção à ministração de remédios e outras atividades refletem um dia-a-dia que demanda disponibilidade integral de muitas mães. A situação se agrava quando, no caso concreto, há criança com deficiência, porquanto em tais casos há maior índice de abandono paterno-filial por parte dos genitores; 3) O trabalho doméstico exercido nesses termos é essencial e muitas vezes vital para um cotidiano saudável para o crescimento de uma criança e, não obstante a ausência de precificação, é certo que o seu exercício gera custo físico, profissional, psíquico e patrimonial, o que também deve ser considerado na fixação de alimentos; 4) A naturalização da atribuição da responsabilidade prioritária ou exclusiva das mulheres sobre o cuidado também leva, no cotidiano concreto da vida – no que se denomina de dupla jornada - à desigualdade de oportunidades e de salários no mercado de trabalho. Ora, uma vez que ao genitor fica atribuída a função de trabalhar e, ao final do mês, pagar pensão proporcional aos seus rendimentos, à mulher resta duas alternativas: exercer dupla jornada ou contentar-se com uma realidade voltada ao cuidado de sua prole; ; 5) A fixação dos alimentos deve obedecer a uma perspectiva solidária entre pais e filhos, pautada na ética do cuidado e nas noções constitucionais de cooperação, isonomia e justiça social, uma vez que se trata de direito fundamental inerente à satisfação das condições mínimas de vida digna, especialmente para crianças e adolescentes que, em virtude da falta de maturidade física e mental, são seres humanos vulneráveis, que necessitam de especial proteção jurídica. (TJ/PR – 12ª Câmara Cível – 0013506-22.2023.8.16.0000 – Rio Branco do Sul – Rel.: Nome – J. 02.10.2023) 6) A fixação de alimentos deve ser analisada também como uma ferramenta apta a minorar as consequências histórias que a desvalorização do trabalho invisível da mulher tem causado na desigualdade de gênero, colocando o genitor em uma posição de reflexão acerca de suas obrigações naturais decorrentes do poder familiar, as quais não se restringem unicamente ao ressarcimento de custos mateiras. 7) O princípio da parentalidade responsável (art. 226, § 7º, da Constituição Federal)– concretizado por meio do pagamento de alimentos fixados em montante proporcional aos esforços da mulher, com a realização de trabalhos domésticos e diários na educação da criança – é um instrumento de desconstrução da neutralidade epistêmica e superação histórica de diferenças de gêneros, de identificação de estereótipos presentes na cultura que comprometem a imparcialidade jurídica, de promoção da equidade do dever de cuidado de pai e mãe no âmbito familiar, além de ser um meio de promoção de direitos humanos e de justiça social (TJ/PR – 12ª Câmara Cível – 0013506-22.2023.8.16.0000 – Rio Branco do Sul – Rel.: Nome – J. 02.10.2023). (...) Ademais, é preciso registrar que em uma cultura machista como a nossa em que o trabalho que decorre do dever de cuidado - que, na grande maioria das vezes é atribuído à mulheres - é muito invisibilizado, estabelecer critérios para o cômputo da fixação da prestação alimentícia sem considerar todo o contexto de gênero e os respectivos estereótipos envolvidos em tais relações, consistiria uma atitude de violação aos direitos humanos, indo de encontro com o que estabelece o Conselho Nacional de Justiça.” (Tribunal de Justiça de Pernambuco. Poder Judiciário 5ª Vara Cível da Comarca do Cabo de Santo Agostinho. Processo nº 0008027-26.2022.8.17.2370. Data de publicação: 2024-09).
A aplicação do princípio da equidade na avaliação do valor econômico do trabalho de cuidado impõe ao Judiciário a reconhecimento do trabalho reprodutivo historicamente invisibilizado. Ao considerar a sobrecarga imposta a um dos genitores responsável pela rotina de cuidados no contexto familiar, garante-se a efetivação dos direitos fundamentais à igualdade e à dignidade da pessoa humana.
