O CPC de 2015 (lei 13.105/15) trouxe inovações significativas para o sistema processual brasileiro, com o objetivo de promover maior transparência, previsibilidade e segurança jurídica nas decisões judiciais. Entre essas inovações, destaca-se a vedação expressa à "decisão-surpresa", um tema que ressoa a preocupação contemporânea com a concretização dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Este artigo analisa os principais fundamentos dessa vedação e suas implicações práticas no contexto do processo civil brasileiro.
A vedação à "decisão-surpresa" no ordenamento processual brasileiro
O art. 10 do CPC estabelece que "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício". Essa norma reflete a preocupação do legislador em evitar que as partes sejam surpreendidas por decisões baseadas em argumentos que não foram previamente debatidos no processo, o que comprometeria a legitimidade e a previsibilidade das decisões judiciais.
A proibição à "decisão-surpresa" também é uma resposta à prática forense anterior à vigência do CPC/15, na qual era comum que questões de ordem pública, cognoscíveis de ofício pelo juiz, fossem decididas sem que as partes tivessem a oportunidade de se manifestar. A redação contida na lei 13.105/15, portanto, representa uma mudança de paradigma ao exigir que, mesmo em tais situações, o contraditório seja observado de forma plena, como acontece em outros ordenamentos processuais.
O princípio do contraditório: fundamento e expansão
O princípio do contraditório é uma garantia fundamental do processo justo, assegurado pela Constituição Federal no art. 5º, inciso LV. Tradicionalmente, o contraditório era compreendido como o direito das partes de serem ouvidas e de responderem aos argumentos da parte adversa. No entanto, a concepção moderna do princípio vai além dessa visão tradicional, abrangendo também o direito das partes de influenciar na formação do convencimento do juiz – inclusive pelo quanto disposto no art. 489, IV, que determina que o Magistrado deve enfrentar todos os argumentos deduzidos pelas partes que poderiam alterar sua convicção.
Nesse sentido, o CPC/15, ao vedar a "decisão-surpresa", reforça a ideia de que o contraditório deve ser efetivo, garantindo às partes não apenas o direito de serem ouvidas, mas também de participar ativamente na construção da decisão judicial – mesmo em casos de improcedência liminar do pedido, em que será o autor intimado para se manifestar acerca das matérias contidas no artigo 332 do mesmo códex.
Trata-se de previsão advinda de nosso modelo constitucional, que garante o “direito fundamental ao contraditório, ao lado dos direitos de comunicação dos atos processuais, de manifestação, de participação no desenvolvimento do processo, de influência no conteúdo das decisões e de ter os argumentos considerados, todos garantidos pelo art. 5.º, LIV da CF/1988”1.
Essa perspectiva se alinha com a doutrina contemporânea, que defende um modelo de processo baseado na cooperação entre as partes e o juiz, em que a decisão final é resultado de um diálogo processual.
A pretensão do legislador era que as partes pudessem ter previsibilidade e segurança jurídica, podendo participar ativamente até quando a matéria pudesse ser decidida por interpretação do juiz sobre tese cognoscível de ofício. Assim, possibilita-se a demonstração de aplicação (ou não) do princípio aventado ao caso concreto, evitando, justamente, que as partes sejam surpreendidas com a prolação da decisão.
Comparações com o direito estrangeiro
A vedação à "decisão-surpresa" no CPC encontra eco em diversos sistemas jurídicos estrangeiros, em que a proteção contra decisões inesperadas já está consolidada. No direito francês, por exemplo, o art. 16 do Code de Procédure Civile prevê que o juiz não pode fundamentar sua decisão sobre uma questão de direito suscitada de ofício sem conceder às partes a oportunidade de se manifestar.
Texto original do Código francês:
Le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer lui-même le principe de la contradiction.
Il ne peut retenir, dans sa décision, les moyens, les explications et les documents invoqués ou produits par les parties que si celles-ci ont été à même d'en débattre contradictoirement.
Il ne peut fonder sa décision sur les moyens de droit qu'il a relevés d'office sans avoir au préalable invité les parties à présenter leurs observations.
Em tradução livre:
O juiz deve, em todas as circunstâncias, observar e ele próprio observar o princípio da contradição.
Na sua decisão, só poderá conservar os argumentos, explicações e documentos invocados ou produzidos pelas partes se estas os tiverem podido debater contraditoriamente.
Ele não pode basear sua decisão nos fundamentos legais que ele levantou ex officio sem primeiro convidar as partes a apresentarem suas observações.
Essa disposição é amplamente elogiada pela doutrina brasileira, sendo vista como um modelo a ser seguido.