6.Direito antidiscriminatório das famílias
Se por um lado a inserção da mulher no mercado de trabalho se tornou uma crescente nas últimas décadas, ao ponto da jurisprudência movimentar-se para tornar os alimentos devidos entre ex cônjuges transitórios “para não estimular o ócio”3, é bem verdade que não parece ter havido o mesmo empenho, por parte dos homens, em assumir os cuidados diários da prole ou as tarefas domésticas.
Fato é que o tempo e cuidado dedicados aos filhos tem valor econômico, e devem ser reconhecidos. Possui valoração não apenas se levarmos em conta os custos com babá, empregado doméstico, motorista, professor particular, cozinheiro, e todas as demais demandas necessárias para atender as necessidades dos filhos que ficam à cargo apenas de um dos pais no desempenho direto de cada uma dessas funções, mas também o tempo, o alijamento do genitor contínuo da dedicação ao seu crescimento profissional, fato que deve ser considerado, ao se estabelecer, proporcionalmente, o montante devido por cada genitor na contribuição ao sustento dos filhos.
O projeto de reforma do Código Civil, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, insere no ordenamento jurídico com maior clareza o preceito ora destacado no inciso IV do art. 1.566: “São deveres de ambos os cônjuges ou conviventes: IV - de forma colaborativa assumirem os deveres de cuidado, sustento e educação dos filhos, dividindo os deveres familiares de forma compartilhada”. No mesmo sentido a proposta para a redação do art. 1.634, inciso I: “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a situação conjugal: I - prestar assistência material e afetiva aos filhos, acompanhando sua formação e desenvolvimento e assumindo os deveres de cuidado, criação e educação para com eles”.
Os preceitos têm por objetivo positivar o que já é desenvolvido pelos tribunais:
“(...) 5. Quando os filhos em idade infantil residem com a mãe, as atividades domésticas, inerentes ao dever diário de cuidado (como o preparo do alimento, a correção das tarefas escolares, a limpeza da casa para propiciar um ambiente limpo e saudável) - por exigirem uma disponibilidade de tempo maior da mulher, sobrecarga que lhe retira oportunidades no mercado de trabalho, no aperfeiçoamento cultural e na vida pública - devem ser consideradas, contabilizadas e valoradas, para fins de aplicação do princípio da proporcionalidade, no cálculo dos alimentos, uma vez que são indispensáveis à satisfação das necessidades, bem-estar e desenvolvimento integral (físico, mental, moral, espiritual e social) da criança. Inteligência dos artigos 1º e 3º, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) c/c artigo 3.2 da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. (...)”. (TJ/PR - 12ª Câmara Cível - 0013506-22.2023.8.16.0000 - Comarca de Rio Branco do Sul - Rel.: Des. Eduardo Augusto Salomão Cambi - J. 02.10.2023).
“(...) evidente que a genitora do menor também é responsável pelo seu sustento e já possui o difícil encargo de cuidar do infante sem a ajuda presencial do réu/genitor, o que deve ser considerado na fixação da pensão alimentícia (...)” TJ/SP. 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1002401-70.2019.8.26.0201, j. 30.05.2023).
Em outras palavras, o genitor implicado nos cuidados diários dos filhos está prestando alimentos in natura através dessa dedicação, que reconhecidamente possui valor econômico, o que impõe que, ao genitor que não presta esse tipo de assistência, a compensação de sua cota parte em valor superior, a fim de que o critério da proporcionalidade seja devidamente restabelecido.
7.Apagão profissional e perda da chance
Não há dúvidas que a ausência de um dos genitores na rotina diária do filho proporciona ao genitor(a) descontínuo a possibilidade não apenas de avançar um sua carreira profissional, mas também retardar a capacidade do genitor contínuo de gerar renda, já que este permanece encarregado integralmente pelos deveres de cuidado do filho, em flagrante violação à paridade entre pai e mãe no exercício do poder familiar, o que urge seja corrigido através do reexame da proporcionalidade com que cada um dos genitores deve contribuir para o sustento da prole.
Isso significa dizer que, em se tratando de estabelecer o montante devido a título de alimentos pelo genitor não contínuo, deve ser considerado o grau de sua implicação nos cuidados diários com a prole. Dito de outra maneira: ao genitor ausente da vida do filho incumbe, proporcionalidade, contribuir com valor superior em relação ao genitor guardião para mantença do filho comum. A assertiva é um tanto óbvia, já que aquele que não tem qualquer responsabilidade com a rotina da criança possui mais tempo livre para se imiscuir com afinco no mercado de trabalho, e oferecer à prole um padrão de vida digno.
“(...) importante salientar o dever dos genitores em buscar a obtenção de renda suficiente para garantir as necessidades básicas de sua prole, em atenção aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assim como ao princípio da paternidade responsável e do planejamento familiar (...)” (TJ/SP, 9ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1022063.83.2020.8.26.0007, j. 27.04.2023).
É relativamente simples aferir o grau de dedicação do genitor descontínuo na vida do filho. Se tomarmos em conta que o mês possui 720 horas, o genitor que permanece apenas dois finais de semana/mês com o filho lhe dedica módicos 96 horas/mês, demonstrando um desequilíbrio gritante, já que 86,67% do tempo da criança estará sob os cuidados do genitor contínuo em detrimento de módicos 13,37% com o descontínuo. Sem mencionar que o período dedicado aos finais de semana sequer implicam o descontínuo na dinâmica diária da vida do filho com escola, deslocamentos, e todas demais atividades obrigacionais da criança, limitando-se à poucas horas de lazer.
“(...) Acrescento que, neste caso, o pai tem ganhos maiores que os da mãe, de modo que tem a obrigação de despender maiores verbas em favor do filho. Além da evidência da renda muito menor da mãe, há o fato do tempo despendido por ela com a criança no dia-a-dia (cuidados diários com higiene, alimentação, locomoção para a prática de diversas atividades, etc.). O tempo despendido pela mãe com uma criança (principalmente neste caso, no qual o pai reside em outra cidade) a impede de investir mais na vida profissional. Ainda que as tarefas envolvam o amor e a renúncia consciente da mãe, é evidente que não permitem maior investimento na vida profissional. Cabe ao pai atentar-se a isso. (...)” TJ/SP. Ação de Exigir Contas. 1004982-40.2023.8.26.0291. Tribunal de Justiça de São Paulo.
“(...) Há, ainda, que ser considerado que, segundo consta dos autos, a menor reside com a mãe desde a separação do casal. Assim, não se pode ignorar que a economia do cuidado que dedica ao filho se reflete, direta e indiretamente, na sua capacidade de trabalho e financeira, inclusive reconhecendo-se uma sobrecarga mental da mãe relativa às inúmeras micro decisões diárias que precisam ser tomadas para a criação de uma criança/adolescente, envolvendo acompanhamento e transporte escolar, alimentação, eventuais doenças, gerenciamento de demandas domésticas, lazer. Tal realidade, portanto, deve ser devidamente reconhecida e considerada, no que concerne ao vetor da proporcionalidade. (...)”. TJ/DF. 0713170-48.2022.8.07.0004. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Assim, a desproporção no tempo efetivo de convivência revela não apenas um desequilíbrio quantitativo, mas sobretudo qualitativo na divisão das responsabilidades parentais, relegando ao genitor contínuo a integralidade dos deveres cotidianos de cuidado e gestão da vida da criança. Tal cenário evidencia a necessidade de repensar a fixação da pensão alimentícia, considerando a sobrecarga invisibilizada suportada pelo cuidador principal e a limitada participação do genitor descontínuo, que se restringe a momentos esporádicos de lazer, alheios às exigências diárias e ininterruptas da parentalidade responsável.