No sistema alemão, o § 139 do Zivilprozessordnung (ZPO, o Código de Processo Civil alemão) proíbe qualquer decisão que possa surpreender os litigantes, sob pena de nulidade. A regra visa reduzir o número de recursos e promover a satisfação das partes com a decisão judicial, por meio da previsibilidade do resultado do processo. Em tradução livre, a regra da lei estabelece que devem ser discutidos com as partes os fatos e as circunstâncias do caso, de modo a garantir que sejam fornecidas informações completas sobre todos os fatos relevantes, inclusive, com a possibilidade de complemento de informações insuficientes.
Texto original do Código alemão:
(1) Das Gericht hat das Sach- und Streitverhältnis, soweit erforderlich, mit den Parteien nach der tatsächlichen und rechtlichen Seite zu erörtern und Fragen zu stellen. Es hat dahin zu wirken, dass die Parteien sich rechtzeitig und vollständig über alle erheblichen Tatsachen erklären, insbesondere ungenügende Angaben zu den geltend gemachten Tatsachen ergänzen, die Beweismittel bezeichnen und die sachdienlichen Anträge stellen. Das Gericht kann durch Maßnahmen der Prozessleitung das Verfahren strukturieren und den Streitstoff abschichten.
(2) Auf einen Gesichtspunkt, den eine Partei erkennbar übersehen oder für unerheblich gehalten hat, darf das Gericht, soweit nicht nur eine Nebenforderung betroffen ist, seine Entscheidung nur stützen, wenn es darauf hingewiesen und Gelegenheit zur Äußerung dazu gegeben hat. Dasselbe gilt für einen Gesichtspunkt, den das Gericht anders beurteilt als beide Parteien.
(3) Das Gericht hat auf die Bedenken aufmerksam zu machen, die hinsichtlich der von Amts wegen zu berücksichtigenden Punkte bestehen.
(4) Hinweise nach dieser Vorschrift sind so früh wie möglich zu erteilen und aktenkundig zu machen. Ihre Erteilung kann nur durch den Inhalt der Akten bewiesen werden. Gegen den Inhalt der Akten ist nur der Nachweis der Fälschung zulässig.
(5) Ist einer Partei eine sofortige Erklärung zu einem gerichtlichen Hinweis nicht möglich, so soll auf ihren Antrag das Gericht eine Frist bestimmen, in der sie die Erklärung in einem Schriftsatz nachbringen kann.
Em tradução livre:
(1) O tribunal deverá, sempre que necessário, discutir os fatos e as circunstâncias do caso com as partes e formular perguntas (ou quesitos). Deve garantir que as partes forneçam informações completas e em tempo hábil sobre todos os fatos relevantes, em especial complementando quaisquer informações insuficientes sobre os fatos alegados, identificando as evidências e fazendo quaisquer solicitações relevantes. O tribunal pode estruturar os procedimentos e classificar o objeto da disputa por meio de medidas tomadas pelo gestor processual.
(2) O tribunal pode basear a sua decisão num aspecto que uma parte tenha claramente ignorado ou considerado irrelevante, desde que o tenha assinalado e dado à parte a oportunidade de o comentar. O mesmo se aplica a um aspecto que o tribunal avalia de forma diferente de ambas as partes.
(3) O tribunal chamará a atenção para quaisquer preocupações que possa ter quanto aos pontos a serem considerados ex officio.
(4) As informações previstas nesta disposição devem ser prestadas o mais cedo possível e registadas. Sua concessão só pode ser comprovada pelo conteúdo dos arquivos. Somente a prova de falsificação é admissível em relação ao conteúdo dos arquivos.
(5) Se uma parte não puder fazer uma declaração imediata em resposta a uma ordem judicial, o tribunal deverá, a seu pedido, fixar um prazo dentro do qual poderá apresentar a declaração por escrito.
Lá, embora não haja uma previsão expressa de nulidade para a violação dessa regra, o entendimento jurisprudencial reconhece a possibilidade de anulação da decisão proferida com violação do contraditório, uma vez que o artigo 103, I da Grundgesetz, garante a todos o direito a ser ouvido em tribunal (Vor Gericht hat jedermann Anspruch auf rechtliches Gehör).
No direito italiano, a lei 69/09 reformou o CPC para incluir a previsão de nulidade para decisões baseadas em fundamentos não previamente debatidos, conforme disposto no art. 101 do CPC italiano.
Texto original do código italiano:
Il giudice, salvo che lalegge disponga altrimenti,non puo' statuire sopra alcuna domanda, se la partecontro la qualee' proposta non e' stata regolarmente citata e non e' comparsa.
Il giudice assicura ilrispetto del contraddittorio e,quando accerta che dalla sua violazione e' derivata una lesione del diritto di difesa, adotta i provvedimenti opportuni. Se ritiene di porrea fondamento della decisione unaquestione rilevata d'ufficio, il giudice riserva la decisione, assegnandoalle parti, apena di nullita', un termine, non inferiore a venti giorni e non superiorea quaranta giorni dalla comunicazione, per il deposito incancelleria di memorie contenenti osservazioni sulla medesimaquestione.