8.Compensação financeira pelo trabalho de cuidado (da prestação compensatória)
O reconhecimento da economicidade da prestação de cuidados e sua valorização não passaram despercebidos no Projeto de Reforma do Código Civil, atualmente em tramitação do Congresso Nacional. A título de exemplo, o art. 1.688, §2º do Projeto, ao tratar dos cônjuges ou conviventes no regime da separação de bens, dispõe que o trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar.
É sabido que os cônjuges ou conviventes que elegem o regime da separação de bens pretendem, ao longo da convivência, manter economia própria, presumindo-se que ambos têm capacidade de subsistência e constituição de patrimônio.
No entanto, o planejamento familiar realizado quando do início da conjugalidade, por circunstâncias naturais da vida pode não sair como esperado. O adoecimento de um parente, por exemplo, ou um filho advindo no curso da união que demande atenção especial, pode retirar de um dos pais a possibilidade de manter sua economia e sustento próprios, para assumir com exclusividade um dever de cuidado que seria do núcleo familiar, pai e mãe, em condições de igualdade.
Sendo a situação verificada ao fim do relacionamento, o cônjuge ou convivente que foi alijado do mercado de trabalho para se dedicar aos cuidados daquele ente familiar, terá direito à compensação financeira pelo que deixou de auferir, que deverá ser arcada pelo cônjuge ou companheiro que teve sua economia viabilizada por conta do parceiro ter assumido um encargo que lhe pertencia em igualdade de condições. Trata-se da prestação compensatória, que já existe na formação do Direito de alguns países, como a Inglaterra (Matrimonial Causes Act 1973 )4. A prestação compensatória se torna um fator de correção da desigualdade que ocorreu durante a união.
No mesmo viés do art. 1.832 do Projeto, dedicando em favor do herdeiro que prestou os cuidados em favor do autor da herança o direito de antecipar 10% de sua quota hereditária antes da partilha, ou ainda o direito real de habitação, nas condições indicadas no inciso III do mesmo dispositivo.
Conclusão
Diante desse cenário, a fixação da pensão alimentícia não pode mais se restringir a uma mera divisão formal de encargos materiais, desconsiderando a sobrecarga invisibilizada imposta ao genitor cuidador no exercício diário do cuidado. A Política Nacional de Cuidados e a perspectiva de gênero incorporada pelo Conselho Nacional de Justiça inauguram uma necessária releitura das obrigações parentais, reconhecendo o valor econômico e social do trabalho de cuidado, bem como sua centralidade para o desenvolvimento infantil e a justiça familiar. Assim, a quantificação dos alimentos deve refletir não apenas as despesas objetivas, mas também compensar, de forma ética e solidária, o tempo, a energia e as limitações profissionais impostas àquele que assume de maneira desproporcional a responsabilidade pelo cuidado direto da prole, contribuindo, desse modo, para a efetivação dos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da parentalidade responsável.
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1 Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998
2 Acesso em https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/
3 Ver sobre: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-06-24_06-02_Ate-quando-vai-a-obrigacao-de-alimentar.aspx
4 São mencionados como principais precedentes o caso Miller v. Miller; McFarlane v. McFarlane [2006] UKHL 24, em que a House of Lords (atual Supreme Court). Ver sobre: https://www.lawteacher.net/cases/miller-v-miller-mcfarlane-v-mcfarlane.php
Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025, disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998. Acesso em: 25 maio 2025.
Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 25 maio 2025.
Superior Tribunal de Justiça. Notícias. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-06-24_06-02_Ate-quando-vai-a-obrigacao-de-alimentar.aspx. Acesso em 25 de maio 2025.
LawTeacher. Free law study resources. Miller v Miller: McFarlane v McFarlane [2006] UKHL 24. Disponível em: https://www.lawteacher.net/cases/miller-v-miller-mcfarlane-v-mcfarlane.php. Acesso em 25 de maio 2025.