Em tradução livre:
O juiz , salvo disposição legal em contrário , não pode decidir sobre qualquer requerimento se a parte contra a qual é interposto não tiver sido devidamente citada e não tiver comparecido.
O juiz zela pelo respeito ao contraditório e, quando verificar que a sua violação implicou a violação do direito de defesa, adota as medidas cabíveis. Se o juiz entender conveniente fundamentar a decisão em questão suscitada de ofício, reserva a decisão, fixando às partes, sob pena de nulidade, prazo não inferior a vinte dias e não superior a quarenta dias, contados da comunicação, para apresentação de memoriais contendo observações sobre a mesma questão
Essa reforma eliminou muitas das controvérsias doutrinárias e, também, da jurisprudência sobre a validade das chamadas "decisões de terceira via", garantindo às partes o direito de interagir no processo em posição de igualdade, podendo influenciar concretamente a condição e o resultado do julgamento.
Esses exemplos demonstram que a vedação à "decisão-surpresa" no CPC/15 não apenas alinha o Brasil com as melhores práticas internacionais, mas também reafirma o compromisso do legislador brasileiro com a justiça processual e a segurança jurídica.
Repercussões práticas da vedação à "decisão-surpresa"
A introdução do art. 10 no CPC/15 traz diversas repercussões práticas para o processo civil brasileiro, muitas das quais já foram objeto de intensos debates doutrinários. Entre as principais repercussões, de rigor se destacar:
- do princípio Iura Novit Curia: o princípio de que o juiz conhece o direito (“o tribunal conhece a lei”) tradicionalmente permitia que o Magistrado aplicasse normas jurídicas não invocadas pelas partes. Com a vedação à "decisão-surpresa", essa prerrogativa do juiz passa a ser condicionada à prévia oitiva das partes sobre a qualificação jurídica dos fatos. Essa reinterpretação visa assegurar que a aplicação do direito não surpreenda os litigantes, concretizando o princípio do contraditório.
- para a inobservância do art. 10: a ausência de previsão expressa sobre as consequências da inobservância do art. 10 do CPC/15 gerou debates entre os doutrinadores. Enquanto alguns defendem a nulidade da decisão-surpresa por violação ao contraditório, outros sugerem que a decisão seria apenas ineficaz. No entanto, a tendência é que a jurisprudência se firme no sentido de reconhecer a nulidade de tais decisões, dado o grave vício processual que representa o cerceamento de defesa. O STJ vem entendendo pela nulidade da decisão, conforme se retira do seguinte julgado: AgInt no AREsp n . 1.743.765/SP, relator ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 16/11/2021, DJe de 13/12/2021
- e pré-julgamento: a vedação à "decisão-surpresa" não implica em pré-julgamento ou comprometimento da imparcialidade do juiz. Pelo contrário, ao dar às partes a oportunidade de se manifestar sobre questões que podem influenciar a decisão, o Magistrado garante um tratamento paritário às partes, inclusive em respeito ao princípio constitucional da fundamentação das decisões, permitindo que as partes tenham paridade de armas, podendo trazer argumentos pela aplicação (ou não) do fundamento aventado àquela matéria.
- processual X contraditório: embora a exigência de um debate prévio possa retardar o andamento do processo, é importante ressaltar que a celeridade não pode ser obtida à custa da supressão de garantias fundamentais, como o contraditório. A vedação à "decisão-surpresa" busca equilibrar a eficiência processual com a justiça substancial, garantindo que as decisões sejam proferidas com plena observância dos direitos das partes.
A regra contida no mencionado artigo 10 consolida um avanço significativo no direito processual brasileiro ao vedar a "decisão-surpresa" e reforçar o princípio do contraditório em sua concepção moderna. Ao alinhar o Brasil com as práticas internacionais de proteção contra decisões inesperadas, a redação trazida pelo CPC de 2015 promove maior segurança jurídica e transparência no processo civil.
Ainda que a aplicação prática dessa norma possa gerar desafios e debates, especialmente no que tange às consequências da sua inobservância, os benefícios de uma justiça mais previsível e participativa superam eventuais críticas – em especial pelo avanço do ordenamento jurídico na tentativa de consolidar a política de aplicação de precedentes vinculantes.
Em última análise, a vedação à "decisão-surpresa" contribui para o fortalecimento do devido processo legal e para a legitimação das decisões judiciais no Brasil, garantindo aos sujeitos processuais, participação plena no feito e no convencimento do Magistrado.
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1 SANTOS, Welder Queiroz dos - A vedação à prolação de "decisão surpresa" na Alemanha - Revista de Processo | vol. 240/2015 | p. 425 - 435 | Fev / 2015 | DTR\2015\817
LASPRO, Oreste Nestor de Souza - Da Expressa proibição à “decisão-surpresa” no Novo CPC, Revista do Advogado n. 126, Ano XXXV, Maio de 2015, p. 162/168